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quinta-feira, 24 de junho de 2021

Batalha da Hungria contra bandeira gay vai além de jogo da Eurocopa - VEJA - Blog Mundialista

Vilma Gryzinski 

O governo de Viktor Orbán tem o maior atrito com a direção da União Europeia por causa de lei que proíbe falar em homossexualidade nas escolas

Não teve bandeira do arco-íris na iluminação do estádio Allianz Arena, embora as cores do movimento LBGTI tenham pipocado por toda a Alemanha. Também não teve vitória da Hungria, com grande torcida contra o time por causa da decisão da Uefa de não acatar o pedido do prefeito de Munique, Dieter Reiter, de iluminar o estádio com as listas multicoloridas. [Agiu certo o prefeito de Munique: futebol é futebol, não pode,nem deve se envolver em discussões políticas.] Como explicação, a Uefa disse que não poderia agir movida por “uma decisão política”.

Apesar das antipatias despertadas, teve uma dose de razão: a iniciativa do prefeito foi feita em resposta a uma lei aprovada esmagadoramente  – 157 votos a um pelo Parlamento da Hungria na semana passada que proíbe falar sobre homossexualidade e questões de gênero nas escolas frequentadas por menores de 18 anos e em programas infantis de televisão. [também agiu corretamente o Parlamento húngaro: não é aceitável que questões como homossexualidade e de gênero sejam tratadas em escolas para menores de 18 anos e em programas infantis; são assuntos que devem ser discutidos entre adultos. São assuntos complexos e que só devem ser tratados por pessoas com um grau de amadurecimento não encontrado no público infantil,nem adolescência.]

O tema é, obviamente, incendiário, pois não existe consenso entre as diferentes camadas da sociedade sobre como deve ser tratado. Simplesmente ignorá-lo, abordá-lo de maneira neutra ou usar a influência da escola para promover a aceitação de diferentes comportamentos sexuais? 
Qual o limite entre combater o preconceito, atitude tão desejável e necessária, e o incentivo com selo oficial à experimentação sexual heterodoxa?

Os extratos mais conservadores ou apenas não antenados com comportamentos alternativos têm grande repúdio a que isso seja tratado na escola, por receio justamente de que a terceira opção seja a mais influente. É uma atitude refletida, inclusive, na última eleição no Brasil. E é um debate no qual Viktor Orbán, o primeiro-ministro húngaro que encarna como nenhum outro político em atividade o conservadorismo mais assumido e articulado, se jogou de cabeça, sabendo muito bem que criaria mais um – talvez o maior de todos – ponto de atrito com a União Europeia.

“Esta lei húngara é uma vergonha”, fulminou Ursula von der Leyen, a alemã que preside a União Europeia, acusando a Hungria de “violar os valores fundamentais da União Europeia: a dignidade humana, a igualdade e o respeito pelos direitos humanos”. Ela também desencadeou o burocrático processo da instituição para tentar cancelar a lei, com apelos ao governo húngaro.  As duas partes têm pleno conhecimento de que isso não vai acontecer. A próxima etapa, como pediram 14 dos 27 países europeus, pode ser levar a Hungria ao Tribunal de Justiça da UE. Parecer um guerreiro solitário que enfrenta potestades superiores para defender os valores tradicionais é um dos motivos da popularidade de Orbán. Na Assembleia Nacional, seu partido, o Fidesz, e um partido aliado têm 133 deputados do total de 199.

Orbán é primeiro-ministro desde 2010 e não parece minimamente ameaçado, apesar – ou por causa das antipatias que acirra entre progressistas, dentro e fora da Hungria, e dos muitos atritos com a União Europeia, inclusive por interferir na composição do judiciário. [os mandatos sucessivo a serem cumpridos pelo presidente Bolsonaro o levará, com as bênçãos de DEUS,  a superar a longevidade de Viktor Órban.] Os adversários mais inflamados do político húngaro dizem que ele gostaria de instaurar uma “ditadura putinesca”. Ele realmente cultiva uma relação especial com Vladimir Putin, embora muitos de seus discursos formidáveis se ancorem do espírito de resistência dos húngaros ao comunismo soviético.

Ao contrário de Putin, ele tem estofo intelectual  sólido e conhece melhor a Europa Ocidental. Chegou a ganhar uma bolsa para estudar ciências políticas em Oxford – ironicamente, a bolsa foi dada pela Fundação Soros.  George Soros, o multibilionário nascido na Hungria e radicado nos Estados Unidos, se tornou o mais conhecido inimigo ideológico de Orbán.

A batalha da bandeira gay torna o político húngaro mais conhecido, talvez pelos motivos errados. Orbán iria assistir o jogo com a Alemanha, mas cancelou a viagem. Poupou-se de ver o empate que desclassificou a Hungria – e talvez de ser vaiado, dependendo dos humores da plebe. A Hungria e a Polônia são hoje os dois países da União Europeia que mais assumem um papel combativo em relação às chamadas batalhas identitárias ou pautas sociais, insurgindo-se contra o casamento gay, a mudança oficial de gênero, o aborto, o progressivismo que grassa no mundo acadêmico e nas ONGs e a abertura de fronteiras para imigrantes de fora da Europa.

