O Estado de S.Paulo
Há um sentimento muito importante de perda de dignidade humana, de abandono
O cenário da pandemia é o da incerteza, não se sabe exatamente quando
será o seu fim e, quando vier, como se voltará ou não à normalidade
anterior. E mesmo lá a experiência atual ainda se fará fortemente
presente, veiculando seus próprios valores. Neste meio tempo, estamos
vivendo uma situação que, apesar de ser dita transitória, está se
constituindo numa nova normalidade. É o aprendizado de algo novo.
Na vivência desta nova normalidade, os valores estão sofrendo profunda
mutação. Os fatores são múltiplos:
1) as pessoas estão mais reclusas,
isoladas, voltadas para seus núcleos familiares, matrimoniais ou de
amizade;
2) enquanto a vida familiar e matrimonial é presencial, a vida
profissional é virtual, estabelecendo dois tipos de comunicação e de
relacionamento; 3) ao saírem, as pessoas usam máscaras, mantêm distância
umas das outras, o que significa que o outro é uma ameaça, alguém que
pode transmitir a doença e, talvez, a morte;
4) a própria noção de
consumo sofre forte transformação, porque a atenção se volta para o
necessário para viver nestas circunstâncias, e não para o que passa a
ser considerado supérfluo;
5) as pessoas passam a se vestir mais
simplesmente, com menor preocupação com a aparência, estabelecendo uma
distinção entre a vestimenta presencial e a virtual, ou mesmo uma
tomando o lugar da outra.
A linha divisória, aqui, é o medo da morte, que pode acontecer a
qualquer momento pela ação de um inimigo invisível, mas bem real, o
coronavírus, que a qualquer momento pode atacar. O medo da morte
comunica-se, assim, a outra pessoa, vista como uma ameaça, por mais que a
estimemos, amemos ou a desprezemos. A cara do outro, por sua vez, é uma
máscara. Não assusta como num filme de terror, porém não deixa de
aterrorizar, na medida em que ela é vista como uma proteção contra um
inimigo que ali pode estar.
As pessoas querem distância umas das outras, diferentemente do que
acontecia antes da pandemia, quando havia a proximidade, o cumprimento e
o toque. É o medo que estipula a distância.
Vejamos algumas situações:
1) uma criança verá na outra, na escola, não mais somente um(a) colega
ou amigo(a), mas alguém também ameaçador. Quais serão os reflexos disso
mais adiante?
2) Num shopping ou numa loja de rua, a relação
estabelecida não é somente a de compra e venda, produto e consumo, mas
de desconfiança.
- Posso confiar que as mãos do(a) vendedor(a) estão
limpas?
- Será que sua máscara tem a espessura suficiente de proteção?
- Estará ela higienizada?
3) Num ponto de ônibus ou num metrô, as pessoas
olham desconfiadas umas para as outras, como se o local e o veículo
pudessem ameaçá-las. 4) Como se faz um namoro nestas circunstâncias,
como as pessoas se aproximam, se a distância deve ser a regra?
- As
pessoas passarão a pedir testagem antes de estabelecerem uma relação?
- E
quanto tempo vale a testagem?
- Como ficam o beijo e a relação sexual?
5)
Sob quais condições de confiança se compra um imóvel num estande, se a
desconfiança ali predominar?
De um lado, a pessoa deve ter confiança ao
comprar um imóvel, de outro, porém, se vê na desconfortável situação de
desconfiar do vendedor.
6) Como fica o comparecimento a um templo, a uma
igreja, se olho com desconfiança para o lado, para a frente e para
trás, verificando se as distâncias de proteção sanitária são cumpridas
no momento mesmo em que a pessoa se entrega à oração e a Deus?
As pessoas estão muito mais inseguras. Algumas perdendo o emprego,
outras sofrendo redução salarial, outras trabalhando só na metade do
tempo. O desemprego e a queda da renda, numa situação de pandemia, são
em muito agravados, porque as pessoas se sentem ainda mais
desguarnecidas.
Como vão conseguir um novo trabalho nesta situação?
Qual
o risco de sair de casa para buscar um novo emprego?
Como alimentar os
seus?
Há um sentimento muito importante de perda de dignidade humana, de
abandono, o que se traduz não apenas psicologicamente, mas também
familiar e existencialmente.
Os núcleos familiares são muito diferentes entre si. Uns constituem
casais heterossexuais com filhos numa situação econômica estável. Outros
numa condição econômica precária. Outros constituem casais
homossexuais. Outros têm relações amorosas abertas, acostumados com
outro tipo de vida social, e assim por diante. Isso significa que os
sentimentos que nascem de tais relações podem ser moralmente mais
elevados quanto mais baixos, uns baseados em Eros, outros em Tânatos,
outros na solidariedade, outros na agressividade. Tais valores e formas
de conduta se reconfiguram diferentemente em pandemias, nesta nova
normalidade, dadas as condições de reclusão, medo, desconfiança e
insegurança.
Nas sociedades modernas, as pessoas estão muito voltadas para si mesmas,
na busca do desejo, na procura incessante do prazer, nos
entretenimentos que podem extrair da vida.
- O que acontece, porém, se
outras dimensões da vida/morte se fazem presentes?
- E se as pessoas
aprenderam a viver diferentemente?
Denis Lerrer Rosenfield, professor de filosofia - O Estado de S. Paulo