O fracasso da elite liberal em defender J. K. Rowling é lamentável
Imagine se o escritor norte-americano Philip Roth, quando
estava vivo, tivesse sido submetido à violência antissemita todo santo dia.
Imagine se multidões cheias de ódio o tivessem bombardeado com insultos e
ameaças.
Imagine se ele não pudesse nem ao menos ligar o computador sem ser
xingado de escória, de filho da puta, de merda, e algumas pessoas chegassem ao
extremo de lhe mandar imagens pornográficas bastante explícitas e ameaças de
violência. Imagina-se que haveria alguma reação, certo? A Casa Branca com
certeza teria se pronunciado — afinal, Roth era uma das figuras do universo
cultural mais conhecidas e um ganhador da National Humanities Medal. O mundo
literário teria se mobilizado. Colunistas teriam manifestado seu horror diante
da perseguição obscena a um homem que tanto contribuiu para a cultura
norte-americana.
No entanto, vamos saltar para 2021. Uma figura literária
está sendo agredida, insultada e ameaçada todos os dias, e de boa parte do
establishment político, midiático e literário só há silêncio. J. K. Rowling não
chega a ser um Philip Roth, mas, mesmo assim, é uma escritora de grande
importância. Ela é talvez a figura do universo cultural mais importante do
Reino Unido nos últimos 20 anos. E está sendo incessantemente submetida a uma
violência misógina horrível, a ataques odiosos que não seriam reproduzidos nem
mesmo em uma publicação que acredita numa discussão livre e honesta como esta
revista. “Se mate.” “Vou matar você, sua vadia.” “Morra, vadia.” “Essa mulher é
imunda.” “Cale a boca.” “Vou encher você de porrada.” [aqui no Brasil um jornalista já desejou que o presidente Bolsonaro morresse, um outro sugeriu que o presidente se suicidasse. Nada foi feito. Sendo que a sugestão de suicídio é uma forma de indução ao suicídio - que no Brasil é crime.] Essas são as mensagens
que Rowling tem recebido. Existem muitas, muitas outras, algumas bem piores.
O crime verbal de Rowling, claro, é acreditar que o sexo
biológico é real
Como é possível que a autora mais vendida no Reino Unido,
uma mulher considerada responsável por encorajar uma geração inteira de
crianças a ler mais livros, seja submetida a uma violência tão baixa e a
ameaças de assassinato e, mesmo assim, o primeiro-ministro não dizer nada? E a
cena literária seguir comentando como o Hay Festival do mês passado foi
divertido, fingindo não notar os milhares de pessoas xingando um de seus
membros de bruxa velha e nojenta, que deveria ser forçada a fazer sexo oral em
estranhos ou, ainda melhor, assassinada com uma bomba caseira? É porque a nossa
é uma era de covardia moral. De corações frágeis e fracotes. Uma era em que
muitos fizeram o cálculo mais covarde — “se eu não falar nada, talvez não sobre
para mim”.
O crime verbal de Rowling, claro, é acreditar que o sexo
biológico é real.
Ela acha que existem diferenças biológicas entre homens e
mulheres.
E que, se você nasce homem, você é homem, e não deve adentrar espaços
criados apenas para mulheres: vestiários, presídios femininos, abrigos para as
vítimas de violência doméstica.
Cinco anos atrás essas eram opiniões totalmente
normais para ter e expressar. Mas, se você as mencionar hoje, será perseguido,
demonizado, terá sua plataforma revogada, poderá ser demitido, receberá
mensagens de “chupe meu pau” e talvez até seja provocado com a possibilidade de
uma bomba caseira ser enviada para sua casa, como aconteceu com a autora nesta
semana.
Ninguém que acredite em liberdade, razão e igualdade pode
ficar parado vendo isso acontecer. Observar enquanto a realidade do sexo é
apagada por ativistas trans que promovem a visão mágica de que alguns homens
têm “cérebro feminino”.
E enquanto palavras como mulher, mãe e amamentação são
riscadas de documentos oficiais para não ofender o número infinitesimalmente
pequeno de militantes que acreditam que seus sentimentos importam mais do que a
linguagem comum.
E enquanto escritoras, colunistas, professoras e ativistas são
censuradas e ameaçadas apenas por discutir sexo e gênero. E enquanto J. K.
Rowling é transformada em inimiga da decência que merece uma completa
destruição stalinista de sua reputação e sua vida.