Ganharam a denominação de “democracias iliberais” O nacionalismo sem nenhuma atenuante, fortemente alimentado pelos períodos de perda de autonomia no passado distante ou recente, é a coluna de sustentação dessa linha. É claro que isso entra diretamente em confronto com as tendências dominantes. “A maior ameaça para a Europa não está nos que querem vir viver aqui, mas nas nossas próprias elites políticas, econômicas e intelectuais, obcecadas por transformar a Europa contra o próprio desejo dos povos europeus”, já disse Orbán. “Os partidos no governo na Polônia e na Hungria buscam o que consideram uma ruptura mais autêntica com a miragem da transição de 1989”, escreveu no Guardian o historiador americano Nicholas Mulder, referindo-se ao período atribulado do pós-comunismo.  “O nacionalismo antiliberal na Europa oriental é mais do que uma explosão de paixões incontroláveis. Têm em comum a crença de que receberam uma missão histórica e que o fim do comunismo foi apenas o começo do trajeto para a libertação nacional. O fato de que estas ideias tenham sido moldadas durante a década de transição também sugere que a democracia liberal é um projeto propositivo – não apenas algo reativo, mas sim dotado de seus próprios objetivos ideológicos”.

Dá para perceber que o assunto vai muito além da iluminação com a bandeira gay num estádio. E que o conflito com a direção da União Europeia vai esquentar.

Blog Mundialista - Vilma Gryzinski, jornalista -  VEJA

 

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

30 anos, amanhã - O Globo

Demétrio Magnoli - O Globo

Orbán nasceu da derrubada de um muro e transformou-se no principal arauto da construção de muros

Há 30 anos, entre a noite de 10 de setembro de 1989 e a manhã seguinte, o êxodo começou. Milhares de alemães do leste com vistos de turismo cruzaram a fronteira entre Hungria e Áustria. Na passagem, cada motorista recebeu pouco mais de US$ 25 doados pela Cruz Vermelha para pagar o combustível até a Alemanha Ocidental. Ali, começou a ruir o Muro de Berlim, que desabaria dois meses depois, no 9 de novembro. A história inteira, relida hoje, é um conto sobre a indignidade e o declínio de valores.

O ponto de partida situa-se pouco antes, no 27 de agosto, quando o governo comunista húngaro cedeu à pressão e cortou a cerca erguida na fronteira com a Áustria. Vivia-se o ocaso de uma era. Da capital da Tchecoslováquia, vinham os ecos de uma grande manifestação em memória do 21º aniversário da invasão soviética que arrasou a Primavera de Praga. Dos países bálticos, as imagens de uma corrente humana de dois milhões de letões, estonianos e lituanos que exigiam liberdade e independência. Mas a ruptura física da cerca húngara de arame farpado, um ato simbólico protagonizado pelos ministros do Exterior da Hungria e da Áustria, assinalou a quebra da Cortina de Ferro.

No 27 de agosto, um estudante húngaro acompanhava as notícias de longe, na Universidade de Oxford. Chamava-se Viktor Orbán, tinha 26 anos e beneficiava-se de uma bolsa concedida pela Fundação Soros. No ano anterior, ele tinha ajudado a fundar o Fidesz, um partido oposicionista ilegal, democrático e liberal. De volta a seu país, fez carreira política meteórica, elegendo-se primeiro-ministro em 1998. Hoje, o líder que nasceu da derrubada de um muro converteu-se no principal arauto da construção de muros. Orbán é a face icônica da Europa xenófoba que invoca o direito do sangue para implantar barreiras de arame farpado diante de refugiados do Oriente Médio e do norte da África.

São dois capítulos distintos. No seu mandato original, até 2002, Orbán conservou-se fiel aos princípios liberal-democráticos, conduzindo as negociações de acesso da Hungria à União Europeia. Já no segundo mandato, iniciado em 2010, vestiu as roupagens de um nacionalista conservador, armando os canhões paralelos da islamofobia e do antissemitismo. Então, a pólvora da “civilização cristã” passou a impulsionar seus obuses dirigidos contra dois alvos: os imigrantes e a globalização.

Os imigrantes são os refugiados sem rosto que vêm de terras devastadas pela violência. A globalização tem, na propaganda estatal emanada de Orbán, o rosto do investidor George Soros, seu antigo patrono, retratado como o “judeu errante”, o “judeu sem pátria”, o manipulador inescrupuloso dos destinos do mundo. A direita nacionalista atual (inclusive a brasileira) oculta suas raízes antissemitas atrás de um alinhamento completo com o governo israelense de Benjamin Netanyahu. Mas o líder húngaro fala tudo, expondo o lado oculto da lua.

“Democracia iliberal” — eis o rótulo de Orbán para o sistema de governo que instalou. “Conhecendo o presidente por bons 25 ou 30 anos, posso dizer-lhe que ele adoraria ter a situação que tem Orbán”, confessou David Cornstein, velho amigo de Donald Trump e embaixador americano em Budapeste. O chefe do governo húngaro manietou a imprensa, subordinou o Judiciário e enfrentou, com sucesso, a política de abertura aos refugiados ensaiada pela alemã Angela Merkel em 2015. Nesse percurso, transformou-se no farol dos partidos da direita nacionalista europeia.

A Praça do Parlamento, em Budapeste, perdeu a estátua de Imre Nagy, o líder da revolução democrática húngara de 1956, erguida em 1996 e removida em 2018 por uma ordem de Orbán destinada a agradar a seu aliado Vladimir Putin. A Universidade Centro-Europeia, melhor instituição de ensino superior da Hungria, financiada pela Fundação Soros, está sendo expulsa do país por injunções do governo. De certo modo, a Hungria restabelece a cerca de arame farpado cortada há 30 anos. Orbán não economiza elogios ao governo de um país distante:  
“A mais apta definição da democracia cristã moderna pode ser vista no Brasil, não na Europa”.
 
Demetrio Magnoli, jornalista - O Globo