Revista Oeste
Apesar do surto de infecções, a chegada da nova variante pode mudar os rumos da covid-19
Entre trancos e solavancos, o mundo adentra o terceiro ano de pandemia com boas notícias. A descoberta da variante Ômicron, identificada pela primeira vez em novembro na África do Sul, pode significar, enfim, o fim da era covid-19. Não que o coronavírus vá desaparecer do planeta. Não. O vírus detectado em Wuhan, na China, veio para ficar. Mas deverá permanecer sob controle, como tantos outros que circulam invisíveis entre a população mundial há séculos. Uma enquete feita pela revista Nature no começo de 2021 com cem imunologistas, virologistas e epidemiologistas que pesquisavam o novo coronavírus revelou que cerca de 90% deles acreditavam ser improvável que a covid-19 fosse erradicada. Contudo, será bem mais fácil conviver com uma doença que se comporta da mesma maneira que uma gripe comum. Pelo menos, esse é o cenário que se desenha atualmente no mundo com o aumento de infecções pela nova variante.
Apesar da Ômicron, mortes não acompanham alta de casos
A histeria coletiva causada pela Ômicron se mostrou muito pior do que os efeitos da própria variante. Assim que a Organização Mundial da Saúde (OMS) a classificou como “variante de preocupação”, os países acenderam o alerta vermelho. O mercado financeiro desabou, o espaço aéreo foi fechado, as medidas de controle social voltaram a ameaçar a liberdade dos cidadãos. A Ômicron, contudo, “decepcionou” os pandelovers e os fanáticos pelo lockdown e já mostrou que vai passar. A história na África do Sul indica isso. Depois do crescimento galopante de casos de covid, o país anunciou, em dezembro do ano passado, o fim do pico de transmissão. E isso deve se repetir em outras nações. Enquanto o surto não passa e o número de infectados bate recordes no mundo, a boa-nova é que a quantidade de mortes não avança na mesma proporção. A média móvel global de óbitos nos últimos sete dias está em 6,7 mil, mesmo patamar de outubro de 2021, segundo dados da plataforma Our World in Data.
No Brasil não é diferente. Apesar do aumento de casos, as mortes continuam em patamares baixos, em comparação com o pico da pandemia. A média móvel de mortes hoje é de cerca de 140. No pior momento da crise, em abril do ano passado, chegou a pouco mais de 3 mil óbitos. Como a circulação da Ômicron já é dominante no Brasil, segundo declaração, na terça-feira 11, do próprio ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, a tendência é que as contaminações mais brandas não impactem significativamente em hospitalizações graves e mortes. O clínico geral e doutor em imunologia Roberto Zeballos, em entrevista ao programa Direto ao Ponto, da Jovem Pan, fez uma provocação sobre o atual momento da pandemia no país. “Vamos fingir que somos uma avestruz, com a cabeça dentro de um buraco”, disse. “Vamos tirar a cabeça da avestruz do buraco e olhar: as UTIs estão lotadas? Não. As crianças estão morrendo? Não. O nível de mortes está caindo? Está. Estamos em uma situação não emergencial.”
O cenário poderia ser ainda mais favorável por aqui não fosse o surto de gripe que se instalou em várias regiões do país. Mais comum no outono e no inverno, quando as pessoas ficam muito tempo confinadas em ambientes com pouca circulação de ar, o aumento de casos de gripe nesta época do ano está associado a alguns fatores. Um deles é o surgimento da variante H3N2, chamada Darwin, que não entrou na fórmula da vacina contra gripe aplicada em 2021 no Brasil. “Os vírus que circulam agora são como se fossem filhotes de vírus dos anos anteriores”, explica a infectologista Patrícia Rady Muller. “Como no ano de 2020 não havia circulação do H3N2, a vacina do ano passado não tinha essa cepa. Por isso que as pessoas estão mais desprotegidas.” Outra hipótese é que, como muita gente ficou reclusa por longos períodos em 2020 e 2021, os vírus respiratórios pararam de circular. “Para que ocorra uma infecção no organismo, é preciso que o vírus esteja presente e que ocorra a queda da imunidade da pessoa”, disse a infectologista.
A dupla virótica de H3N2 e coronavírus circulando ao mesmo tempo provocou uma corrida por testes para detectar as doenças. Para quem procura os exames nas farmácias, as filas e a falta de estoque são os principais gargalos. Dados da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias mostram que cerca de 284 mil testagens foram feitas entre 27 de dezembro e 2 de janeiro: 50% superior ao de 20 a 26 de dezembro. No entanto, o efeito da escalada de testagem em massa está provocando um verdadeiro caos em diversos setores da economia. Bares e restaurantes estão desde dezembro tendo de afastar em torno de 20% dos funcionários, toda semana, por suspeita de gripe ou covid, segundo informação do presidente da Associação Brasileira de Bares, Paulo Solmucci.
A Ômicron já mostrou que não tem preconceito: contamina vacinados e não vacinados
Na manhã desta quinta-feira 13, a espera para fazer um teste de covid-19 no Hospital Sírio Libanês, por exemplo, era superior a duas horas. Motivo: além do aumento da demanda, um número enorme de funcionários não estava trabalhando por suspeita de gripe ou contaminação pelo coronavírus. A alta em casos e suspeitas de infecções em tripulantes já afeta voos nas maiores companhias aéreas do país. No mundo, só no Natal, 4,5 mil voos foram cancelados. Várias empresas adiaram o retorno ao trabalho presencial, e setores como a construção civil e os bancos também sentiram os impactos do afastamento de funcionários por covid.
