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quarta-feira, 10 de abril de 2019

‘Quartel não tem algemas’

Soldados não deveriam patrulhar ruas, nem os militares devem ficar com a conta dos erros dos governos

O general Leônidas Pires Gonçalves comandou o Exército de 1985 a 1990. Foi um daqueles chefes militares que viram de tudo. Em 1945, estava na cena da deposição de Getúlio Vargas. Em 1961, na escuta dos telefonemas de João Goulart durante a crise da renúncia de Jânio Quadros. Em 1964, viu quando o general Costa e Silva começou a emparedar o marechal Castelo Branco. Em 1984, foi um dos generais que garantiram a eleição de Tancredo Neves. Como ministro do Exército de José Sarney, manteve a disciplina na tropa, inclusive quando enquadrou o jovem capitão Jair Bolsonaro, que emergia como uma espécie de liderança sindical militar. Leônidas ensinava: “Quartel não tem algemas”.

[visto que a matéria cuida do lamentável incidente da morte do músico, cabe lembrar que os soldados não estavam patrulhando ruas e sim uma área de segurança, por sediar a Vila Militar.]

Ele era o ministro do Exército em 1988, quando mandou uma tropa para desocupar a usina de Volta Redonda, ocupada por grevistas, e morreram três operários. Passaram-se 31 anos, e uma patrulha do Exército disparou 80 tiros contra o carro que conduzia uma família e matou o motorista. “Quartel não tem algemas”, os soldados não são profissionais treinados para operações policiais, e quando acontece uma dessas tragédias, quem vai para a frigideira são recrutas, um sargento ou, no máximo, um jovem oficial. Em menos de 24 horas, o comando do Exército prendeu dez militares envolvidos na fuzilaria do Rio. A informação inicial, falsa, de que a patrulha respondeu a “injusta agressão”, foi substituída pelo “compromisso com a transparência”.

Há épocas em que as eternas vivandeiras pedem aos militares que façam isso ou aquilo. A ideia de botar a tropa nas ruas do Rio podia parecer “golpe de mestre”, mas é apenas a criação de novos problemas. Passa o tempo, as vivandeiras vestem as camisetas da ocasião e mandam a conta para os quartéis. Jair Bolsonaro entrou no Palácio do Planalto com um discurso popular de defesa da lei e da ordem, confundindo-se com as Forças Armadas. Há dias o presidente disse que “nasci para ser militar”. Só ele pode falar da própria vocação mas, de cadete a capitão, foi militar durante 14 de seus 64 anos de vida e deixou a carreira marcado por 15 dias de prisão por indisciplina. Daí em diante, Bolsonaro foi parlamentar por 29 anos. Parece mais precisa a avaliação de seu vice, Hamilton Mourão, para quem ele é “mais político do que militar”.
O general Mourão formulou uma perigosa profecia: “Se nosso governo falhar, errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas, daí a nossa extrema preocupação.”

Isso não deve acontecer. Primeiro, porque as Forças Armadas não são o governo. Há cerca de cem militares na nova administração, mas quase todos estão na reserva, inclusive Mourão. Apesar de poucas manifestações impróprias durante a campanha eleitoral, nos quartéis prevaleceram a disciplina e o silêncio. Três dos quatro comandantes do Exército deste século não disseram uma única palavra. Ganha um fim de semana em Caracas a vivandeira que lembrar os nomes desses generais.
Nenhuma conta pode ir para as Forças Armadas, a menos que se trapaceie o jogo, coisa que ocorreu no ocaso da ditadura, quando o andar de cima vestiu camisetas amarelas, foi para a campanha das Diretas e jogou o entulho do regime na porta dos quartéis.

Quem namora a ideia da expansão das atribuições dos militares sonha com impasses, talvez um conflito com o Congresso. Nesse sonho, “se o governo falhar”, as Forças Armadas ficariam com a conta. A conta será do governo. Os militares, calados, estão na mesa ao lado.

Elio Gaspari, jornalista - O Globo
 

domingo, 14 de janeiro de 2018

O Exército não é bloco de carnaval



Crivella demonstrou não entender o feriado e a função das Forças Armadas

O prefeito Marcelo Crivella apelou ao governo federal para que mande uma tropa para garantir a segurança do carnaval do Rio e comparou a situação com a da Olimpíada, quando o Exército colaborou com a ordem do evento. O doutor não sabe o que é o carnaval, não entendeu o que foi a Olimpíada e não aprendeu para o que servem as Forças Armadas. Ou sabe tudo isso e, jogando para a plateia, pediu algo que não pode ser dado, protegendo-se. Afinal, num esgarçamento das regras da federação, governadores não equipam suas polícias, atrasam salários e, quando a porca torce o rabo, chamam as forças federais.

Como ensinava o general Leônidas Pires Gonçalves, o chefe militar que fechou o ciclo de anarquia militar do século passado, “quartel não tem algemas”. Soldados não são formados para prender cidadãos. Podem vir a fazê-lo, pontualmente, em casos de manutenção da ordem, mas para isso os estados (e o Rio) têm polícias Militar, Civil e municipal.

Pedir tropa para o carnaval é algo estapafúrdio como pedir carnaval sem bebida. O soldado, que está no quartel porque o serviço militar é obrigatório, guarnece uma esquina, um bêbado sai do bar e resolve azucriná-lo, a situação se descontrola e o jovem atira. No dia seguinte os jornais noticiarão: “Soldado mata estudante que saiu do baile”.

Pedido semelhante ao do prefeito foi feito há um ano pelo governador Pezão e, discretamente, mostraram-lhe a impropriedade da ideia. O carnaval veio e se foi, com sua rotina.  A anarquia federativa, com os governos estaduais criando problemas na expectativa de que a União mande tropas é um falso subproduto de um dispositivo constitucional. Temer não poderia decretar intervenção federal no Rio ou onde quer que seja porque a lei manda que não se mexa na Constituição enquanto houver estados ou municípios sob intervenção. Há décadas Brasília sabe que reformas como a de Previdência não podem ser promulgadas havendo intervenções. Isso não significa que não possam tramitar. No caso, se um governo está numa situação de calamidade que requeira um interventor federal, ela pode ser decretada e nada acontecerá com a tramitação da reforma na Câmara, de onde deverá ser mandada ao Senado.

Isso pode atrasar a reforma em alguns meses, mas ajudará a limpar administrações ruinosas antes da eleição de outubro.

Elio Gaspari, jornalista - Folha de S. Paulo