Revista OesteHomem que deixou a
Papuda depois de conseguir um alvará de soltura do STF vive uma rotina
de tensão, faz tratamento psicológico e busca meios de ajudar a família a
pagar as contas
O
simples ato de segurar talheres ou se olhar no espelho enche de lágrimas os
olhos do homem de 43 anos, que mora em uma cidade do Paraná. Essas coisas lhe foram negadas
durante os 70 dias em que esteve detido na Papuda em Brasília, em virtude
dos protestos ocorridos em 8 de janeiro.
Embora
tenha deixado o cárcere há pouco mais de um mês, as lembranças do pesadelo
ainda o assombram.
Mesmo
fora da penitenciária, ele tem de cumprir uma série de medidas restritivas
estabelecidas pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Por tempo
indeterminado, não pode acessar as redes sociais, ou
ter contato com outros manifestantes em situação semelhante, e tem de
usar uma tornozeleira eletrônica que monitora todos os
seus passos. “Sou um prisioneiro do medo”, constatou. Com
receio de sua segurança e a de sua família estarem em risco, pediu para não ser
identificado.
A vida do
homem mudou completamente. Agora, ele só pode pisar na rua de casa a
partir das 5 horas e tem até as 22 horas para retornar, sob o risco
de a tornozeleira apitar e ele sofrer alguma punição.
Antes de
sair, uma das primeiras coisas que faz é checar se o
equipamento tem bateria.
Uma luz
vermelha piscando intermitentemente avisa que é preciso recarregar o aparelho,
que leva três horas para alcançar o pico de energia. Para não ficar o tempo
todo perto da tomada, o homem tem uma extensão que lhe permite caminhar no
mesmo ambiente ou ir a outro cômodo.
Algumas
vezes, prefere deixar a tornozeleira carregando enquanto dorme, para poder
aproveitar mais o dia seguinte.
O
equipamento não pode ser removido. Por isso, deve ser utilizado até durante o
banho.
Às
segundas-feiras, o primeiro compromisso é se apresentar
ao fórum, para mostrar que está respeitando a liberdade condicional.
Como é
dono do próprio negócio e tem uma profissão que não requer muita mobilidade,
pode adotar o regime de home office, que tem facilitado bastante a nova
vida.
As horas
que perderia no trânsito dedica à escrita de um livro sobre o próprio caso. Os fins de semana se tornaram bem entediantes.
Isso
porque nesses dias ele está proibido de deixar a própria residência. Antes, aos sábados e aos domingos, costumava frequentar a casa de
familiares e amigos, além de passear no shopping e levar os filhos ao cinema.
“Sinto-me como aqueles criminosos exibidos em filmes que usam uma corrente
ligada a uma grande bola de ferro”, resumiu.
Além
da restrição do direito de ir e vir, o homem é obrigado a lidar com o
preconceito. A simples
caminhada num parque perto de casa provoca olhares desconfiados e julgamentos
de quem vê a tornozeleira.
Esse
comportamento se repete em outros estabelecimentos. Ao
ir ao banco, o homem logo avisa o segurança que usa o equipamento, a fim
de o agente liberar a porta giratória, caso ela trave por algum motivo, e gere
filas na entrada da agência.
De modo a
evitar mais constrangimentos, mudou o jeito de se arrumar. Mesmo em dias de calor, veste uma calça comprida, com a
finalidade de esconder a tornozeleira. O homem faz o mesmo quando está
na presença dos filhos e de conhecidos.
Nem os
funcionários da empresa de sua mulher o pouparam de se sentir mal. No primeiro dia que chegou ao local,
após sair da cadeia, lembra-se do ambiente emudecido e das feições de poucos
amigos. “Um cemitério era mais feliz”,
observou, ao mencionar ter ouvido cochichos e risadas de deboche enquanto
caminhava até a sala em que ela trabalha. “Vergonha
e humilhação tomaram conta de mim num local que deveria ser meu refúgio.” Apenas
duas pessoas ali o recepcionaram com alegria, mas longe dos olhares de
reprovação dos demais colegas. Um empregado confidenciou a ele comentários que
ouvira, durante a estadia do homem na Papuda. “’Isso que dá ter ido bagunçar
em Brasília’ e ‘bem-feito’ foram coisas que ouvi”, contou.
