Sobre
o aborto
Quem sabe
agora, diante do desastre e da gritaria, tomem vergonha e tenência
A
epidemia de zika e o aumento explosivo do número de casos de microcefalia
puseram na ordem do dia o debate sobre a descriminalização do aborto. Da escuridão, às vezes, nasce a
luz: tenho a impressão de que, em menos de um mês, foram publicados mais artigos
e entrevistas sobre o assunto do que nos dez anos anteriores.
Amaldiçoado
com uma das classes políticas mais cínicas e calhordas do mundo, que foge de
qualquer tema que possa desagradar aos religiosos, o Brasil está se devendo
essa discussão há tempos — mas a simples menção da palavra “aborto”
basta para que os nossos legisladores, salvo raras e heroicas exceções, virem
para o lado e façam cara de paisagem. Pouco importam, para eles, as vítimas da
sua covardia. Quem sabe agora, diante do desastre e da gritaria, tomem
vergonha e tenência. [a alegada covardia
dos legisladores, citada neste texto, é a forma mais eficaz para o combate da mais covarde das
covardias, aquela que uma mãe comete quando concorda em assassinar um filho que ainda
está no seu ventre, totalmente inocente, indefeso e dependente.]
Interromper
uma gravidez, em qualquer situação, é prerrogativa da mulher. A maioria dos
países do Primeiro Mundo — aqueles que melhor resolveram as suas
desigualdades econômicas e sociais — já reconheceu isso. [quer dizer que um país ao se tornar país do
primeiro mundo, também se torna DONO do direito de assassinar
covardemente os que não podem se defender;
Se os países do primeiro mundo
assassinam crianças NÃO NASCIDAS e são tomados como exemplo de competência na
resolução de suas desigualdades, fica difícil de entender que as barbaridades
cometidas pelo Estado Islâmico (repudiamos aquele estado e as barbaridades que
pratica) sejam repudiadas pelos mesmos países.
Ou será que a ilustre articulista
considera menos covarde, menos cruel, assassinar uma criança ainda no VENTRE
MATERNO do que assassinar um adulto que caiu nas mãos daquele bárbaro estado?
Se não é reprovável aos países do
primeiro mundo assassinar crianças – assassinar crianças é reprovável em
qualquer circunstância e mais ainda quando se trata de crianças ainda não
nascidas - , não tem sentido considerar reprovável que o Estado Islâmico,
quarto ou quinto mundo, assassine adultos.] O aborto é legal, sem restrições,
em toda a América do Norte, na Europa (com as significativas exceções da
Polônia e da Irlanda), na Austrália e numa boa parte da Ásia, para não
falar em países que nem são tão desenvolvidos assim, mas que têm feito um
esforço nesse sentido, como nosso vizinho Uruguai ou a África do Sul.
Em
outros, como Índia, Japão ou Islândia, foram estabelecidos limites de tempo
para a interrupção da gravidez, mas mesmo esses limites podem ser
flexibilizados em casos de doença grave da mãe ou do feto, ou circunstâncias socioeconômicas
adversas. Eles entendem que a maternidade é um compromisso para a vida inteira,
e que um aborto é muito menos traumático, individual e coletivamente, do que
uma criança indesejada.
O Brasil,
porém, está alinhado com o Afeganistão, a Somália, a Líbia, o Sudão, o Mali, o
Burundi, o Iêmen ou o Haiti, países onde a vida humana, caracteristicamente,
vale muito pouco. Até Paquistão e Arábia Saudita, que tratam as suas mulheres
feito lixo, têm leis melhores do que as nossas, para não falar numa quantidade
de países da África subsaariana, como Zâmbia, Namíbia ou Quênia.
Digo que
o Brasil precisa discutir o aborto, mas eu mesma, pessoalmente, não tenho mais
ânimo para isso. Sei que existem pessoas boas
genuinamente angustiadas com a sorte dos fetos alheios, para além de
dogmas religiosos e falsos moralismos, mas essas pessoas têm sido minoria nas
discussões acaloradas da internet.
