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domingo, 10 de outubro de 2021

Shownalismo - Pobreza menstrual, a era dos factoides e o PT xingando Tabata Amaral - VOZES

Gazeta do Povo - Madeleine Lacsko

É inadmissível uma menina não ter um absorvente em pleno século XXI. Infelizmente, o projeto parcialmente vetado não resolvia isso.

Depois de ver o circo que virou um tema tão delicado e importante como a pobreza menstrual, eu havia decidido não escrever sobre. Já estava tentada a enfrentar a questão depois de ler a excelente entrevista da Maria Clara Vieira com o Peter Boghossian. Daí, uma publicação da Helen Pluckrose que me levou a escrever hoje:
Vejo muitas pessoas se desesperando com nossa situação atual e cometendo o erro de pensar que temos apenas duas opções:
1) Siga as abordagens dos justiceiros sociais para questões de raça, sexualidade, gênero, etc.
2) Oponha-se aos justiceiros sociais maneiras que nos impeçam de abordar essas questões.
Não se desesperem. Há razões para ser otimista.

 

Pobreza menstrual, a era dos factoides e o PT xingando Tabata Amaral -  Foto: Bigstock


Juntei todo meu otimismo e farei uma abordagem de jornalismo opinativo sobre o tema. É a modalidade em que temos direito à nossa própria opinião mas não aos nossos próprios fatos. A modalidade em que os fatos são modificados para coincidir com a opinião chama-se SHOWNALISMO, está em alta no mundo todo e agrada muito o público e os algoritmos de rede social. É assim que temos debatido a pobreza menstrual.

Eu sinceramente não tenho a menor ideia se são ou não verdadeiros os números de mulheres que deixam de trabalhar ou estudar durante o período menstrual porque não têm absorvente. Não imaginava que isso existisse, não fazia parte do meu universo. Fucei aqui e acolá. Acabei descobrindo no meu círculo de relacionamentos uma meia dúzia de casos reais. Jamais reclamaram por vergonha, é muito delicado. Eu fiquei de coração partido.

Um único caso de menina que fique sem ir à escola porque não tem absorvente já é inadmissível.  
Como isso pode acontecer num país presenteado por Deus com abundância? 
Não pode existir isso na nossa sociedade. E hoje podemos falar disso abertamente nos grandes centros. Conheço gente no interior que não fala publicamente de menstruação. Lembro da vergonha que eu tinha décadas atrás, jamais falaria disso na frente de um homem. Superada essa barreira, podemos resolver um problema cruel, que deixa marcas psicológicas horríveis.

A questão é COMO evitar que continuemos a ser uma sociedade que convive com a crueldade da perda de oportunidades educacionais e profissionais por falta de absorvente? É uma situação grotesca, que precisa de solução. O projeto aprovado pelo Congresso e parcialmente vetado pelo Executivo resolveria? Não. Ele não faria o absorvente chegar a todas as meninas que precisam porque gestão de Saúde e Educação é compartilhada entre as 3 esferas de governo. Serve para abrir discussão.

Lembra daquela história do Governo Federal tentando reverter medidas sobre COVID tomadas por prefeitos e governadores que foi parar no STF? Falo dessa decisão específica porque virou uma lenda urbana na máquina de moer fatos das redes sociais. Uma coisa foi fato: Governo Federal não pode tomar medida de Saúde que contrarie decisão de Estados e Municípios porque a gestão é compartilhada. É assim na Educação também. Nem pode mandar distribuir absorvente como previa o projeto via Governo Federal.

Seja no sistema de Saúde ou de Educação, a decisão é nos 3 âmbitos. Governo Federal define para o Federal, governos Estaduais para os Estados e governos municipais para os municípios. [lembrando que pela suprema decisão sobre Covid-19, o Governo Federal não pode tomar decisão que contrarie decisão de Estados e Municípios - como aplicar no Brasil, formado por estados e municípios, uma decisão que contrarie decisão dos prefeitos e governadores? ] Aqui em São Paulo, já há lei municipal regendo distribuição de absorventes por órgãos municipais e programa estadual de distribuição de absorventes por órgãos estaduais. Ah, mas não foi isso que o Bolsonaro alegou para vetar. Também foi, só ler o Diário Oficial.

