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sábado, 19 de novembro de 2022

Mensagem aos manés - Revista Oeste

Guilherme Fiuza

Eu posto em plena eleição a frase “Já vai tarde”. Eu falo mesmo. Boto a minha cara. Escancaro a minha parcialidade, o meu partidarismo, a minha compostura de juiz de várzea. Não tô nem aí 

Ministro Luís Barroso perde a linha com manifestante em Nova York | Foto: Montagem Revista Oeste/ Reprodução

Ministro Luís Barroso perde a linha com manifestante em Nova York | Foto: Montagem Revista Oeste/ Reprodução  

Perdeu, mané. Eu estou em Nova York comendo do bom e do melhor, celebrando a vitória do candidato que eu descondenei, protegido do meu vexame pelas mágicas palavras do William Bonner e do Heraldo Pereira, meu parceiro de caraoquê. 
Não adianta você, mané, ficar gritando na minha orelha o texto da Constituição, as sombras do sistema eleitoral, as incongruências da votação, a censura que nós baixamos para proteger a imagem do bom ladrão. Nada disso adianta. Quando chegar à noite o Jornal Nacional enxagua todos os nossos atos e acaba com a raça dos manés.

Perdeu, mané.
Eu falo qualquer merda e não pega nada pra mim. Eu digo que eleição não se ganha, se toma.  
Digo isso em pleno Congresso Nacional, onde fui mudar o rumo de uma votação para a instituição do voto auditável. 
E ainda falo aos quatro ventos que os que pedem o aperfeiçoamento do sistema de votação querem, na verdade, fraudar a eleição.   
E eu ainda digo que querem a volta ao sistema de cédulas de papel. Eu minto mesmo. Como já disse: falo qualquer merda e não pega nada pra mim.

Perdeu, mané.
Eu posto em plena eleição a frase “Já vai tarde”. Eu falo mesmo. Boto a minha cara. Escancaro a minha parcialidade, o meu partidarismo, a minha compostura de juiz de várzea. Não tô nem aí. De noite o Bonner me absolve. Ou, como diz o meu candidato honesto, me abissorve.

barroso


Perdeu, mané.

Você não sabe como a vida é boa. Você não sabe o que é ser imune a tudo e a todos, não sabe o que é a sensação de usar uma capa de super-herói diariamente, sobrevoando as leis, o direito e a sociedade inteira. Um mané como você jamais vai ter o prazer transcendental que eu tenho de canetar o que eu quiser e mudar a vida das pessoas ordinárias como você num segundo, obrigando-as a fazerem com a sua saúde, as suas finanças e a sua liberdade o que me der na telha.                            Nós transformamos vocês em delinquentes sem fazer o menor esforço, às vezes estamos até bocejando nessa hora. E de noite o William confirma que é isso mesmo que vocês são

Perdeu, mané.
Mas não pense que eu sou um iluminado. Somos vários iluminados. Todos com capa de super-herói. Cada barbaridade de um de nós é protegida e reforçada pelas barbaridades dos colegas — e até o cala a boca já morreu renasce se for preciso, sempre por uma boa causa. Pergunta ao Bonner se não tem censura do bem.
 
Perdeu, mané.
Fica aí se espremendo na rua com esses seus pedidos de mané que aqui do ar-condicionado a gente dá uma coçadinha na caneta e em questão de minutos a nossa polícia está em cima de vocês, tratando esse bando de manés como criminosos, que é o que vocês são. Ou melhor, não são. E isso é o mais gostoso de tudo: nós transformamos vocês em delinquentes sem fazer o menor esforço, às vezes estamos até bocejando nessa hora. E de noite o William confirma que é isso mesmo que vocês são: criminosos. Você não tem ideia de como é gostoso viver com uma varinha mágica na mão.

Então é isso, mané. Fica aí na sua vidinha de merda enquanto eu voo majestosamente entre Nova York, Boston, Paris e Londres — lugares que você só conhece de fotografia, porque não são pro seu bico. Ou no máximo você foi pra lá limpar o chão que eu piso ahahaha. Desculpe, me deu vontade de rir. Eu rio à toa. Agora dá licença que eu preciso puxar o saco dos milionários que me convidam pras melhores paradas, mané, e cuidam bem de mim porque eu sou maravilhoso.

