Guilherme Fiuza
Era
uma vez uma democracia graciosa e frágil como uma donzela inocente,
bonitinha e ordinária como uma santa de Nelson Rodrigues. Ela vivia
vagando por aí cheia de dúvidas e vulnerabilidades, muito instável e
inconstante. Até que surgiu o xerife.
O xerife era um
personagem decidido, resoluto, que não precisava de nada nem de ninguém
para fazer acontecer e mover a roda da história com energia e
impetuosidade. Ele então dirigiu-se à democracia, aquela donzela frágil e
hesitante, e determinou: fica sentadinha ali no canto, sem dar
alteração, que agora é comigo.
Foi maravilhoso. Toda
aquela instabilidade decorrente da existência errática da mocinha débil
foi corrigida e substituída pelos poderes resolutos do xerife.
A
confusão de opiniões díspares que poluíam o senso comum foi erradicada
num instante.
Instaurando o regime da lisura informacional, com
tolerância zero para comentários impuros, insolentes e antidemocráticos,
o homem da estrelinha prateada botou ordem na bagunça.
Quem dissesse
coisa errada perdia a língua - e ponto final. [cuidado Fiuza... não começa a dar ideia..] Como ninguém tinha pensado
nisso antes?
Talvez até tivessem pensado, mas ainda
não tinha aparecido ninguém com a desenvoltura e a objetividade
suficientes para acabar com as gracinhas no recinto. O xerife era o
homem certo no lugar certo, porque não tinha problema de inibição. Nem
de timidez. Nem de vergonha. Nem de juízo. Nem de semancol. Como diriam
William Shakespeare e William Bonner, todo herói é meio sem noção.
Enquanto
redigimos este texto, chega um pedido de direito de resposta de
Shakespeare, que somos obrigados a acatar e passamos a transcrever: “Me
tira dessa, companheiro. Não tenho nada com isso. Me erra. Ass: Will”.
Pronto,
está feita a reparação em favor do dramaturgo inglês. Se chegar um
pedido do Bonner e a Justiça do Xerife considerar procedente, acataremos
da mesma forma, sem discussão. Tudo pela lisura informacional.
A
salvação da democracia acabou levando também à salvação da imprensa.
Os
jornalistas andavam meio perdidos, sem saber direito o que panfletar e a
quem bajular.
O xerife preencheu essa lacuna. Era tudo falta de um
comando firme. Daí em diante foi um show de liberdade de expressão.
Confiante de que o xerife era a lei, a imprensa formou um consórcio para
ratificar, legitimar e exaltar tudo o que ele fazia.
Assim surgiu uma
prodigiosa onda de manchetes triunfais sobre quebras de sigilo,
arrombamentos, pés na porta, mordaças, intimidações, coações, atropelos e
perseguições por um mundo melhor.
Políticos,
empresários, banqueiros, médicos, advogados, juízes e demais categorias
aderiram ao gigantesco bloco de legitimação dos poderes magníficos do
xerife.
É bem verdade que a sociedade ficou dividida, mas não havia
polarização: metade era de cúmplices e a outra metade era de covardes.
Como acontece em toda democracia absolutista, a cumplicidade e a
covardia se complementam - e confluem para a harmonia do todo.
Na hora
da eleição, por exemplo, não houve espaço para desavenças e ondas de
ódio. O xerife esclareceu de saída: vai ser o que eu quiser, como eu
quiser.
Alívio geral. Covardes e cúmplices se abraçaram e foram felizes para sempre lambendo as botas do xerife.