Vivemos a Economia da Atenção. É interessante no ano pré-eleitoral atacar Bolsonaro por negar até absorvente a adolescente pobre. Também é interessante para o governo alegar que vetou mesmo e foi por responsabilidade fiscal. Mentir está sendo muito frutífero para os dois lados e a imprensa embarcou com vontade. O fato é que nem o projeto foi vetado - o programa foi criado ontem - e nem a derrubada do veto parcial garantirá absorvente para mulher que não tem como comprar. Danem-se os fatos, importa capturar a sua atenção. Vai deixar?

Direito seu deixar que o debate público seja dominado por mentiras que engajam muito, mas vou insistir no otimismo. Além de colocar o link, faço questão de transcrever o projeto e mostrar a você que já é lei e foi criado um "Programa de Promoção e Proteção da Saúde Menstrual":

"LEI Nº 14.214, DE 6 DE OUTUBRO DE 2021

Institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual; e altera a Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, para determinar que as cestas básicas entregues no âmbito do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) deverão conter como item essencial o absorvente higiênico feminino.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º  (VETADO).
Art. 2º É instituído o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, que constitui estratégia para promoção da saúde e atenção à higiene e possui os seguintes objetivos:
I - combater a precariedade menstrual, identificada como a falta de acesso a produtos de higiene e a outros itens necessários ao período da menstruação feminina, ou a falta de recursos que possibilitem a sua aquisição;
II - oferecer garantia de cuidados básicos de saúde e desenvolver meios para a inclusão das mulheres em ações e programas de proteção à saúde menstrual.
Art. 3º (VETADO).
Art. 4º O Programa instituído por esta Lei será implementado de forma integrada entre todos os entes federados, mediante atuação, em especial, das áreas de saúde, de assistência social, de educação e de segurança pública.
§ 1º O Poder Público promoverá campanha informativa sobre a saúde menstrual e as suas consequências para a saúde da mulher.
§ 2º Os gestores da área de educação ficam autorizados a realizar os gastos necessários para o atendimento do disposto nesta Lei.
Art. 5º (VETADO).
Art. 6º(VETADO).
Art. 7º (VETADO).
Art. 8º Esta Lei entra em vigor após decorridos 120 (cento e vinte) dias de sua publicação oficial."

O veto parcial
Você pode ver que há quatro artigos inteiros vetados. Não podia deixar nem uma partezinha? Não. Quando o Executivo analisa projeto aprovado pelo Legislativo, ou sanciona ou veta o artigo ou o inciso completos. Ou entra do jeito que foi escrito pelos parlamentares ou é inteiramente anulado. E há vários artigos com vícios técnicos incontornáveis.
Sei que muita gente vai chiar pelo que eu estou falando porque vale tudo para bater em Bolsonaro. Da mesma forma, muita gente chiava quando eu dizia que o trabalho insuficiente do Ministério Público ia acabar soltando todo mundo na Lava Jato e no Mensalão.  
Se o que é dito em entrevista não estiver no papel, não vale, tem de trabalhar e fazer o documento direito. "Ah, mas se fosse projeto de governista, ele teria aprovado". 
Sem dúvida e político de oposição sabe disso. Excelência técnica é o pedágio cobrado no Brasil para quem não é do governo da vez.

Vamos aos artigos vetados, um por um. Sei que tem gente séria dizendo que a justificativa do governo é balela. Fazem por comparação. É verdade que projetos com muito mais problemas e com custo provavelmente mais alto foram sancionados mesmo sem ter a menor condição técnica. Como exemplo, temos os bônus de hoje e o sarapatel de coruja do orçamento secreto. Só que isso não tira os problemas técnicos do projeto da pobreza menstrual.

Vetado: "Esta Lei institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual para assegurar a oferta gratuita de absorventes higiênicos femininos e outros cuidados básicos de saúde menstrual."

Como uma lei assegura algo? Ela não assegura, ela institui e espera que seja suficiente para assegurar ou estabelece penalidade para o descumprimento. De que "outros cuidados básicos" estamos falando? Quanto custa isso? Quem paga o quê e qual a previsão orçamentária? 
E se houver município que não precisa da gratuidade, vai ter de ofertar o gratuito porque a lei assegura?

Vetado: "Art. 3º São beneficiárias do Programa instituído por esta Lei:
I - estudantes de baixa renda matriculadas em escolas da rede pública de ensino;
II - mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema;
III - mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal; e
IV - mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa.
§ 1º Os critérios de quantidade e a forma da oferta gratuita de absorventes e outros itens necessários à implementação do Programa serão definidos em regulamento."
Este artigo é do tipo que me irrita porque esfrega na cara que ninguém pensou em como implementar o projeto, só em como dar entrevista. Quando você fala da rede pública de ensino ou do SUS, não pode dividir usuários. Ou é universal ou não faz. Só pode dividir por razões científicas e técnicas.

