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quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Barulho inútil - O Estado de S. Paulo

J. R. Guzzo

Desfile de blindados passou por Brasília sem incomodar um tico-tico, mas foi transformado 

Brasília, como se sabe desde 1960, é uma dessas cidades onde as camadas mais altas – políticos, potentados do serviço público e todo o mundinho que vive delas, numa relação de seres que só prosperam como parasitas uns dos outros – não trabalham. Não de verdade; o trabalho que fazem produz bens e serviços de valor igual a três vezes zero e dificilmente seria considerado “trabalho” pela maioria dos brasileiros comuns. (Com o “home office”, é claro, a coisa só piora.) O resultado é que a capital passou a ser o paraíso natural número 1 das falsas questões, crises ou problemas. É natural. Na falta do que fazer, inventa-se coisas extraordinárias, emocionantes e em geral absolutamente falsas, para dar aos peixes graúdos a oportunidade de fingir que estão resolvendo problemas monumentais e inexistentes – e de parecer, assim, importantíssimos para os destinos do Brasil e do mundo.

Aconteceu de novo, com a história desse “desfile militar” que passou por Brasília a caminho de uma área de Goiás que fica ali perto, onde faria as mesmas manobras que vem fazendo no mesmo lugar há 33 anos – uma carreata de carros blindados que atravessou a cidade, deu uma paradinha no Palácio do Planalto para entregar um convite (o presidente gostaria de ver o exercício?) e foi-se embora sem incomodar um tico-tico. 

Esse não-fato foi transformado, no minuto que se soube dele, numa “crise militar” de primeiríssima grandeza. [a crise se tornaria grave, importante, se o bom senso não tivesse pousado sobre o ministro Toffoli iluminando-o, situação que o levou a perceber a gravidade de qualquer decisão que pretendesse impedir que as FF AA desfilassem, ou transitassem, em solo brasileiro.
O ministro inspirado remeteu o assunto ao STJ que quando o recebeu o evento combatido já tinha ocorrido e ocorreu a famosa, e muitas vezes útil, perda do objeto.] Era o dia da votação da emenda propondo mudanças no atual sistema de votação para as eleições de 2022; por conta disso, e só disso, políticos, mídia e primeiros escalões e geral entraram em transe. Estaria havendo, segundo a bolha de Brasília, uma “ação militar” para intimidar a Câmara dos Deputados; era uma ameaça de “golpe”, ou de pré-golpe, um momento de “tensão” e mais uma porção de coisas horríveis.
Nada disso tem, teve ou terá o menor ponto de contato com a realidade. Os tanques de guerra (na verdade, o que mais tinha era caminhão de transporte) foram embora, a mudança no sistema eleitoral não alcançou os 308 votos que precisava para ser aprovada teve até maioria de votos, mas não o suficiente [ainda que fosse aprovada em dois turnos na Câmara, o Pacheco sentaria em cima e quando fosse a primeiro turno no Senado a anterioridade eleitoral do artigo 16, CF,  impediria que fosse aplicada nas eleições 2022.]e meia hora após a passagem do desfile a história toda estava morta e enterrada. Ou seja: barulho inútil do primeiro ao último dos 15 minutos de fama que essa história teve.
A ocasião, naturalmente, serviu para políticos que morrem de medo de uma bala de borracha mostrassem toda a sua valentia diante dos “militares”, dizendo que não se deixariam “intimidar” e outras lorotas. 
Só ficam valentes porque que não correm risco nenhum fazendo cara de machão para general bonzinho
sabem que não vai acontecer nada, e que falar mal do Exército, hoje, é tão perigoso quanto falar mal do Instituto de Pesos e Medidas. [a abordagem do ilustre colunista Guzzo, levanta uma pergunta que insiste em surgir quando alguma autoridade, em sua maioria inimiga do presidente e do Brasil, diz que as instituições estão alertas e não permitirão que a democracia seja quebrada, etc, etc
A pergunta é: se a sempre invocada quebra da democracia for realmente para valer, como as instituições vão impedir? 
Não olvidem que tais tipo de quebra não são avisadas com antecedência nem discutidas em redes sociais. Quando chegam ao nosso conhecimento já ocorreram ou estão em fase adiantada.]