Nessas
discussões, as pessoas que mais se dizem horrorizadas com as mortes de fetos —
chamando-os de “crianças” para maior efeito dramático, fingindo desconhecer o
fato de que “crianças”, ao contrário de embriões, conseguem sobreviver fora do
corpo da mãe — são estranhamente insensíveis às mortes das mulheres
obrigadas a abortar em condições sub-humanas. [obrigadas? Elas abortam por opção, por falta do
instinto materno, por crueldade, até mesmo por prazer e por não possuírem
qualquer resquício de piedade. Para elas, a vida de uma criança, ainda no
ventre materno – que deveria ser um abrigo seguro – não tem o valor de um
pedaço de carne. Pode ser descartada.] Para elas, a vida, tão preciosa dentro do útero,
deixa de ter valor do lado de fora. Defendem a inviolabilidade da vida, e
sustentam que a legislação brasileira, retrógrada ao extremo, basta para
qualquer mulher; não veem contradição nenhuma em defender o aborto em casos de
estupro e em gritar que toda vida é sagrada. Mas, se é, que diferença há entre
os fetos gerados por estupro e os fetos gerados por amor? As “crianças” não
são todas iguais? Hipocrisia é o nome do jogo.
Defender
a criminalização do aborto é fechar os olhos para o fato de que quase um milhão de abortos são
realizados anualmente no Brasil, com cerca de 200 mil internações decorrentes
de procedimentos mal feitos; é ignorar as estatísticas mundiais que mostram que
o número de abortos se mantém estável quando a legislação muda a favor da
mulher; é contribuir para a desigualdade social, porque mulheres ricas
continuarão fazendo aborto sempre que necessário. [a tese das malditas abortistas é que as crianças com microcefalia dão trabalho, causam incômodos durante a vida; a se consolidar este raciocínio, se pergunta: E quando vão passar a assassinar crianças com Síndrome de DOWN? Elas também dão trabalho, incomodam.]
Mas
defender a criminalização do aborto é, acima de tudo, um ato de inacreditável
soberba, que põe todos os “juízes” acima da mulher que optou por
interromper a gravidez. Ora, fazer aborto não é uma decisão fácil ou leviana;
nenhuma mulher faz aborto por esporte. Qualquer uma que chega a essa decisão já
pensou muito, e já pesou, dentro da sua capacidade, os prós e contras da
questão — mas os senhores e senhoras que a condenam acham que conhecem melhor
as suas condições e os seus sentimentos do que ela mesma, e se acreditam no
direito de castigá-la.
Quem pede
a legalização do aborto não pede a ninguém que aborte ou seja “a favor do
aborto”; pede apenas que seja dado às mulheres o direito de decidirem o seu
futuro por si mesmas, sem correr riscos de saúde desnecessários, e sem que
Estado ou Igreja se metam onde não são chamados.
Este
assunto me tira do sério muito mais do que qualquer outro (ou, vá lá, quase
qualquer outro) porque nele vejo, além da hipocrisia, muita maldade, falta
de compaixão e todo o tipo de chicana moral e religiosa para continuar mantendo
as mulheres na posição de submissão em que foram mantidas ao longo dos séculos.
A verdade
é simples: a criminalização do aborto é um crime contra a mulher.
[E o aborto é um crime contra uma criança indefesa, inocente e ainda no
ventre materno.]
Fonte:
Artigo escrito por Cora Ronai, em sua Coluna mantida em O Globo, em 4/2/16.
Pedimos vênia pela transcrição; quanto a
opção por replicar ponto a ponto é devido nossa veemente discordância aos que
querem usar uma epidemia – a ZIKA – para defender o aborto.
Notícias mais recentes já deixam
espaço para outras formas de atuação do vírus em sua capacidade de causar
doenças, inclusive de ordem sexual.
Caso se comprove que o vírus ZIKA
causa diversas outras doenças, sem nenhuma relação com a gravidez, as mulheres e
homens que o contraírem também serão mortos?