A qualidade da divisão de público quero acreditar que seja apenas pueril ou desleixada, não mal intencionada. Explico com perguntas:

- Se a estudante de baixa renda ganhar uma bolsa de estudos de uma escola particular, ela não pode receber absorvente? 
- A moça de baixa renda que não estuda ou a mãe de baixa renda da tal estudante também não recebem? 
- Ou só recebem se estiverem presas ou forem morar na rua?
- De onde tiraram a definição "vulnerabilidade social extrema"? O que define, segundo esse critério, quem pode ou não receber absorvente? A mulher rica que apanhou do marido e fugiu de casa sem levar nem a bolsa pode receber?
- Se a mulher estiver em prisão domiciliar não recebe? Só se estiver internada ou presa? A mulher no regime aberto recebe? Presa enviada para casa para cuidar de filhos pequenos recebe?
- Se os critérios de quantidade não têm parâmetro e forem decididos depois, um prefeito que der um absorvente para cada mulher nessa situação está dentro da lei.


Vetado: Art3 - § 2º Os recursos financeiros para o atendimento das beneficiárias de que trata o inciso III do caput deste artigo serão disponibilizados pelo Fundo Penitenciário Nacional.

Ah, mas então o projeto disse de onde vem o dinheiro, né? Disse, só que não combinou com os russos. O dinheiro do Funap não pode ser usado para isso. Poderia ser usado? Sim, era só modificar a Lei Complementar 79 antes de fazer a outra. Isso foi feito? Não, ninguém nem tentou. 
Quanto o Funap teria disponível para isso? Ninguém sabe porque o custo não foi estimado. Aliás, não se estimou nem a quantidade necessária para as presidiárias, o que seria muito mais fácil de medir porque os governos têm os dados.

Vetado: Art. 6º As despesas com a execução das ações previstas nesta Lei correrão à conta das dotações orçamentárias disponibilizadas pela União ao Sistema Único de Saúde (SUS) para a atenção primária à saúde, observados os limites de movimentação, de empenho e de pagamento da programação orçamentária e financeira anual.
Esse artigo foi assassinado pelo anterior. Se o atendimento não é universal, não pode pagar pelo SUS. E o próprio projeto estipulou que não é universal. Fora isso, o SUS só pode comprar o que tem lei autorizando, existe uma lista indicando para qual finalidade pode comprar. Fizeram lei para atualizar a lista? Não. Quanto isso custaria e quanto seria o limite de pagamento via Ministério da Saúde? Não pode fazer pelo Ministério da Educação? E pelo da Ação Social? Da Mulher e dos Direitos Humanos também não pode? E se tiver parceria público-privada? Suponha que em uma cidade pequena alguém doe absorventes a todo mundo que precisar. 

Vai ter de comprar pelo SUS mesmo assim?                                          Os governadores e prefeitos perderam a autonomia sobre os orçamentos estaduais e municipais? 
Se eles decidirem pagar com verba que não seja a da atenção primária à saúde porque sempre falta, então estariam fora da lei?

Vetado: "O Poder Público adotará as ações e as medidas necessárias para assegurar a oferta gratuita de absorventes higiênicos femininos às beneficiárias de que trata o art. 3º desta Lei e, no âmbito do Programa de Proteção e Promoção da Saude Menstrual, os absorventes higiênicos femininos feitos com materiais sustentáveis terão preferência de aquisição, em igualdade de condições, como critério de desempate, pelos órgãos e pelas entidades responsáveis pelo certame licitatório."
A Lei Geral de Licitações foi mudada? Agora pode decidir, via projeto de lei, critérios de desempate para um certame específico, à revelia de Estados e Municípios que têm autonomia na área?
O Estado de São Paulo tem, desde 2020, uma lei específica para licitações sustentáveis e colocar sustentabilidade, sem especificar critérios, como quesito para desempate não foi previsto porque não é sustentável. Não têm mais autonomia a Assembleia Legislativa e o Governo do Estado?
Por que só os "feitos com materiais sustentáveis" se já é pacífico na legislação que a sustentabilidade contempla toda a cadeia e a atuação ambiental, social e de governança de todos os fornecedores? Estamos de volta ao século passado e não avisaram?

