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sábado, 2 de janeiro de 2021

As sociedades não podem ser reduzidas a curvas de gráficos epidemiológicos - Folha de S. Paulo

Demétrio Magnoli

No Brasil, como em tantos países atravessados por fundas desigualdades e severas restrições fiscais, quarentenas esbarram em limites estreitos

No feriado natalino, 20 cidades amotinaram-se contra a determinação estadual que colocou São Paulo na “fase vermelha”.

Simultaneamentemanifestações de comerciantes em Manaus obrigaram o Governo do Amazonas a cancelar o decreto de fechamento dos setores “não essenciais” e, dias antes, em Búzios (RJ), verificaram-se protestos populares contra a decisão judicial de fechar o município aos turistas. Milhões tomaram o rumo das praias no Réveillon. As quarentenas vergam, aos poucos, sob o peso conjugado da tensão social e da anomia política.

No começo de tudo, delineou-se uma corrente de epidemiologistas que, hipnotizados por modelos estatísticos, preconizaram estritas quarentenas sem fim, até o extermínio do vírus. [os tais epidemiologistas que nada sabiam sobre o vírus, contaram na sua batalha infame favorável ao confinamento de milhões de brasileiros com o apoio dos contadores de cadáveres.

A coisa chegou a um ponto que o Supremo, sempre presente nos assuntos que podem ser judicializados, determinou regras para que o Ministério da Saúde fornecesse informações aos contadores de defuntos.]

Depois, quando desistiram do sonho impossível, alguns deles clamaram por rígidos lockdowns de um mês, garantindo que o congelamento absoluto interromperia a pandemia, uma profecia desmentida pelas experiências práticas de inúmeros países. Hoje, ainda imunes às lições recentes, mas imitados por hordas de “influenciadores digitais” fantasiados de santos, lamentam terem sido ignorados e retomam o antigo discurso.

O Brasil, segundo país com maior número de óbitos contabilizados pela Covid-19, ocupa o 22º lugar na lista da taxa de óbitos, atrás de países como a Itália, a Espanha, o Reino Unido, a França e a Argentina, que fizeram lockdowns radicais. Todos os países ocidentais nos quais o vírus se espraiou antes de março exibem elevadas taxas de mortalidade.

A exceção notável é a Ásia oriental, um mistério cuja explicação talvez se encontre na relativa imunidade conferida por intensos contatos prévios com outros coronavírus. Nada disso exime de culpa o negacionismo místico do governo federal, mas inscreve na moldura correta o impasse atual. As sociedades não podem ser reduzidas a pontos e curvas de gráficos epidemiológicos. No Brasil, como em tantos países atravessados por fundas desigualdades e severas restrições fiscais, quarentenas esbarram em limites estreitos.

comportamento dos jovens, aqui ou na Europa, só pode ser alterado por períodos relativamente curtos. Jornalistas que apontam o dedo acusador para aglomerações de ambulantes, pancadões da periferia ou praias lotadas fugiram das aulas de sociologia. A pandemia é o teste de fogo das lideranças políticas. Bolsonaro não é Merkel e nem mesmo Trump, que ao menos deflagrou a corrida pela vacina. Nosso governo apostou no vírus —isto é, na polarização política, na guerra contra moinhos de vento, na sabotagem perene das medidas indispensáveis de restrição sanitária. A ironia é que, dez meses depois, Bolsonaro está vencendo —e não só graças aos efeitos mágicos do cheque emergencial.

Os contágios disseminam-se, principalmente no transporte público, na economia informal, nos bares festivos, em farras de bacanas ou bailes dos pobres. Mas as ferramentas restritivas dos governadores miram outro alvo: o comércio e os serviços formais, que já esgotaram suas reservas econômicas e sua capacidade de resistência.

