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quinta-feira, 4 de março de 2021

Cada um por si - William Waack

O Estado de S. Paulo

A pandemia acelerou a já existente perda de autoridade do governo [Tudo a seu tempo - cada passo ao seu tempo;  agora provocam, após fracassar em todas as tentativas, na tentativa de que a pretexto de provar que não perdeu autoridade, o governo busque o autoritarismo.
Para que? interpretar como autoritarismo o que nada produz e quando produz algo são  arbitrariedades que se esvaem por si!]

Já é lugar comum afirmar que o maior efeito da pandemia ao redor do mundo foi o de acelerar ou agravar problemas já existentes. No caso do Brasil, ela escancarou a falta de governo, além da desigualdade, miséria e ignorância, mazelas bem antigas. No Brasil, a pandemia não “inventou” a má gestão pública nem o desperdício de recursos. Ela ensinou que não há governo efetivo sem capacidade de liderança política – outro problema do qual padecemos há tempos. 

A extraordinária incapacidade de Jair Bolsonaro para liderar e coordenar criou com a pandemia um fenômeno novo na política brasileira. É o cada um por si dos entes da Federação, e a instituição da dupla de primeiros ministros nas figuras dos presidentes das casas legislativas. Em linguagem militar, talvez ainda familiar a alguns ocupantes do Planalto, o Estado Maior da crise não está como deveria estar na Casa Civil e no Ministério da Saúde (instâncias do Executivo sob o comando nominal de generais) mas, na prática, foi para o Congresso

É nas casas legislativas que se decide agora o essencial para se tentar minorar os devastadores efeitos da maior tragédia da nossa história recente. É para lá que correm prefeitos e governadores na linha de frente do combate ao vírus. [chegam de mãos vazias e saem de mãos abanando] É lá que se negocia a aprovação de um mínimo de ajuda que impeça pessoas de morrer de fome. É lá que existe pressa e urgência para flexibilizar e acelerar a aquisição de imunizantes por quem quer que seja, incluindo empresas privadas. O arcabouço jurídico foi criado pelo STF, que transformou um de seus integrantes em virtual ministro da Saúde. [só que as decisões do virtual ministro da Saúde, imposto pelo STF, que tudo indica é o ministro MD Lewandowski, tem sua ação limitada ao estabelecimento de prazos para apresentação pelo ministro da Saúde,  presencial, de cronogramas de vacinação.

Na maior parte das vezes não tem sido atendido de forma exitosa, visto que o ponto de partida de qualquer cronograma é a data do inicio que, no caso dos 'planos de vacinação',  depende da data exata da chegada dos fármacos ao Brasil - data que está sob controle de outros países, especialmente a China, país que prioriza os SEUS interesses aos de outras nações.]

Um resultado evidente dessa situação cujo alcance Bolsonaro não parece ter percebido ainda é a profunda desmoralização política associada a um governo visto como incompetente. Presidentes anteriores já foram desmoralizados por eventos abrangentes em parte piorados por eles mesmos, como ocorreu com Sarney/Collor (hiperinflação)Dilma (recessão). No caso de Bolsonaro, além do estelionato econômico eleitoral do qual Paulo Guedes está se tornando cúmplice, é a pandemia que acelera perigosa desmoralização. 

A confluência de crise econômica, tragédia de saúde pública e incapacidade de liderança política (com seus graves riscos de populismo fiscal) compõe a “tempestade perfeita” mencionada por agências de classificação de risco ao publicarem no começo da semana cenários a curto prazo para o Brasil. O agravamento da crise de saúde pública faria as demandas sociais crescerem em ritmo mais rápido do que o “tempo político” necessário para a aprovação de medidas de contrapartida à continuidade da ajuda emergencial, trazendo ainda mais insegurança aos agentes na economia. 

Bolsonaro está no modo de sempre, dedicado a buscar culpados e livrar-se de responsabilidades. A aparente tranquilidade com que enfrenta um quadro que se agrava nitidamente vem de dois fatores proporcionados por sua estreita visão da realidade. O primeiro é a percepção de garantia política dada pela dupla de primeiros ministros – que, na verdade, mal controlam as próprias casas, como ficou demonstrado no episódio da PEC da imunidade ou impunidade dos parlamentares. 

[Felizmente, existe a opinião pública - ou publicada (copiamos do Alon Feuerwerker) e a da presente matéria é a publicada]

O segundo é o aparente conforto trazido pelo aparelhamento das instâncias superiores do Judiciário – nomeações “casadas” para o STJ e STF, em estreito entendimento com os movimentos políticos evangélicos. Percalços jurídicos policiais de curto prazo em relação à família do presidente estão afastados, ao mesmo tempo em que não existe nada remotamente parecido à presença de uma Lava Jato para criar dificuldades políticas agudas para o atual governo (como aconteceu com Dilma). 

Desmoralização é um fenômeno político forte e de difícil reversão, que costuma nascer e se propagar primeiro nos vários componentes de elites (administração pública, setores empresariais e financeiros, profissionais liberais, elites culturais em sentido amplo). A perda de autoridade de Bolsonaro já se fazia sentir antes da pandemia, fato demonstrado pela maneira como o Legislativo e o STF encurtaram seu poder. A pandemia, como se diz, acelerou o que já existia.

William Waack,  jornalista - O Estado de S. Paulo

 

quarta-feira, 13 de julho de 2016

É cada um por si e Deus só por alguns

Fiasco albanês, um prócer irrelevante e um suspeito na polícia comandam a Câmara

Ao renunciar à presidência da Câmara dos Deputados na semana passada, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) foi de uma precisão cirúrgica quando desqualificou a atual administração da Casa ao empregar a expressão “interinidade bizarra”. Com o morteiro disparado na direção do primeiro sucessor do presidente (também interino) da República, Michel Temer, o ex-ocupante do poderoso e honorável posto, “sem querer querendo”, como rezava o mote do protagonista de um dos maiores sucessos da televisão brasileira, o mexicano Chaves, definiu a esdrúxula situação sob a qual vivemos todos nesta atual barafunda.