Vetado: Art. 7º O art. 4º da Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:
'Art. 4º ...................................................................................................................
Parágrafo único. As cestas básicas entregues no âmbito do Sisan deverão conter como item essencial o absorvente higiênico feminino, conforme as determinações previstas na lei que institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual.'
Você sabe o que é SISAN? Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Absorvente é para comer? Não. Então ou não pode entrar aí ou tem de modificar direito a lei, instituindo mais uma finalidade para o SISAN. Foi feito? Não.

Agora tem uma ampla campanha de derrubada do veto, com muita gente informada embarcando. 
Se cair o veto, vai ter absorvente para as mulheres pobres? Não. É mais um projeto que vai parar no STF e virar frisson na mídia, reunindo gente indignada para alimentar algoritmo de político e influencer. O SUS não tem como pagar da forma estabelecida, o próprio projeto exclui mulheres que estão em situação de pobreza menstrual e a lei não pode determinar como isso seria implementado em Estados e Municípios.

O fator Tábata Amaral x soberba é bicho que come o dono
O Congresso Nacional só tem um parlamentar. Chama-se Tábata Amaral. Claro que a adolescência de meia-idade da esquerda passou o dia bradando nas redes sociais que a deputada tentou apropriar-se de um projeto de Marilia Arraes, do PT. A petista vem a ser prima e arquiinimiga do namorado de Tábata Amaral, filho de Eduardo Campos. Os dois se digladiaram como adversários na eleição para a prefeitura de Recife, que ele levou.

Só citei a quizila familiar porque o Brasil nunca é um país, sempre oscilamos entre novela e meme. Claro que sempre as mesmas famílias estão envolvidas. Marilia Arraes apresentou seu projeto em 2019, uma espécie de piora técnica no projeto do vereador carioca Leonel Brizola, transformado em lei no Rio de Janeiro em 2019. No ano seguinte, Tabata Amaral apresentou um projeto corrigindo os vícios técnicos. Claro que não seria aprovado. Todo mundo que acompanha novela sabe direitinho esses trâmites.

Comecemos por Leonel Brizola. Calma que não é o original, é descendente. Não seria estranho a essa altura do campeonato aparecer um espírito na história, mas devo ser fiel aos fatos. O projeto dele respeita o princípio de universalização do sistema público de saúde e dá margem para que o custeio seja decidido pelo executivo sem criar o custo imediatamente. Propõe regulamentação em 120 dias e a fonte de recursos poderá ser prevista para o próximo orçamento municipal, em qualquer secretaria, projeto ou fundo. Sabe quem sancionou? O Crivella.

LEI Nº 6603, DE 3 DE JUNHO DE 2019.
Dispõe sobre o fornecimento de absorventes higiênicos nas escolas públicas do Município do Rio de Janeiro e dá outras providências.
Art. 1º Fica instituído o Programa de Fornecimento de Absorventes Higiênicos nas escolas públicas do Município do Rio de Janeiro.
Parágrafo único. O programa a que se refere esta Lei consiste no fornecimento de absorventes higiênicos para estudantes do sexo feminino, visando à prevenção e riscos de doenças, bem como a evasão escolar.
Art. 2º O Poder Executivo promoverá o fornecimento e a distribuição dos absorventes higiênicos em quantidade adequada às necessidades das estudantes, por meio de máquinas de reposição, instaladas nos banheiros das escolas da Rede Pública Municipal.
Art. 3º A presente Lei será regulamentada pelo Poder Executivo no prazo de cento e vinte dias, contados da sua publicação.
Art. 4º As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias.
Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Câmara Municipal do Rio de Janeiro, 3 de junho de 2019.


Era só fazer pequenos retoques estendendo para outras mulheres e retirando o Artigo 2o. Mas não, tem que florear. Onde já se viu ir atrás de projeto de vereador. Federal tem de ser mais robusto, certo? Não. Também não é o primeiro projeto sobre distribuição de absorventes a aparecer na Câmara Federal. Já havia mais de uma dezena. Nos Estados e Municípios há centenas de leis semelhantes. Várias soluções são pensadas, como distribuir em postos de saúde, fazer parcerias para doação, distribuir nas empresas com um número determinado de empregados. Talvez cada localidade tenha sua forma de solucionar.

Já há distribuição gratuita de absorventes em muitos pontos do Brasil, algumas por iniciativa do governo, outras de entidades da sociedade civil, ONGs, parcerias público-privadas, doações, descontos em impostos, forma de acerto fiscal. Nos Estados de São Paulo e Minas, por exemplo, foi feito por lei estadual e várias leis municipais. Em Florianópolis, há parcerias com entidades que ensinam confeccionar absorventes sustentáveis e acolhem meninas com dúvidas sobre o período menstrual. Todas são iniciativas mais eficazes que o projeto federal.

