Soldados não deveriam patrulhar ruas, nem os militares devem ficar com a conta dos erros dos governos
[visto que a matéria cuida do lamentável incidente da morte do músico, cabe lembrar que os soldados não estavam patrulhando ruas e sim uma área de segurança, por sediar a Vila Militar.]
Ele era o ministro do Exército em 1988, quando mandou uma tropa para
desocupar a usina de Volta Redonda, ocupada por grevistas, e morreram
três operários. Passaram-se 31 anos, e uma patrulha do Exército disparou
80 tiros contra o carro que conduzia uma família e matou o motorista. “Quartel não tem algemas”, os soldados não são profissionais treinados
para operações policiais, e quando acontece uma dessas tragédias, quem
vai para a frigideira são recrutas, um sargento ou, no máximo, um jovem
oficial. Em menos de 24 horas, o comando do Exército prendeu dez
militares envolvidos na fuzilaria do Rio. A informação inicial, falsa,
de que a patrulha respondeu a “injusta agressão”, foi substituída pelo
“compromisso com a transparência”.
Há épocas em que as eternas vivandeiras pedem aos militares que façam
isso ou aquilo. A ideia de botar a tropa nas ruas do Rio podia parecer
“golpe de mestre”, mas é apenas a criação de novos problemas. Passa o
tempo, as vivandeiras vestem as camisetas da ocasião e mandam a conta
para os quartéis. Jair Bolsonaro entrou no Palácio do Planalto com um discurso popular de
defesa da lei e da ordem, confundindo-se com as Forças Armadas. Há dias o
presidente disse que “nasci para ser militar”. Só ele pode falar da
própria vocação mas, de cadete a capitão, foi militar durante 14 de seus
64 anos de vida e deixou a carreira marcado por 15 dias de prisão por
indisciplina. Daí em diante, Bolsonaro foi parlamentar por 29 anos.
Parece mais precisa a avaliação de seu vice, Hamilton Mourão, para quem
ele é “mais político do que militar”.
O general Mourão formulou uma perigosa profecia: “Se nosso governo
falhar, errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá
para as Forças Armadas, daí a nossa extrema preocupação.”
Isso não deve acontecer. Primeiro, porque as Forças Armadas não são o
governo. Há cerca de cem militares na nova administração, mas quase
todos estão na reserva, inclusive Mourão. Apesar de poucas manifestações
impróprias durante a campanha eleitoral, nos quartéis prevaleceram a
disciplina e o silêncio. Três dos quatro comandantes do Exército deste
século não disseram uma única palavra. Ganha um fim de semana em Caracas
a vivandeira que lembrar os nomes desses generais.
Nenhuma conta pode ir para as Forças Armadas, a menos que se trapaceie o
jogo, coisa que ocorreu no ocaso da ditadura, quando o andar de cima
vestiu camisetas amarelas, foi para a campanha das Diretas e jogou o
entulho do regime na porta dos quartéis.
Quem namora a ideia da expansão das atribuições dos militares sonha com
impasses, talvez um conflito com o Congresso. Nesse sonho, “se o governo
falhar”, as Forças Armadas ficariam com a conta. A conta será do
governo. Os militares, calados, estão na mesa ao lado.
Elio Gaspari, jornalista - O Globo
Elio Gaspari, jornalista - O Globo