Esta nossa República é tudo menos honrada, serena e lógica. Os três Poderes atuam como se vivessem em mixórdia e intromissão permanentes, um nos outros e vice-versa, chamando o nefasto resultado geral, cínica e equivocadamente, de “autonomia”. Esta se impôs sobre a “harmonia” na base do braço de ferro e do berro mais alto. Nas atuais circunstâncias e há bastante tempo, o lema “ordem e progresso” da Bandeira Nacional não descreve a desordem vigente, a ponto de dever ser substituído por “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Em relação a esse recado generalizado à cidadania, o povo, impotente, fica na condição do “salve-se quem puder” e o resto que se dane.

De acordo com chamada na primeira página deste jornal,
domingo, o segundo maior fornecedor da campanha vitoriosa da reeleição da presidente afastada, Dilma Rousseff, Carlos Augusto Cortegoso conhecido como “garçom do Lula”, por tê-lo servido nos anos de liderança sindical no Demarchi, famoso restaurante no circuito do frango com polenta em São Bernardo do Campo –, movimentou quase R$ 50 milhões naquele pleito. Ou seja, cinco vezes o valor que declarou. Assim, a chapa Dilma-Temer teria cometido, conforme relatório da Receita Federal, duplo crime: foi financiada por caixa 2 e, ao declarar que as doações eram legais, lavou o dinheiro sujo na máquina da Justiça Eleitoral. Um desplante!

Caso o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) constate o duplo delito na investigação que promove sobre a validade dos votos sufragados em 2014, terá de mandar presidente e vice entregarem o poder ao presidente da Câmara dos Deputados, seja ele quem for. Este terá 90 dias para convocar eleição direta para um mandato-tampão até dezembro de 2018, quando, então, já terá sido eleito seu substituto constitucional. Em sufrágio direto e universal, se a disputa for este ano, antes de ser completada a primeira metade do mandato dado como usurpado por abuso de poder econômico (e com uso de dinheiro público, o que é mais grave). Ou em eleição indireta, pelo Congresso, se a decisão for posterior.

Ocorrendo isso, em qualquer das hipóteses, falirá a lorota do “impeachment sem crime é golpe”, que mantém o fio inconsútil do que ainda resta do mandato de Dilma e do PT. Seu substituto constitucional, Michel Temer, eleito vice também de forma supostamente ilícita, sucumbirá junto. E levará no féretro a equipe econômica mais equipada para tirar o Brasil da crise e reconstruir a credibilidade do Estado. A Nação ficará, na hipótese, a reboque de algum aventureiro que emergir das urnas ou do painel do plenário parlamentar, ambos eletrônicos. Não será algo a se chamar de “o melhor dos mundos”. Muito ao contrário!

A eleição direta, única capaz de refletir a vontade popular, é volátil a ponto de ter inflado, de um lado, Jânio, Collor e Dilma, produtos da paixão popular por aventureiros que se fingem de faxineiros contra a corrupção e terminam enredados nos crimes que denunciavam. E, de outro, Fernando Henrique e Lula, representantes de grupos políticos consolidados que terminaram se dissolvendo numa cultura de ácido implacável que derrete idolatrias e reputações. O tucano foi abatido pela vaidade do segundo mandato. O petista, pela ilusão do fogo-fátuo da fortuna fácil.

O esfarelamento dos partidos, flagrado na disputa da presidência da Câmara por meio ano e meio mês, desmoraliza utopias como o parlamentarismo e suas variações “semi”. E revela o pragmatismo de chiqueiro na disputa pela proximidade da gamela em que é servida a lavagem. O baixo clero que elevou Cunha ao cargo que lhe permitiu abrir o impeachment da desafeta de última hora, Dilma, logo se desfez diante da evidente ausência de um mínimo de espírito público nele.

Waldir Maranhão, eleito vice na chapa vencedora por 80% dos pares, muitos dos quais certamente agora fingem tapar o nariz, entregou-se à farra do poder inesperado, participando de farsas tão absurdas como a tentativa de interromper o impeachment no Senado apenas pela vontade de seu líder, Flávio Dino (PC do B), governador do Maranhão. Ou seja, pelo projeto político de entregar o destino de uma das dez maiores economias do mundo à ditadura grotesca que produziu a excrescência albanesa, retrato de miséria política e econômica num continente abastado e plenamente democrático.

Para completar, o bizarro intendente interino tem mais dois diabos a servir. De um lado, Rodrigo Maia (DEM), herdeiro de César Maia, hoje sem relevância na política do próprio Estado, o Rio. E, de outro, pai Lulinha, cujo impávido colosso desmoronou sob sua imagem corroída por várias investigações policiais e jurídicas. Representante de um Estado sem peso político e econômico e incapaz de conduzir sessões da Câmara até o fim, Maranhão balança entre um prócer irrelevante e outro investigado pela Polícia Federal, pelo Ministério Público Federal e Estadual de São Paulo, sob a égide da Justiça Federal no Paraná e da Estadual em São Paulo. A bizarria do interino desfila entre o baile da saudade e a medalha olímpica dos saltos orçamentais.

A hipotenusa do triângulo é o Judiciário do “cada um por si e Deus só por alguns”, regime no qual a paridade de todos é submetida a privilégios que a promiscuidade assegura.


Fonte: José Nêumanne, jornalista, poeta e escritor - O Estadão