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segunda-feira, 9 de setembro de 2019

30 anos, amanhã - O Globo

Demétrio Magnoli - O Globo

Orbán nasceu da derrubada de um muro e transformou-se no principal arauto da construção de muros

Há 30 anos, entre a noite de 10 de setembro de 1989 e a manhã seguinte, o êxodo começou. Milhares de alemães do leste com vistos de turismo cruzaram a fronteira entre Hungria e Áustria. Na passagem, cada motorista recebeu pouco mais de US$ 25 doados pela Cruz Vermelha para pagar o combustível até a Alemanha Ocidental. Ali, começou a ruir o Muro de Berlim, que desabaria dois meses depois, no 9 de novembro. A história inteira, relida hoje, é um conto sobre a indignidade e o declínio de valores.

O ponto de partida situa-se pouco antes, no 27 de agosto, quando o governo comunista húngaro cedeu à pressão e cortou a cerca erguida na fronteira com a Áustria. Vivia-se o ocaso de uma era. Da capital da Tchecoslováquia, vinham os ecos de uma grande manifestação em memória do 21º aniversário da invasão soviética que arrasou a Primavera de Praga. Dos países bálticos, as imagens de uma corrente humana de dois milhões de letões, estonianos e lituanos que exigiam liberdade e independência. Mas a ruptura física da cerca húngara de arame farpado, um ato simbólico protagonizado pelos ministros do Exterior da Hungria e da Áustria, assinalou a quebra da Cortina de Ferro.

No 27 de agosto, um estudante húngaro acompanhava as notícias de longe, na Universidade de Oxford. Chamava-se Viktor Orbán, tinha 26 anos e beneficiava-se de uma bolsa concedida pela Fundação Soros. No ano anterior, ele tinha ajudado a fundar o Fidesz, um partido oposicionista ilegal, democrático e liberal. De volta a seu país, fez carreira política meteórica, elegendo-se primeiro-ministro em 1998. Hoje, o líder que nasceu da derrubada de um muro converteu-se no principal arauto da construção de muros. Orbán é a face icônica da Europa xenófoba que invoca o direito do sangue para implantar barreiras de arame farpado diante de refugiados do Oriente Médio e do norte da África.

São dois capítulos distintos. No seu mandato original, até 2002, Orbán conservou-se fiel aos princípios liberal-democráticos, conduzindo as negociações de acesso da Hungria à União Europeia. Já no segundo mandato, iniciado em 2010, vestiu as roupagens de um nacionalista conservador, armando os canhões paralelos da islamofobia e do antissemitismo. Então, a pólvora da “civilização cristã” passou a impulsionar seus obuses dirigidos contra dois alvos: os imigrantes e a globalização.

Os imigrantes são os refugiados sem rosto que vêm de terras devastadas pela violência. A globalização tem, na propaganda estatal emanada de Orbán, o rosto do investidor George Soros, seu antigo patrono, retratado como o “judeu errante”, o “judeu sem pátria”, o manipulador inescrupuloso dos destinos do mundo. A direita nacionalista atual (inclusive a brasileira) oculta suas raízes antissemitas atrás de um alinhamento completo com o governo israelense de Benjamin Netanyahu. Mas o líder húngaro fala tudo, expondo o lado oculto da lua.

“Democracia iliberal” — eis o rótulo de Orbán para o sistema de governo que instalou. “Conhecendo o presidente por bons 25 ou 30 anos, posso dizer-lhe que ele adoraria ter a situação que tem Orbán”, confessou David Cornstein, velho amigo de Donald Trump e embaixador americano em Budapeste. O chefe do governo húngaro manietou a imprensa, subordinou o Judiciário e enfrentou, com sucesso, a política de abertura aos refugiados ensaiada pela alemã Angela Merkel em 2015. Nesse percurso, transformou-se no farol dos partidos da direita nacionalista europeia.

A Praça do Parlamento, em Budapeste, perdeu a estátua de Imre Nagy, o líder da revolução democrática húngara de 1956, erguida em 1996 e removida em 2018 por uma ordem de Orbán destinada a agradar a seu aliado Vladimir Putin. A Universidade Centro-Europeia, melhor instituição de ensino superior da Hungria, financiada pela Fundação Soros, está sendo expulsa do país por injunções do governo. De certo modo, a Hungria restabelece a cerca de arame farpado cortada há 30 anos. Orbán não economiza elogios ao governo de um país distante:  
“A mais apta definição da democracia cristã moderna pode ser vista no Brasil, não na Europa”.
 
Demetrio Magnoli, jornalista - O Globo