Se bem que não foi exatamente uma
entrevista; a coisa esteve mais para pronunciamento. Presidente calça as
sandálias da humildade e responde a uma pergunta que até ela deve ter
achado submissa demais...
A
presidente Dilma Rousseff concedeu uma quase-entrevista coletiva nesta
segunda-feira, precedida de um pronunciamento. Houve momentos em que
imaginei que se ouviriam gemidos de comoção da plateia. E, sim, o
jornalismo sucumbiu de maneira miserável na pergunta de um repórter do
UOL. Já chego lá.
Destaco
que Dilma escolheu desta feita o figurino eficiente. A personagem,
notória por sua arrogância e pela baixa tolerância com a adversidade,
resolveu calçar as sandálias da humildade. Vi uma mancha vermelha no
canto da boca. Felizmente para ela, não era herpes, mas o batom borrado.
A capitoa estava cansada, mas ainda não está morta no convés do navio…
E foi com
ar humilde, exibindo as marcas da luta, que Dilma falou uma notável
coleção ora de asneiras, ora de inverdades, recheadas de um dado factual
ou outro sem importância para o tema.
1: Disse
que um presidente da República só pode ser afastado se cometer crime de
responsabilidade. É uma inverdade irrelevante para a questão, mas eu
prefiro a verdade: também o cometimento de crime comum e de improbidade
pode cassar um mandatário. A assessoria precisa tomar mais cuidado.
Mentira.
2: Afirmou
que outros pedalaram antes dela e nada aconteceu. Isso já foi
devidamente desmentido pelo TCU e pelo Banco Central. O que era quase
residual em mandatos anteriores se tornou instrumento de política
econômica no seu governo. Mentira. A “pedalada” no governo FHC chegou a
0,03% do PIB. No dela, a 1%. Mentira.
3: Afirmou
não haver contra ela acusações de enriquecimento ilícito ou de roubar
dinheiro público. É a verdade a serviço da mentira. Leiam o Artigo 85 da
Constituição. Os crimes de responsabilidade nada têm a ver com
roubalheira.
4: Afirmou
que é a oposição que não a deixa governar há 15 meses. Os
oposicionistas, somados, têm 134 votos na Câmara: PSDB (52), PSB (32),
DEM (28), SD (14) e PPS (8). E olhem que o PSB é rachado. Com isso, não
se evita nem aprovação de projeto de lei. O problema de Dilma é com
partidos da base, incluindo o PT, que não aceita, por exemplo, a reforma
da Previdência. Mentira.
5: Falou
contra o impeachment em nome da defesa da nossa “jovem democracia”. O
primeiro presidente eleito depois da ditadura foi impichado. A
democracia ainda fazia cocô na fralda. Hoje, já é uma moça de respeito,
experiente. Se Dilma estiver certa, o PT era infanticida em 1992.
Mentira.
6: Afirmou
que Cunha aceitou inicialmente a denúncia por vingança. Isso é
circunstância: não muda a natureza do crime de responsabilidade
cometido. De resto, o presidente da Câmara aceitou a denúncia três
semanas antes da votação no Conselho de Ética. Mentira.
7:
Referindo-se a Eduardo Cunha, disse que foi o rosto dele a correr o
mundo como a cara desse processo. Assim é porque é ele o presidente da
Câmara e quem proclama o resultado. O rosto de Lula negociando a
República num quarto de hotel não pôde aparecer porque as raparigas que
passavam por lá não podiam entrar nem com celular. Quem entrega a um
estranho o poder de fatiar o país não pode ousar falar em nome da ética.
Mentira moral.
8:
Resolveu evocar o seu passado de suposta militante em defesa da
democracia durante a ditadura. Infelizmente, é mentira (já volto a este
ponto). Ela pertenceu a grupos terroristas que matavam inocentes e
queriam uma ditadura comunista no Brasil.
A conversa
mole serve ao propósito de acusar um suposto golpe de estado em curso,
que agora seria dado pelo Parlamento. Mentira e mentira.
9: Acusou
Michel Temer de conspirar contra ela. Antes que viesse a público
qualquer mensagem do vice, Dilma recebeu sucessivos grupos de militantes
no Palácio do Planalto, que demonizavam o vice aos berros, chamando-o
de golpista. Dilma talvez não saiba, mas ele também foi eleito. Mais:
alguns deles fizeram a apologia do crime, diante do silêncio cumplice da
presidente. Além de ser crime de responsabilidade, há também o de
improbidade administrativa. Mentira.
O jornalismo
A imprensa, infelizmente, sucumbiu. Um
repórter da Carta Capital indagou a presidente sobre jatinhos
supostamente pagos por empresários para levar políticos pra votar em
favor do impeachment, como se aquele senhores e aquelas senhoras não
dispusessem de uma verba de R$ 40 mil mensais para arcar com custos
assim. Atenção! A pergunta era dirigida à presidente que permitiu que a
República fosse negociada num quarto de hotel.
O mergulho
E houve o momento em que a coisa
descambou. Dilma chamou o impeachment de golpe de estado; lembrou a sua
“luta” nos tempos da ditadura etc.
O repórter
do UOL certamente se emocionou e levou a sério a comparação. Mandou
ver: quis saber, imaginem vocês, em qual período a presidente sofreu
mais. A própria Dilma, nota-se, ficou surpresa e desenxabida. Teve de
lembrar ao rapaz que o Brasil, hoje, vive uma democracia; que nada pode
ser comparado à tortura; que eventuais paralelos que ela própria faz são
pura força de expressão.
Que diabo
leva alguém a fazer tal pergunta? A ignorância certamente está na raiz
de muita coisa. Mas ainda é insuficiente para conduzir alguém a tamanha
ousadia. Isso só é permitido pelo espírito do tempo.
Dilma
certamente vai tentar outras “entrevistas” como a desta segunda. O
conjunto da obra, vamos convir, é dessas coisas que provocam a tal
vergonha alheia.
Fonte: Blog do Reinaldo Azevedo