Suponhamos que a Câmara tirasse os vícios técnicos do projeto e fizesse um sem os problemas que esse teria, daria certo? Não. Cada Estado e cada Município têm autonomia para operacionalizar diretrizes federais sobre este tema. Um projeto federal garantiria que tivéssemos o tema no radar dos orçamentos estaduais e municipais, mas não seria capaz de assegurar que todas as mulheres em situação de necessidade conseguissem absorventes. A efetivação das políticas depende de leis estaduais e municipais.

Apenso, logo existo
Quem já trabalhou em casas legislativas conhece a máxima. Quando alguém já apresentou um projeto sobre um tema que é bandeira de um parlamentar, ele apresenta outro. Pode ser um complemento ou uma correção. Projetos sobre o mesmo tema são "apensados", ou seja, passam a tramitar em conjunto por decisão da Mesa Diretora. É possível que um seja escolhido, que sejam fundidos ou que um deles torne-se a base de uma emenda substitutiva, um novo projeto agregando ideias.

Por que alguém faz um projeto de tema sobre o qual já existe projeto? Ou para corrigir vícios do anterior ou para fazer marketing. O deputado federal Baleia Rossi apresentou um projeto para que o trabalho em casa conte como tempo de serviço na Previdência, a exemplo da legislação argentina. Deputados do PSOL apresentaram a mesma proposta, que tornou-se apenso, mas propiciou ampla divulgação, likes, engajamento e hashtags em redes sociais. A imprensa tende a divulgar esses movimentos. Apenso, logo existo.

Também há casos nobres e um eu acompanhei de perto. A senadora Leila do Vôlei apresentou um projeto de criminalização do stalking, a exemplo das legislações que países civilizados têm desde a década de 1990. A aplicação das penas, no entanto, tinha falhas técnicas. O deputado Fabio Trad, professor de Direito, apresentou um projeto que foi apenso àquele, submetido antes a associações de juízes, promotores e defensores. A lei do stalking é a da senadora, mas o conteúdo é aquele produzido pelo deputado. Modificou-se o texto final e os louros foram cedidos. Nem todos topam isso.

Voltemos aos absorventes. Ano passado, a deputada Tabata Amaral apresentou um projeto sucinto eliminando todos os vícios técnicos do projeto da deputada Marilia Arraes. Não vou repetir os quesitos todos porque, apesar de saber que sou chata com essas coisas, você não é obrigado. Transcrevo:

PROJETO DE LEI Nº , DE 2020 (Da Sra. TABATA AMARAL)
Dispõe sobre a distribuição de absorventes higiênicos em espaços públicos
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º. Esta lei dispõe sobre a distribuição de absorventes higiênicos em espaços públicos.
Art. 2º. Será realizada a distribuição de absorventes higiênicos em espaços públicos de acordo com as normas regulamentadoras.
Parágrafo único. Será estimulada a oferta de absorventes sustentáveis.
Art. 3º. Esta lei entra em vigor cento e oitenta dias após sua publicação.

O projeto de Tabata Amaral não tem nenhum dos vícios técnicos que justificaram o veto pelo Governo Federal. Mas também não tinha a menor chance de tornar-se o projeto principal. Se você, como eu, é fã de "A Usurpadora", "Avenida Brasil", "Rainha da Sucata" e "Star Wars" sabe todas as razões. O projeto de Marilia Arraes passou a ser a referência e todos os demais viraram apensos. A deputada colocou uns 30 nomes de colegas como coautores.

O projeto não foi mantido na íntegra, foi modificado por uma "emenda substitutiva". Isso quer dizer que formou-se uma comissão de análise e foi escolhida uma relatora para apresentar a redação final, com base nas observações de todos os envolvidos e de mais de uma dezena de projetos semelhantes. Tem o barato que sai caro e o caro que sai mais caro ainda. É o caso. O novo projeto manteve quase todos os vícios técnicos que ensejariam um veto.

"Tem dinheiro para o Fundão Eleitoral mas não tem para absorvente". "Tem dinheiro para bônus de servidor público mas não tem para absorvente". 
"Tem dinheiro para propaganda do governo mas não tem para absorvente". Tudo isso é verdade sim. Nada disso, no entanto, faz com que o projeto troncho torne-se viável. Ser governista talvez bastasse, estamos no Brasil. Mas todos os envolvidos suponho que já sabiam ser oposição ao governo, o que significa um escrutínio técnico minucioso de todas suas ideias.