Nesta semana, o Ministério da Saúde seguiu a mesma recomendação das autoridades dos Estados Unidos e reduziu o período de quarentena para pessoas infectadas com a covid-19 de dez para sete dias, caso o paciente não tenha sintomas há pelo menos 24 horas. O período pode cair para cinco no caso de assintomáticos. Apesar de não ser consenso entre especialistas, para o médico médico-cirurgião oncológico com pós-doutorado em epidemiologia estatística Luiz Bevilacqua, a medida é acertada. “O custo financeiro-social de diagnosticar e isolar pessoas assintomáticas está sendo desproporcionalmente elevado, tendo em vista a benignidade da doença”.
Além disso, a Ômicron já mostrou que não tem preconceito: contamina vacinados e não vacinados. “A vacina não impede a contaminação de vacinados”, observa Bevilacqua. “Então, qual o sentido de afastar pessoas que testaram positivo para a doença e estão assintomáticas?” A Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica já alertou para a possibilidade de falta de testes de antígeno e PCR, caso os estoques de insumos não sejam repostos “rapidamente”. Bevilacqua questiona se essa disparada às farmácias em busca de testes é a melhor estratégia neste momento: “Será que pessoas assintomáticas, que já tomaram a vacina, precisam ser testadas?”, indaga.
Atualização das vacinasAtualmente, o principal foco das vacinas é a spike, a proteína que o vírus usa para invadir a célula. A Ômicron, por exemplo, apresenta 32 mutações só na spike, o que ajuda a explicar a resistência da nova variante aos imunizantes. “As vacinas ajudaram lá trás com outras variantes, mas hoje não estão solucionando o problema no caso da Ômicron”, disse Zeballos, durante a entrevista ao Direto ao Ponto. A primeira morte confirmada pela Ômicron no Brasil ocorreu na semana passada. O paciente, de 68 anos, tinha comorbidades e, de acordo com o Ministério da Saúde, havia recebido três doses de vacina contra a covid-19. É bom lembrar que, antes mesmo da chegada da nova cepa, as vacinas já não se mostravam 100% eficazes para evitar contaminações.
Estudos mostram, contudo, que pessoas vacinadas têm menor risco de contrair a doença e, ainda que sejam diagnosticadas, têm menores chances de evoluir para casos graves e mortes. Hoje, há dez imunizantes sendo aplicados em regime de liberação emergencial no mundo, segundo a OMS. No entanto, a natureza foi mais rápida do que a ciência. Todas essas vacinas desenvolvidas em 2020 foram baseadas na versão “original” do vírus, que praticamente não circula mais no mundo. “A cepa Ômicron é muito diferente das que a antecederam. Ela é quase um novo patógeno”, disse a pneumologista Margareth Dalcolmo, em entrevista para a Band News nesta semana. Mesmo assim, as doses de reforço vacinal continuam sendo aplicadas quase como uma obsessão. Israel e Chile, por exemplo, já chegaram à quarta dose.
Finalmente, e com algum atraso, a OMS admitiu nesta semana que as vacinas contra a covid precisam ser atualizadas. A organização informou que as atualizações devem provocar respostas imunes “amplas, fortes e duradouras”, a fim de reduzir a aplicação de contínuas doses de reforço. E mais, a OMS orienta que a nova geração de vacinas precisa, além de prevenir contra casos graves e mortes, oferecer proteção maior contra a infecção, “diminuindo assim a transmissão comunitária e a necessidade de medidas sociais e de saúde pública rigorosas”. Nenhuma novidade. As vacinas contra a gripe são atualizadas todos os anos. Para 2022, por exemplo, a OMS já incluiu a variante Darwin em sua fórmula vacinal.
Diante dos fatos, as justificativas para exigir um passaporte de vacinação ficam ainda mais esvaziadas. Na mesa, o que está em jogo é muito mais um debate sobre poder e liberdades individuais do que sobre ciência. Basta ver o que fizeram com o tenista sérvio Novak Djokovic na Austrália, preso em um quarto de hotel por não estar vacinado. Ou o que aconteceu com os cruzeiros marítimos no final do ano, em que a exigência do comprovante de vacina de toda a tripulação e de passageiros não impediu surtos de covid entre 100% vacinados.
Enquanto vacinas mais modernas não chegam ao mercado, os cientistas continuam monitorando alterações virais que possam interferir no curso da pandemia. A gripe é controlada dessa maneira. Há 105 anos, uma variante da influenza causou a maior catástrofe sanitária do século passado. A gripe espanhola, como ficou mundialmente conhecida, matou cerca de 50 milhões de pessoas entre os anos de 1918 e 1920. Atualmente, a influenza se tornou endêmica — continua em circulação e provoca epidemias sazonais —, mas as autoridades sanitárias estão atentas para identificar variantes prevalentes e, assim, turbinar uma versão de vacina antigripal mais potente e eficaz. Estima-se que, por ano, morram em todo o mundo, em média, 650 mil pessoas devido à gripe sazonal. Essa letalidade passou a ser aceitável, e nem por isso adotam-se medidas rigorosas para evitar o contágio, como lockdowns, trabalho remoto e uso infinito de máscaras.
O coronavírus deve seguir os mesmos passos. “Acredito que, neste ano, a covid vai atingir o nível endêmico e se tornar uma doença como qualquer outra”, afirma o infectologista Francisco Cardoso. “Não vai haver mais elementos para manter o status de pandemia.” O fracasso das tentativas de lockdown impostas no mundo todo mostra que não há como implantar um plano covid zero. O retorno ao normal depende de como a humanidade vai aprender a conviver com a doença.
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Bruna Leal, colunista - Revista Oeste