Para surpresa dos que praticam o esporte do trabalho remoto ou recebem salários do Estado, desata-se um conflito que se esparrama pelas ruas e encurrala os prefeitos. Sua implicação epidemiológica é a desmoralização das quarentenas e seu fruto político é a conversão dos setores da população mais afetados em neobolsonaristas. O fim do auxílio emergencial tende a acelerar a dupla crise.

Na Europa, onde a pandemia foi enfrentada por um sólido consenso político, a parede das quarentenas começa a fissurar. No Brasil, que elegeu Bolsonaro, ela desaba em câmera lenta. Inexistem soluções simples para o impasse, mas o ponto de partida é reconhecer sua natureza, que não é epidemiológica. A vacinação em massa tardará. Os governadores que negam o negacionismo precisam formular novas estratégias. [criticar um suposto negacionismo, que em nada prejudica o combate ao coronavírus  é conduta que só se sustenta se os críticos apresentarem soluções que existam e funcionem.]

DemétrioMagnoli, sociólogo - Folha de S. Paulo

 

 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Educação pública é bem supérfluo — eis o único consenso nacional

O Globo


A polarização política contaminou as discussões sobre a crise sanitária

 ‘Já enfrentávamos uma crise de ensino anterior à pandemia. Agora, estamos diante de uma catástrofe de toda uma geração que pode desperdiçar potencial humano e levar a décadas de atraso, exacerbando a desigualdade.’  António Guterres, secretário-geral da ONU, concluiu dizendo que a educação merece o qualificativo de atividade essencial: “Colocar os alunos de volta às escolas da forma mais segura possível precisa ser a maior prioridade”. No Brasil, porém, o debate sobre o tema foi virtualmente interditado.

As escolas particulares de Manaus reabriram há 35 dias, colocando 60 mil alunos em aulas presenciais. A cidade vive nítido declínio da transmissão do vírus, mas está longe de erradicar o contágio. A maioria dos modelos epidemiológicos e dos estudos em países que retomaram aulas revelam riscos muito baixos
Nada, porém, parece capaz de evitar que as redes públicas de ensino brasileiras sigam fechadas indefinidamente.

Um fator relevante é psicossocial: os pais temem por seus filhos. Quando adotados padrões sanitários e de testagem apropriados, é muito reduzida a probabilidade estatística de contágio entre professores e funcionários e, especialmente, de complicações sérias em crianças. Obviamente, o risco não é nulo — como, aliás, no caso de outras doenças contagiosas. E se meu filho for o ponto fora da curva?

O medo tem um contexto. A polarização política contaminou as discussões sobre a crise sanitária. O negacionismo bolsonarista provocou uma reação dogmática, que domina a imprensa e a parcela mais esclarecida da opinião pública: “Se Bolsonaro fala em abrir, exigimos fechar”. [ATENÇÃO: com as devidas vênias, discordamos que se trate de reação dogmática, movida por uma conduta do presidente Bolsonaro,que foi classificada como negacionismo.
É uma reação política,muito bem orquestrada, de grupos que simplesmente decidiram derrubar Bolsonaro e para a consecução do objetivo vale tudo que seja contra o presidente. 
Todos sabem que o governo federal não foi omisso no combate à pandemia - foi retirado do front.] No lugar do debate racional de custos e benefícios de cada restrição sanitária específica, as vozes indignadas com a criminosa negligência do governo federal refugiam-se no clamor genérico por lockdowns. Nesse passo, o pensamento supostamente progressista limita-se a reproduzir a cartilha bolsonarista — apenas virando-a pelo avesso.

Na prática, como quarentenas prolongadas são insustentáveis, o clamor só contribui para moldar o ritmo e as formas da reabertura inevitável. Os governos autorizam a retomada dos setores politicamente organizados, capazes de exercer pressão eficiente, como templos, escritórios, indústrias e shoppings. Escolas? As crianças não têm associações de classe — e não votam. A política, não a epidemiologia, decide a sorte de “toda uma geração” de brasileiros sem voz.