Política e Economia da Atenção
Tudo isso que eu pesquisei, analisei e escrevi foi pela inspiração da Helen Pluckrose e por amor à causa. Sei que fatos e ações custam caro e têm pouquíssimo retorno na era da Economia da Atenção. Eu ganharia muito mais se topasse mentir. Sairia bradando que Bolsonaro é tão insensível que nega absorvente para mulheres pobres. Ou sairia bradando que a esquerda tem obsessão por esculhambar a responsabilidade fiscal. Imagino quantos cliques e likes. Mas sou um dos poucos imbecis que lê documento e preocupa-se com fatos. Talvez seja masoquismo.

A imprensa está rendida à dinâmica das redes sociais. Importa o engajamento. Este artigo aqui tem baixíssimo potencial. Peço antecipadamente desculpas e já agradeço o privilégio aos meus editores na Gazeta do Povo. Imaginem quanto custa um Lucio Vaz, fiscal dos políticos. Leia o blog dele. Quanto tempo ele leva em cada apuração de gastos públicos? Isso sem contar o tempo investido em técnica e networking para irritar poderosos todos os dias e continuar fazendo a mesma coisa. Nem sei mais se informação é business ou luxo.

O Lucio Vaz só divulga informação depois de obter fontes oficiais, documentos, fazer contas precisas, checar o orçamento. Demorou décadas para ter a habilidade de olhar tudo isso e traduzir para a gente. É caro demais. Daria muito mais retorno pegar um adolescente de meia idade qualquer para ficar gritando sobre lagosta do STF e pedindo para você demonstrar sua indignação. Era só pegar o levantamento que o Lucio Vaz demorou sabe Deus quanto tempo para fazer e criar um factoide. Teria muito mais retorno na Economia da Atenção.

Diante da inspiração vinda da Helen Pluckrose, sabia ter dois caminhos de sucesso na Economia da Atenção. Poderia fazer um artigo demolindo Bolsonaro pela crueldade de negar absorventes a mulheres pobres e derir a uma das hashtags do #BolsonaroEuPrecisoMenstruar. Também poderia fazer um artigo detonando a esquerda por insistir em demolir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Hashtag #CadaUmaQuePagueSeuAbsorvente. Explosão de cliques. Mas sou masoquista.

Jornalistas e políticos foram adestrados pelas redes sociais. Muitos renderam-se à valorização pessoal por cliques e likes. Isso só é possível oferecendo soluções fáceis e necessariamente erradas para problemas complexos. Não vou fingir que não é tentador, é muito. Sei que a condição humana e a realidade são completamente desinteressantes diante das fantasias que podemos alimentar. Fariam muito mais sucesso.

Não é por julgar-me esperta ou fazer avaliações racionais que decidi esmiuçar este assunto, é por profissão de fé mesmo. Dizem que fé move montanhas e vai que, né? Eu morro por dentro quando imagino a menina que eu fui, envergonhada de falar sobre menstruação, tendo de dizer que precisa de absorvente. Nós, como sociedade, não podemos aceitar algo tão cruel e tão injusto. Quanto nos custa isso? Sabe Deus que chagas emocionais e psicológicas são empilhadas sobre a perda objetiva de oportunidades e dinheiro. Ocorre que essas meninas e mulheres precisam de solução, não de boas intenções.

Madeleine Lacsko, colunista - Gazeta do Povo - VOZES    


segunda-feira, 17 de maio de 2021

André Faria: o policial morto no Jacarezinho

Fui um repórter dedicado majoritariamente a pautas de polícia, no início da minha carreira, na longínqua década de 1980. Os traficantes, do jeito que os conhecemos hoje, surgiram nessa época. Dominaram territórios, e nunca mais tivemos paz. Acompanhei muitas operações policiais em favelas do Rio de Janeiro. Morro do Borel, da Pedreira, Rocinha, Dona Marta, favela do Rato Molhado... A imprensa ainda não usava coletes à prova de tiro, capacetes, não havia carro de reportagem blindado. E ainda seguíamos, repórter, cinegrafista e operador de VT, atados entre nós por cabos, o do microfone, o da câmera... Os policiais avançavam. Estampidos, estilhaços, pólvora, o deslocamento de ar concentrado, breve e intenso. Sob tiros, os policiais avançavam.