Serviu, também, para se ouvir uma dessas declarações que seriam um poema se não tivessem sido feitas. “Foi uma coincidência trágica”, disse o deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, referindo-se ao desfile e a votação. “Trágica” por que? O deputado Lira, então, acha que a presença legal de tropas do Exército Brasileiro na capital do país é uma tragédia? É ele quem está dizendo.
 
J. R. Guzzo,  colunista - O Estado de S. Paulo

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Valentia e resultados

O grande risco internacional é a instabilidade, agravada pelo comportamento de dirigentes

Tirar o Brasil do Pacto Global para Migração é o tipo da valentia que não custa grande coragem, rende muitas frases de efeito e tem pouquíssimo – ou nenhum – efeito prático. Na raiz desse gesto do novo presidente brasileiro está a convicção de que uma grande conspiração internacional trabalha para retirar a soberania, a capacidade de decisão ou até mesmo a vontade de se defender de Estados nacionais. E que grandes instituições multilaterais (como a ONU, onde se tramitou o tal do inócuo pacto de migração) foram aparelhadas pelos tais globalistas.
O cenário que preocupa de verdade um grande número de analistas internacionais, incluindo as grandes consultorias de risco, é outro. É o que chamam quase em uníssono de agravamento da instabilidade nas relações entre os países. “Nada urgente”, escreve uma dessas consultorias, a Eurásia, “ciclos geopolíticos são lentos e leva-se anos, até décadas, para destruir uma ordem, mas a erosão (da atual ordem) está ocorrendo”.
Neste tipo de cenário abre-se ainda mais o espaço para que indivíduos – tais como dirigentes de alguns países – consigam estragar coisas ainda mais depressa. Mas aqui vai uma nota tranquilizadora: a mesma Eurásia, quando olha para os riscos nestas partes do mundo, está preocupada com o México e seu novo presidente populista de esquerda, e muito pouco com o Brasil (em outras palavras, nossa capacidade de causar estragos internacionais no momento é considerada pequena).

Assim, a guerra comercial entre as duas maiores economias do mundo é descrita como consequência, e não causa, do que se considera como quase inevitável ruptura da ordem internacional descrita como “liberal”. Da mesma maneira, o estado da economia mundial preocupa muitos comentaristas estrangeiros não tanto pela dificuldade de se prever o comportamento dos mercados, mas, sobretudo, por aquilo que se assume com grande dose de convicção: mesmo um pequeno ciclo recessivo (que se dá como favas contadas) encontrará os principais governos menos afinados e capazes de respostas, como aconteceu na grande crise financeira de 2008.
Aqui o foco vai diretamente para os Estados Unidos, e a rara combinação de difícil situação política doméstica com o fato de Washington ser um dos principais fatores que contribuem para virar a ordem internacional de cabeça para baixo – fato exemplificado num presidente que fala tão mal de adversários quanto de aliados. Donald Trump perdeu o controle do Congresso e a atual paralisação do governo é apenas o início de uma áspera batalha política interna.
Nesse sentido, desenha-se um curioso cenário de combates também em relação à política externa americana. O “consenso” entre democratas e republicanos sobre a necessidade de reduzir o papel internacional dos Estados Unidos está sendo quebrado na luta política contra Trump, ou seja, seus adversários começam a falar na necessidade de “reconstruir” valores como a liderança americana e refazer alianças (a belicosidade em relação a China, porém, une nos Estados Unidos forças políticas antagônicas).
Ser “contra” ou “a favor” de Trump é uma dessas bobagens que só tornam ainda mais precária a compreensão do que está em jogo. O problema não está em atacar o “globalismo”, mas em saber qual a capacidade de liderança de Trump no momento em que uma crise econômica transborde para se transformar numa crise geopolítica. E ela vem.
 
William Waack - O Estado de S. Paulo