Fora do Brasil, há negacionistas de direita, como Trump, e de esquerda, como o sandinista nicaraguense Daniel Ortega e o nacionalista mexicano López Obrador. No Brasil, porém, a esquerda cavou sua trincheira no quadrante mais extremo do fundamentalismo epidemiológico. O medo elege: a bandeira da irredutível “defesa da vida” descortina caminhos oportunos para a denúncia geral de governadores e prefeitos que, ao longo do tempo, flexibilizam quarentenas. É nessa moldura que se inscreve a exigência da manutenção de escolas fechadas “até a vacina”, já explicitada pelo candidato do PT à prefeitura de São Paulo.

Os alunos não têm voz, mas os sindicatos de professores têm — e utilizam poderosos megafones para sabotar o mero debate sobre reabertura escolar. Manaus é mais um indício de que é possível reabrir escolas com segurança [favorecida pela imunidade de rebanho] nas cidades que descem a ladeira da curva pandêmica. Daí surge a palavra de ordem “Não antes da vacina!” — que, nas condições atuais, equivale a aguardar a descoberta do genuíno Santo Graal ou do mapa da Serra das Esmeraldas. Escolas, só depois da Segunda Vinda de Cristo, diriam os chefões sindicais, se empregassem a linguagem dos bispos.

Guterres não tem chance no Brasil. Bolsonaro, que fingiu decretar a reabertura de quase tudo, nunca falou em abrir escolas. Aqui, a elite segregou seus filhos em colégios-butique, cujas anuidades são mais bem expressas em dólar, os governos de esquerda jamais se importaram com a tragédia educacional retratada nas comparações internacionais do Pisa, e o governo da extrema direita entregou o MEC a um analfabeto funcional malcriado.
Educação pública é bem supérfluo — eis o único consenso nacional.

Demétrio Magnoli, colunista - O Globo



domingo, 12 de abril de 2020

AOS ELEITORES DE BOLSONARO - Percival Puggina

O ano de 2020 começou para todos os brasileiros com uma convergência de infortúnios. Uma assustadora pandemia. Uma crise de governabilidade (o governo se recusou a comprar maioria parlamentar). Uma crise econômica e fiscal (quase sem recursos disponíveis para atender demandas súbitas e urgentes da sociedade, que empobrece a cada volta do relógio, o governo precisou criar um “orçamento de guerra”). Uma crise na comunicação entre o governo e a sociedade (“filtrada” pelo partido da mídia, que tem o objetivo explícito de desestabilizar o governo). É dentro desses e de outros contextos que os cidadãos são chamados a tomar posição.

A grande mídia, desde a campanha eleitoral, nunca teve outro inimigo além do Bolsonaro. A palavra “governo”, por exemplo, é usada de modo a tornar impessoal e sem crédito a ninguém tudo que vai bem, enquanto as palavras Presidente ou Bolsonaro são o cabide para pendurar o que vai mal. Essa tarefa do partido da mídia está facilitada pelo encarceramento da sociedade e o desencarceramento dos criminosos. Pelos mesmos motivos epidemiológicos – valha-me Deus! – que nos prende em casa, os bandidos são soltos. Sem poder sair à rua, sem trabalho, sem futebol e sem alternativa, nunca como nestes dias os brasileiros viraram audiência cativa e disponibilizaram tanto de seu tempo para os fazedores de cabeça dos grandes veículos atacarem infatigavelmente o governo por todos os flancos. A contínua exposição a esse bombardeio testa a resistência do alvo.

Visivelmente, o presidente optou, desde o início, por servir otimismo à nação. Com o clima psicológico nacional oscilando entre o purgatório e o inferno, Bolsonaro preferiu conferir à população um ânimo positivo, de confiança. Vamos sair dessa, vamos sanar os enfermos, vamos resguardar nossas crianças e nossos idosos e vamos repor, gradualmente, normalidade às nossas vidas. Vamos trabalhar e produzir nosso sustento.