Nunca confundi bandidos com mocinhos. Nunca achei que um fosse outro. Bandidos não são “vítimas da sociedade”. E, infelizmente, muitos não têm escapatória, para eles não há esperança de regeneração, de recuperação. É porque há um ponto em que não dá mesmo para voltar, em que o mal se instala, gruda na pele, invade, toma os órgãos, principalmente os vitais. Espírito fraco, índole ruim, o olhar de quem olha e não vê, de quem não tem emoção, só frieza, cinismo, maldade... É de desprezo que se alimentam os traficantes, desprezo pelos outros e até por eles próprios. A vida no impulso de um gatilho.

Nunca confundi bandidos com mocinhos. Nunca achei que um fosse outro. Bandidos não são “vítimas da sociedade”                                               É muito clara a situação numa favela. A estrutura de labirintos formados pelas construções improvisadas é um esconderijo quase perfeito, com muitas rotas de fuga.  
Um espaço sequestrado, com toda a sua gente de bem. São milhões de reféns de traficantes por todo o país. No Rio, essa situação se consolidou quando Leonel Brizola foi governador. Ele proibiu as operações policiais em favelas, o uso de algemas. [fácil perceber que o ministro Fachin é, ou pretende ser, um discípulo do Brizola, no tocante ao modo de tratar bandidos.] Bandido deveria ser chamado de ‘’senhor”. O tráfico de drogas criou seus feudos, seus castelos, se fortaleceu. A população de bem como escudo, a população de bem amedrontada e oprimida. A ela resta dizer que a culpa é sempre da polícia, ou que não sabe de nada, que nada viu.[discurso que permanece e que agora conta com o apoio de algumas ONGs pró-bandidos e da própria defensoria pública.] 

Em junho do ano passado, o STF resolveu também proibir as operações policiais nas comunidades do Rio durante o combate à Covid, numa “política de segurança pública”, além de tudo, sem amparo na lei. [para os supremos ministros do  STM, eles são a lei.]  a lei é O tráfico agradeceu, ganhou ainda mais força. Tirar a polícia das favelas é um absurdo. O combate à criminalidade deve se dar em várias frentes, no trabalho de inteligência, no policiamento ostensivo, nas operações policiais... Não dá para aceitar que nas favelas prevaleçam as leis dos traficantes.

Veja Também: Democracia em cinzas - graças ao Supremo

A operação no Jacarezinho na semana passada teve autorização judicial. As investigações e o planejamento da ação demoraram quase um ano. Se houve excessos, se houve erros, que isso seja apurado. O que não dá é para demonizar a polícia. O que não podemos é chamar de vítimas aqueles que sufocam trabalhadores, aqueles que reinam pelo terror. Não são “justiceiros sociais”, são opressores cruéis. Massacram as pessoas de bem, agridem, humilham, praticam extorsão, invadem casas, aliciam menores.

 Nas forças de segurança temos heróis que cumprem seu dever legal. Suas vidas têm sacrifícios e riscos que pouca gente poderia suportar. Não saem de casa pensando em matar, saem de casa, em sua grande maioria, numa entrega absoluta, pensando em proteger e salvar vidas. Imagino o quanto a inversão de valores pode provocar neles uma dor imensa, mais do que a que porventura já sentem...   Penso em todas as pessoas que vivem em áreas conflagradas, dominadas por gente muito ruim, e penso nas forças de segurança.  
Neste momento, em especial na família do policial André Leonardo Frias porque, sim, toda vida importa, mas a da pessoa de bem importa mais.

 Luis Ernesto Lacombe, colunista - VOZES - Gazeta do Povo

 

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Violência no Rio - “Justiceiros sociais” ignoram sofrimento eterno da população das favelas J. R. Guzzo

 Vozes - Gazeta do Povo

População que vive em comunidades carentes do Brasil é alvo rotineiro de todo tipo de violência cometida por bandidos.

A guerra que o crime move há anos contra a população do Rio de Janeiro é uma história que tem um lado só o lado dos bandidos. Nas classes intelectuais, na bolha em que vivem os políticos e na maioria dos meios de comunicaçãopara não falar numa vasta porção do aparelho judiciárioos criminosos são tratados oficialmente como mártires de uma “luta social” dirigida contra os pobres, os negros e os favelados. [e sempre que a Polícia é forçada a realizar alguma ação concreta, necessária e inadiável contra o crime, todos se unem para culpar as autoridades policiais.
O caso do 'jacarezinho' é exemplar. 20 mandados de prisão contra bandidos foram expedidos pelo Poder Judiciário - mandados que a Polícia tem o DEVER, a OBRIGAÇÃO de cumprir.
Tendo notícia de onde o procurado está homiziado, tem o DEVER de verificar 'in loco', - por óbvio, com o resguardo da força necessária - a veracidade da informação e localizando o procurado prendê-lo. Não é uma OPÇÃO, um SE POSSÍVEL, se os parceiros dos procurados permitirem e mais outros se ... .
Foi o que a Polícia do Rio fez. Não importa a classificação dada por parte do Poder Judiciário, os políticos, os intelectuais, o mandado de prisão determina com clareza que encontrado o objeto do mandado, este deve ser preso.]