E vê se não amola, porque se todos começarem a acreditar no que você fala, mané, pode dar ruim pra mim. Aí o encanto acaba e eu viro abóbora. Eu não quero ser abóbora. No máximo lagosta ou caviar. [o pior é que todos não só começam a acreditar, como também a ter provas que o mané fala a verdade.]

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segunda-feira, 24 de outubro de 2022

O lance é comer barro - Gazeta do Povo

Guilherme Fiuza - VOZES


É hora de fazer uma escolha importante. Você é livre para escolher, mas naturalmente vai procurar referências à sua volta para decidir qual é a melhor escolha.

Pessoas em quem você confia, ou que você admira, ou pelo menos com as quais você simpatiza certamente estão por aí expressando suas preferências. Muitas delas são pessoas públicas, então você nem tem o trabalho de procurá-las. Elas vêm até você espontaneamente – é só dar uma olhada para a tela do seu telefone que elas estarão lá. E se são famosas, mais um motivo para você prestar atenção nelas. A fama não vem por acaso.

Se você é o tipo de pessoa teimosa, com dificuldade para ouvir os outros e mais ainda para seguir a opinião alheia, não tem problema. Vamos fazer aqui um exercício teórico para te ajudar a baixar essa guarda e aprender a se abrir ao que o outro tem para te oferecer – sem preconceitos.

Por exemplo: vamos imaginar um cenário em que pessoas influentes começassem a dizer que a melhor escolha é comer barro. Comer barro?! Você logo diria “estou fora dessa”. Mas isso poderia ser puro preconceito e teimosia da sua parte. E a decisão de observar com calma as referências à sua volta poderia te despertar para escolhas que você nunca tinha imaginado que seriam boas.

Seguindo então com o nosso exercício hipotético:
você deixaria de ser teimoso e passaria a ouvir o que pessoas conceituadas teriam a dizer sobre aquela escolha. As pessoas conceituadas sempre têm algo a dizer sobre tudo. Aí você pegaria o seu telefone e lá estaria o Caetano dizendo: decidi, vou comer barro. Tudo bem que você não quisesse fazer a sua escolha só com base no exemplo do Caetano, mas logo a seguir você encontraria o Armínio recomendando: o melhor é comer barro.

Bom, se é o Armínio que está dizendo, com aquela simpatia e aquela conta bancária, você começaria a considerar mais seriamente essa escolha. E no frame seguinte viria a Paolla Oliveira dizendo que quem não comer barro está por fora. Com uma pele daquelas, a Paolla deveria saber do que estava falando.

Prosseguindo na sua busca por uma abertura espiritual para as boas influências, você toparia com o Fernando Henrique declarando: barro! Mas ele não tinha dito que barro é ruim e faz mal? – ponderaria você. Tinha, mas agora ele é barro e não abre.

Surgiria então um clipe da Companhia das Letras, altíssimo astral, onde livros apareceriam servindo de bandeja para se comer barro. Nessa altura o seu coração já estaria amolecendo: legal, comer barro deve ser coisa de gente culta.

Você não estaria ainda totalmente convencido, até dar de cara com o William Bonner enchendo a boca na telinha para dizer que comer barro não tem nenhuma contraindicação. “O barro não deve nada ao chocolate”, decretaria o âncora. Você a princípio hesitaria, achando que já tinha visto o Bonner noticiando problemas sérios com a ingestão de barro num passado recente. Mas só podia ser uma traição da sua memória, porque estava todo mundo dizendo, com ênfase e alegria, que a melhor escolha a fazer é comer barro.

Superando finalmente a sua teimosia e o seu preconceito, você sacramentaria a sua escolha. Empolgado, tentaria até se aproximar de uma dessas estrelas que te levaram para o bom caminho, para tirar uma foto comendo barro com elas. Mas infelizmente isso não seria possível. Elas estariam ocupadas comendo caviar.

Guilherme Fiuza, colunista - VOZES - Gazeta do Povo 

 

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

O golpe do papa



O papa Francisco, de maneira indireta, portanto dissimulada, está fazendo coro com a militância ideológica que grita contra o golpe de Estado
O papa Francisco cancelou sua viagem ao Brasil em 2017 afirmando que o paísvive um momento triste”. Vamos traduzir essa tristeza: o líder máximo da Igreja Católica está apoiando Dilma Rousseff, a despachante da quadrilha que depenou o país entristecido. Mas a tristeza sentida pelo sumo pontífice não é com o roubo, é com a punição aos ladrões.

