Demétrio Magnoli - O Globo
Orbán nasceu da derrubada de um muro e transformou-se no principal arauto da construção de muros
Há 30 anos, entre a noite de 10 de setembro de 1989 e a manhã seguinte, o
êxodo começou. Milhares de alemães do leste com vistos de turismo
cruzaram a fronteira entre Hungria e Áustria. Na passagem, cada
motorista recebeu pouco mais de US$ 25 doados pela Cruz Vermelha para
pagar o combustível até a Alemanha Ocidental. Ali, começou a ruir o Muro
de Berlim, que desabaria dois meses depois, no 9 de novembro. A
história inteira, relida hoje, é um conto sobre a indignidade e o
declínio de valores.
O ponto de partida situa-se pouco antes, no 27 de agosto, quando o
governo comunista húngaro cedeu à pressão e cortou a cerca erguida na
fronteira com a Áustria. Vivia-se o ocaso de uma era. Da capital da
Tchecoslováquia, vinham os ecos de uma grande manifestação em memória do
21º aniversário da invasão soviética que arrasou a Primavera de Praga.
Dos países bálticos, as imagens de uma corrente humana de dois milhões
de letões, estonianos e lituanos que exigiam liberdade e independência.
Mas a ruptura física da cerca húngara de arame farpado, um ato simbólico
protagonizado pelos ministros do Exterior da Hungria e da Áustria,
assinalou a quebra da Cortina de Ferro.
No 27 de agosto, um estudante húngaro acompanhava as notícias de longe,
na Universidade de Oxford. Chamava-se Viktor Orbán, tinha 26 anos e
beneficiava-se de uma bolsa concedida pela Fundação Soros. No ano
anterior, ele tinha ajudado a fundar o Fidesz, um partido oposicionista
ilegal, democrático e liberal. De volta a seu país, fez carreira
política meteórica, elegendo-se primeiro-ministro em 1998. Hoje, o líder
que nasceu da derrubada de um muro converteu-se no principal arauto da
construção de muros. Orbán é a face icônica da Europa xenófoba que
invoca o direito do sangue para implantar barreiras de arame farpado
diante de refugiados do Oriente Médio e do norte da África.
São dois capítulos distintos. No seu mandato original, até 2002, Orbán
conservou-se fiel aos princípios liberal-democráticos, conduzindo as
negociações de acesso da Hungria à União Europeia. Já no segundo
mandato, iniciado em 2010, vestiu as roupagens de um nacionalista
conservador, armando os canhões paralelos da islamofobia e do
antissemitismo. Então, a pólvora da “civilização cristã” passou a
impulsionar seus obuses dirigidos contra dois alvos: os imigrantes e a
globalização.
Os imigrantes são os refugiados sem rosto que vêm de terras devastadas
pela violência. A globalização tem, na propaganda estatal emanada de
Orbán, o rosto do investidor George Soros, seu antigo patrono, retratado
como o “judeu errante”, o “judeu sem pátria”, o manipulador
inescrupuloso dos destinos do mundo. A direita nacionalista atual
(inclusive a brasileira) oculta suas raízes antissemitas atrás de um
alinhamento completo com o governo israelense de Benjamin Netanyahu. Mas
o líder húngaro fala tudo, expondo o lado oculto da lua.
“Democracia iliberal” — eis o rótulo de Orbán para o sistema de governo
que instalou. “Conhecendo o presidente por bons 25 ou 30 anos, posso
dizer-lhe que ele adoraria ter a situação que tem Orbán”, confessou
David Cornstein, velho amigo de Donald Trump e embaixador americano em
Budapeste. O chefe do governo húngaro manietou a imprensa, subordinou o
Judiciário e enfrentou, com sucesso, a política de abertura aos
refugiados ensaiada pela alemã Angela Merkel em 2015. Nesse percurso,
transformou-se no farol dos partidos da direita nacionalista europeia.
A Praça do Parlamento, em Budapeste, perdeu a estátua de Imre Nagy, o
líder da revolução democrática húngara de 1956, erguida em 1996 e
removida em 2018 por uma ordem de Orbán destinada a agradar a seu aliado
Vladimir Putin. A Universidade Centro-Europeia, melhor instituição de
ensino superior da Hungria, financiada pela Fundação Soros, está sendo
expulsa do país por injunções do governo. De certo modo, a Hungria
restabelece a cerca de arame farpado cortada há 30 anos. Orbán não economiza elogios ao governo de um país distante:
“A mais apta
definição da democracia cristã moderna pode ser vista no Brasil, não na
Europa”.
Demetrio Magnoli, jornalista - O Globo