“O pior é
não saber quando isso vai ter fim. Tenho de viver todos os dias com a sensação
de que a polícia pode vir me prender. É um pesadelo”
Amigos e conhecidos,
também se afastaram. O abismo
entre o homem e o resto da sociedade ficou claro quando
ele participou de um encontro religioso, dias depois de conseguir a
condicional. Ele ouvira um comentário, de alguém
que sempre se apresentou como amiga, segundo o qual a sua tornozeleira
estaria afastando as pessoas que frequentavam o espaço.
Lembranças
do cárcere
Assim como a maioria dos manifestantes, o homem
foi capturado por policiais no Quartel-General do Exército (QG), no dia
seguinte aos atos de vandalismo na Praça dos Três Poderes, dos quais garante
não ter participado. Segundo ele, sua presença em
frente ao QG se deu em razão do descontentamento com o governo Lula e com o
ensino da ideologia de gênero nas escolas, apoiado pela extrema
esquerda.
Durante o
tempo que passou na Papuda, ocupou três celas diferentes. Na primeira, dividiu
com 19 pessoas um espaço com capacidade para oito. O
homem se lembra de noites em que a água da chuva ensopava colchões e
cobertores, da má qualidade do alimento, da zombaria de carcereiros, do forte
odor que vinha do banheiro comunitário e de momentos de acirramento de ânimos
entre os detentos. Na segunda cela, o número de pessoas era
reduzido, assim como na terceira.
Apenas
depois de 20 dias preso, conseguiu falar com advogados, por meio de videoconferência.
Nesse momento, espantou-se consigo mesmo na câmera, por
causa da barba comprida e da magreza — perdeu 12 quilos em 70 dias.
No mesmo
período, conseguiu uma colher para comer, o que facilitou o consumo de mais
alimento.
Antes de
obter o talher, comia com a tampa da marmita.
Posteriormente,
os restos do recipiente se tornavam material para jogos entre os presos, como
um tabuleiro de damas, por exemplo.
Semanas
depois, o homem conseguiu ter acesso a papel e caneta,
os quais usou para fazer registros do dia a dia na cadeia, além
de apelar e agradecer a Deus com passagens da Bíblia. “Estou firme e confiante”,
escreveu em uma das notas. “Neste momento, isolo o meu campo vibracional dos
demais presos da cela.” Após conseguir um alvará de soltura do STF, fez
uma citação às deidades cristãs: “Querido Deus, mestre Jesus. Eu agradeço
por conceder a graça de ser liberto e responder em liberdade do que me acusam”.
Sem data para acabar
Hoje, apesar de distante da Papuda, o homem ainda se sente preso e tem um
comportamento diferente do normal. Nas ruas da cidade, caminha como se tivesse
pressa, muito embora sem um compromisso importante marcado, com o corpo
retraído e mãos nos bolsos. Qualquer gesto de alguém que se aproxima atrai os
seus olhos atentos, como se quisesse prevenir-se de
algo que vem em sua direção.
“O pior é
não saber quando isso vai ter fim”, desabafou, ao derramar algumas lágrimas. “Tenho de viver todos os dias com a sensação de que a polícia
pode vir me prender. É um pesadelo.” A mesma sensação se estende a
amigos e familiares. Segundo ele, sua mãe, a mulher e os filhos procuram manter
a normalidade em relação a tudo, porém, também vivem sob tensão. “Eles também viraram prisioneiros da incerteza e do medo”, observou.
Desde que
saiu da Papuda, o homem tem feito tratamento psicológico, com apoio religioso. Além disso, está encontrando
meios de ajudar a mulher a pagar as contas, visto que a empresa dele perdeu
clientes e, enquanto esteve preso, apenas a esposa custeou as despesas do
imóvel, como água e luz, e a parcela da casa, que é financiada. Para ajudar no
orçamento do casal, o homem vendeu o próprio carro, tão logo deixou a
penitenciária. Agora, a família usa apenas um automóvel. O homem afirmou que
três coisas o mantiveram firme no cárcere, às quais pretende continuar
apegado: a religião espírita, a mulher e sua família.
“Sem isso, não sei o que teria sido de mim lá dentro”, disse. “São a minha
estrutura. Sei que vamos atravessar essa tempestade, juntos.”
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Crystian Costa, colunista - Revista Oeste