O papa Francisco, de maneira indireta, portanto dissimulada, está fazendo coro com a militância ideológica que grita contra o golpe de Estado – esse em que a criminosa golpeada dialoga com os golpistas (e ri com eles), sob a regência constitucional da Corte máxima do país. Uma bandeira de mentira, fajuta e imunda, que agora é levantada também pelo papa Francisco.

Isso não teria a menor importância num mundo que soubesse distinguir um líder espiritual de um mercador da bondade. Mas a demagogia supostamente progressista – na verdade reacionária – é hoje a commodity mais valorizada do planeta, e nenhum candidato à popularidade perante as massas admite mais abrir mão dela. Até a alemã Ângela Merkel, guardiã quase solitária da responsabilidade europeia, andou fazendo proselitismo com o tema dos refugiados. Se você não der ao menos uma bicadinha na vitamina populista, você morre. 

A gangue que inventou o golpe no Brasil para brincar de resistência democrática – e se encher da preciosa vitamina demagógica – está quebrando tudo. Durante 13 anos quebraram por dentro, agora estão quebrando por fora – o que é bem mais prático e leve. O caixa da revolução está cheio, após a proverbial transfusão da Petrobras, dos bancos públicos e dos fundos de pensão. O lanche é mortadela por questão de estilo, poderia ser caviar. E não existe vida mais fácil: você recruta um bando de inocentes úteis e não inocentes alugados e manda todo mundo para cima da polícia. Fustigar a boçalidade das polícias militares é brincadeira de criança para essa turma. Não tem erro.
O caixa da revolução está cheio. O lanche é mortadela por razão de estilo, mas poderia ser caviar

O papa Francisco e sua falsa tristeza apoiam essa depredação teatral – que tem consequências reais e sujas de sangue. O religioso bonzinho, com seu gesto grave – vamos repetir: gravede desistir da visita ao Brasil por causa do impeachment, jogou uma tocha nessa gasolina. Não adianta fugir dessa responsabilidade. Não adianta rebolar na retórica. Não adianta fazer cara de piedade. O papa abriu mão da missão de paz do estadista para entrar num jogo partidário. Se meteu num conflito político nacional para exacerbá-lo – para dar sua contribuição incendiária.

A política existe para organizar a vida das sociedades. Só isso, mais nada. Não é um campeonato de siglas, cores e credos, nem um palco para apoteoses românticas. No caso do Brasil, o governo canastrão do PT incensou todos esses símbolos emocionais e fulminou a organização social e institucional. Isso não é política, é contrabando. O governo Temer assumiu no cenário de terra arrasada e está repetindo o governo Itamar (por questão de sobrevivência): dando espaço a quem entende de administração pública, substituindo militância partidária com o dinheiro dos outros por trabalho. É o PMDB, há os caciques velhos, há a podridão – mas os principais cargos de comando foram entregues aos bons. Assim como fez Itamar, no mesmo PMDB.

Há 23 anos isso deu no Plano Real – o momento mais significativo da história recente em que a política serviu para organizar a sociedade. Os veículos da mudança foram o PMDB e o PSDB, mas a virtude não estava neles. Estava nos homens. Sempre está. Repetindo a ruína do pós-Collor, a ruína do pós-PT abriu uma janela de oportunidade para quem quer usar o poder para organizar, e não para surfar. Os surfistas estão naturalmente desesperados, porque num país organizado as ondas de malandragem somem da política – ou ao menos ficam pequenininhas, sem força para impulsionar os proselitismos coitados e os heroísmos de aluguel. É preciso, portanto, bagunçar.

É claro que alguém que sai de casa para forjar um tumulto e posar de perseguido pela polícia não vale a mortadela que come. Mas o interessante é imaginar o que essa criatura pensa a sós com seu travesseiro. Se o país tivesse de repente um surto de dignidade, a fila do confessionário chegaria a Roma. Puxada pelo papa.

Fonte: Guilherme Fiuza