O governo de Jair Bolsonaro tenta mudar as regras legais aplicáveis às operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Não há Estado de Direito onde o que se busca é a impunidade da truculência.
O governo de Jair Bolsonaro tenta mudar as regras legais aplicáveis às
operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Recentemente, o Palácio
do Planalto enviou ao Congresso um projeto de lei para ampliar a chamada
“excludente de ilicitude” nas operações de GLO. Tendo em vista que a
legislação já protege o agente de segurança no exercício legal de sua
função, o projeto busca tornar impunes eventuais crimes cometidos nessas
ações, o que é um absurdo. O Direito deve assegurar que o poder público
atue dentro da lei, e não estimular excessos ou abusos. Além disso, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que irá apresentar um
segundo projeto de lei, relativo às ações de GLO nas reintegrações de
posse no campo. O objetivo é permitir que as forças federais de
segurança, como Exército e Polícia Federal, atuem na retirada de invasores de propriedades rurais.
Essas duas propostas, que caberá ao Congresso analisar, afrontam a
promessa de campanha de Jair Bolsonaro de dar prioridade à segurança
pública. É um contrassenso atribuir a órgãos ligados à defesa da pátria
funções para as quais eles não foram treinados. Por exemplo, a proposta
de usar as ações de GLO em reintegrações de posse no campo desorganiza o
poder policial do Estado, retirando eficácia desses órgãos, além de
aumentar a probabilidade de truculências e abusos. Tendo esse absurdo
recurso à sua disposição, qual governador deixará a tarefa da
desocupação para as suas forças de segurança pública? Além disso, sem
treinamento adequado, o uso da força é sempre mais arriscado, tanto para
o agente como para o cidadão.
No caso do projeto de lei que amplia a excludente de ilicitude nas
operações de GLO, o texto é amplo e confuso, dando margem a abusos. Vale
lembrar que o Código Penal já define que “não há crime quando o agente
pratica o fato em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício
regular de direito” (art. 23, III). Já existe, portanto, marco jurídico
suficiente para dar suporte à atuação do poder policial dentro da lei. [Em princípio, o presidente Bolsonaro poderia, através de decreto, esclarecer mais o artigo citado e assim agilizar o processo, evitando perder tempo com uma longa e obstruída tramitação no Congresso.
Infelizmente, uma oposição sistemática ao governo Bolsonaro - estimulada e mesmo comandada por parlamentares das duas casas, tão logo o decreto regulamentador = esclarecedor = fosse promulgado, o Poder Legislativo editaria um decreto legislativo revogando o decreto presidencial. Com isso o caminho que resta é o do projeto de lei, que pode empacar, mas, deixa claro as intenções do presidente da República de governar dentro das leis e sempre ouvindo o Congresso - que pode retirar do texto o que entender ser inconveniente e acrescentar o que desejar. É a DEMOCRACIA funcionando.]
Segundo o texto proposto pelo governo, “considera-se em legítima defesa o
militar ou o agente que repele injusta agressão, atual ou iminente, a
direito seu ou de outrem”. Há aqui uma omissão relevante. Ao definir
legítima defesa, o Código Penal exige o uso moderado dos meios
necessários para repelir injusta agressão. Uma desproporcional reação,
por exemplo, com violência excessiva, não é legítima defesa. No texto do
governo não existe essa condição, o que desvirtua a figura da legítima
defesa. [por se tratar de um PROJETO de Lei, o mesmo pode sofrer modificações na redação, incluindo, sem limitar, acréscimos e cortes, no que ao entendimento do Congresso falte ou seja excessivo.] Para piorar, ao definir o que seria injusta agressão, o texto inclui
“portar ou utilizar ostensivamente arma de fogo”. Segundo o projeto, o
mero porte de arma de fogo autorizaria um agente de segurança, numa
operação de GLO, a matar o portador da arma. [a utilização ostensiva pode ser caracterizada um paisano andar nas ruas, com uma pistola destravada na mão - portar é conduzir a arma no coldre, (na cintura) ou em veículo;
outra situação de utilização ostensiva é um cidadão não policial andar elas ruas com um fuzil.] Não faz nenhum sentido
equiparar porte de arma à injusta agressão - e isso até o governo
Bolsonaro teria condições de entender, já que ele também tenta por
vários modos ampliar a posse e o porte de arma no País.
O projeto tenta ainda garantir impunidade para o excesso culposo. Ciente
de que situações de exclusão de ilicitude são propícias a abusos e a
excessos, o Código Penal prevê que o autor da ação “responderá pelo
excesso doloso ou culposo”. A lei penal não é tolerante com quem,
aproveitando-se da situação de legítima defesa, ultrapassa os limites
legais. Já o texto do governo diz que “em qualquer das hipóteses de exclusão da
ilicitude previstas na legislação penal, o militar ou o agente
responderá somente pelo excesso doloso e o juiz poderá, ainda, atenuar a
pena”. [uma das formas de configurar o excesso doloso é quando o agente efetua vários disparos contra o agressor e mesmo após esse tombar ainda efetua mais disparos.
A propósito, oportuno lembrar que um cunhado da Ana Hickmann, assassinou um fã da apresentadora com com disparos na nuca e foi absolvido recentemente pela Justiça.
Convenhamos que legítima defesa atirando na nuca é complicado de ser aceito como legítima defesa.] Ou seja, o projeto dá impunidade ao excesso culposo nas ações de
GLO. Há aqui outro contrassenso. Pune-se o excesso culposo praticado
pelo cidadão, mas dá-se impunidade a quem tem por dever funcional fazer
com que a lei seja respeitada.
Segundo o projeto de lei, o juiz poderá, no caso de excesso doloso,
atenuar a pena. Mais uma vez vislumbra-se o descuido com o rigor
jurídico, com o objetivo de ampliar e facilitar a impunidade dos
excessos policiais. A segurança jurídica deve advir do rigor jurídico e
do justo equilíbrio, que respeita e protege direitos e garantias
fundamentais. Não há segurança jurídica, e tampouco Estado de Direito,
onde o que se busca é a impunidade da truculência e do abuso.
Editorial - O Estado de S. Paulo