Não importa, nunca, o que eles tenham feito: todas as vezes em que trocam tiros com a polícia, o Brasil “que pensa” diz automaticamente que houve um massacre — como se as forças da ordem tivessem entrado numa “comunidade” pacífica e começado a matar gente a torto e a direito.

Não se diz, jamais, que a polícia se apresentou para cumprir o dever legal de combater o crime e cumprir ordens da Justiça.  Nunca se diz, também, que os policiais foram recebidos à bala pelos bandidos, nem que os mortos eram criminosos; são apresentados ao público, simplesmente, como “pessoas” ou “moradores”.

Acaba de acontecer mais uma vez no Rio, com uma operação policial que deixou 29 mortos na favela do Jacarezinho. Desses 29, só um não era criminoso justamente, um policial civil que participou das ações. [detalhe: o policial civil  foi o primeiro morto na ação - estava desembarcando do veículo blindado da PC, quando boi atingido por um tiro de fuzil,  disparado por um bandido escondido em uma laje,com a conivência do morador.] Três dos que morreram estavam denunciados pelo Ministério Público e eram procurados pela Justiça. [permanecem em aberto 19 mandados, o que origa a Polícia Civil a cumpri-los no momento em que os indicados sejam localizados e com o uso da força necessária.]

A polícia foi à favela para cumprir ordens legais de desmontar esquemas em que os bandidos dão treinamento de tiro a crianças e adolescentes, e os forçam a estar sempre na linha de frente nos confrontos com a polícia; a adesão é obrigatória, sob ameaça de morte.

Parece perfeitamente justo que a autoridade policial tente fazer alguma coisa para combater uma opressão particularmente cruel como essa 
É compreensível, também, que abram fogo se são recebidos com granadas e tiros de fuzil automático. Só que não.[ministro Fachin: os policiais não podem, nem devem exercer o uso da força necessária para não tombarem mortos? ou devem não reagir, tombar mortos, para que sua suprema decisão seja cumprida.
Ou seria mais prático o senhor revogar todos os mandados de prisão expedidos pelo Poder Judiciario? 
Ou mais adequado seria proibir que durante a pandemia juízes de primeiro grau não expeçam mandados de prisão?

A reação da elite foi a mesma de sempre: Mais uma vez "a polícia massacra cidadãos da comunidade”. Segue-se, até o caso cair no esquecimento, uma maciça campanha de propaganda na mídia, no mundo político e na elite, pedindo “punição para os culpados” e verbas para “atender os interesses da população das comunidades”.

Desta vez houve também um manifesto “popular” pela legalização da maconha armou-se, inclusive, uma comovida declaração de apoio do ministro do STF Luís Roberto Barroso à essa tese. (Seu colega Edson Fachin já havia proibido a polícia de fazer voos de helicóptero sobre as favelas do Rio; também não pode chegar a menos de 100 metros de uma escola, o que transformou o setor escolar num território livre para o crime.)

Não se diz uma sílaba, entre os militantes da “justiça social” e nos telejornais do horário nobre, sobre o sofrimento eterno da maioria da população das favelas. As pessoas, ali, vivem sujeitas à morte, o tempo todo, nos tiroteios entre as quadrilhas (nesse caso, a mídia não fala em “massacre”; são “confrontos”, ou “trocas de tiro”) 
Suas casas podem ser confiscadas para servir como depósitos de drogas. Sofrem todo o tipo de extorsão. 
São agredidas, roubadas e humilhadas. 
Vivem o terror constante de ver as suas filhas adolescentes, e mesmo crianças, serem escolhidas como vítimas de estupro por parte dos chefes. Sofrem, agora, com o recrutamento dos filhos para a função de “soldados” do tráfico.

Deveria estar muito claro qual é o lado certo e qual é o lado errado nesta história. Mas não está; a verdade, aliás, está cada vez mais escondida.

J.R. Guzzo - colunista - Vozes - Gazeta do Povo