E, no entanto, nada é o que muita gente está fazendo. Quando
três jogadores ingleses negros, incluindo o herói nacional Marcus Rashford,
receberam mensagens racistas nas redes sociais — felizmente em menor
quantidade, e muitas vindas de outros países —, isso virou primeira página do
noticiário por dias. A elite do Twitter não falou de quase mais nada. Políticos
se acotovelaram para brandir suas cartas de repúdio sob o nariz do público.
E,
mesmo assim, essas são as mesmas pessoas que estão quietas sobre a difamação
muito mais intensa e violenta da antiga heroína nacional J. K. Rowling. O
primeiro-ministro não disse uma palavra. O secretário de Cultura (Oliver
Dowden) parece ter ficado mudo. A brigada da gentileza deve estar de férias.
Claro, existem honrosas exceções. Alguns colunistas
defenderam Rowling. Algumas feministas fizeram pôsteres que diziam “I Love J.
K. Rowling” (um, na estação de trem de Waverley, em Edimburgo, foi retirado por
ser “ofensivo”. A multidão misógina venceu mais uma vez.) Mas muitos dos
chamados progressistas e liberais não disseram absolutamente nada. Ou, pior,
ajudaram a aumentar a animosidade deturpada contra Rowling. A incessante
estigmatização por parte de esquerdistas radicais de que qualquer mulher que
questione a ideologia da transgeneridade é preconceituosa ou uma radfem — uma
palavra do século 21 para “bruxa” — é a base sobre a qual boa parte desse ódio
indizível por mulheres céticas como J. K. Rowling é construído.
Quando cede a uma multidão, você a torna mais poderosa, mais
insaciável
De muitas formas, o silêncio da elite liberal sobre as
agressões contra a autora é pior do que as agressões em si. As mensagens
ameaçadoras e cheias de ódio vêm de pessoas que claramente perderam o contato
com a moral, que foram tão corrompidas pelo narcisismo da política identitária
e pelas desilusões do lobby transgênero que passaram a ver aqueles que
questionam sua visão de mundo essencialmente como um lixo sub-humano e devem, por
isso, ser humilhados ritualisticamente e excomungados da sociedade normal. Mas
pessoas que ficam quietas nos mundos político e literário estão cometendo um
erro moral muito maior. Porque elas sabem que o que está acontecendo é errado,
e terrível, mas preferem não se manifestar porque querem evitar atrair a
atenção da multidão. Assim como os algozes identitários de Rowling, elas
colocam os próprios sentimentos — nesse caso, seu desejo mesquinho de uma vida
sem complicações — acima de fazer o que é certo.
Elas acreditam que vão salvar a própria pele. Como estão
erradas. Deveria estar claro para todo mundo a esta altura que fazer vista
grossa para a maneira como as multidões descoladas se voltam contra quem pensa
ou fala o que não deve não diminui a necessidade febril dessas pessoas de
perseguir quem as ofende. Ao contrário, isso as incentiva. Vamos considerar a
experiência da atriz Sarah Paulson. Ela vergonhosamente ficou ao lado da
multidão anti-Rowling, retuitando um homem que mandou a autora “calar a boca” e
a chamou de “escória completa”. Só que, longe de se proteger da fúria da
multidão trans, Paulson atraiu sua atenção. Usuários do Twitter se voltaram
contra ela recentemente por não incluir seus pronomes na biografia da rede
social. Sério. A manchete “Sarah Paulson dá início a uma guerra no Twitter por
causa da ausência de seus pronomes na bio” de fato foi publicada. “Então seus
pronomes são burra/vagabunda”, “ela é uma filha da puta”, “que pessoa de merda”
são algumas das mensagens que a atriz recebeu.
Sua aliança pouco solidária com a multidão sexista que
persegue J. K. Rowling não a protegeu porque, quando você cede a uma multidão,
você a torna mais poderosa, mais insaciável. Da mesma forma, o silêncio não vai
proteger você. As forças da falta de razão, do não liberalismo e da denúncia
estão no centro do ativismo woke, e o transativismo em especial não pode ser
enfrentado se as pessoas ficarem quietas. Ele não vai desaparecer. Essas
pessoas precisam ser confrontadas, energicamente, com argumentos claros em
favor da liberdade de expressão, da discussão racional sobre os direitos das
mulheres.
É o Teste de Rowling — você vai ou não se manifestar contra a
perseguição misógina a J. K. Rowling e outras figuras declaradas culpadas de
crimes de opinião pelos tribunais arbitrários do regime regressivo da cultura
woke?
Neste momento, muitos estão sendo reprovados no teste. Por completo.
Leia também “Agora querem
queimar os livros de J. K. Rowling”
Revista Oeste - Brendan O'Neill, da Spiked