É um discurso que espantaria a crise, espantaria os urubus, espantaria quantos fizeram e ainda fazem volumosas apostas no caos porque precisam da hecatombe universal. Quem cria o caos não pode admitir que algum irresponsável atravanque o caminho para acabar com ele recitando nomes de remédios. O caos estava garantido e bem desenhadinho com borra de café no fundo da xícara, ora essa! Como identificou há poucas horas o prof. Alex Pipkin, num artigo que postei no meu blog, ninguém tem condições de testemunhar juramentado sobre onde está a verdade. Não há como saber e não creio que alguém possa apresentar evidência ou comprovar alguma hipótese tecnicamente aplicável ao perfil geográfico, climático e demográfico do Brasil. A própria existência de um ponto médio entre a crise médico-epidemiológica e a crise econômico-fiscal é de existência presumível, mas incerta. É a tese que levará Bolsonaro ao inferno ou ao paraíso.

Duas certezas, porém, estão servidas em dose satisfatória pelo partido da mídia, sem necessidade de prescrição, dúzias de vezes ao dia. Primeira, quem pretende transformar Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre, o Congresso, o STF, em respeitáveis referências nacionais não convence ninguém. Está lelé e a mãe não sabe. Segunda, quem disser que o Presidente está se desestabilizando por conta própria, o que é verdade frequente, deduzindo daí que seus oponentes estejam a consolidar suas posições, não entendeu o ano de 2018, nem percebeu para onde convergem os mais consistentes anseios e rejeições dos eleitores brasileiros.


Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. 
Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

  

domingo, 29 de março de 2020

O dilema é real - Folha de S. Paulo

 Hélio Schwartsman


Tentar preservar a atividade econômica não é preocupação sem sentido

[FATO:
O Ilustre jornalista inicia o artigo - excelente e incontestável -  chamando o presidente JAIR BOLSONARO de 'alienado'.
Acontece que se o jornalista ler este artigo na TV, no Rádio, em rede nacional, ele será chamado pelos isolacionistas de alienado.
Sugerimos que suas excelências, Ibaneis, Doria, Witzel e seus aspones leiam esta matéria e consigam contestar o que ela apresenta.]


Jair Bolsonaro é um alienado,[sic] mas a preocupação em tentar preservar a atividade econômica não é sem sentido, sobretudo porque não há clareza sobre quanto tempo a crise da Covid-19 pode durar. A normalização de fato só virá se conseguirmos desenvolver uma vacina ou depois que gente o bastante tiver sido infectada e se recuperado, produzindo a tal da imunidade de rebanho.

Precisamos parar quase tudo por um tempo, para tentar reduzir o impacto da primeira onda da epidemia sobre os sistemas de saúde, mas um lockdown não pode durar para sempre
Basta um experimento mental para constatá-lo: 
ignoramos a real letalidade do Sars-Cov-2, que pode ficar em qualquer cifra entre 0,05% e 3%, mas não precisamos de estudos epidemiológicos para saber que a inanição é letal em 100% dos casos.

E o tempo de paralisação importa. Bem antes de chegarmos ao ponto da fome generalizada pelo colapso da produção agrícola -- se ninguém fabricar mais peças de trator, uma hora o campo para --, começaríamos a colecionar mortos por outras causas, como o agravamento de cânceres devido ao adiamento de cirurgias eletivas, doenças associadas à desnutrição nas famílias mais vulneráveis etc. Nem é preciso introduzir elementos financeiros na conta. Há, por definição, um instante em que os óbitos atribuíveis à deterioração econômica superam os da Covid-19.

Ainda que os parâmetros que permitiriam fazer esse cálculo não sejam hoje conhecidos, o dilema entre proteger o sistema de saúde e proteger a economia é real. Precisamos desde já bolar estratégias para tentar retomar a atividade passada a primeira onda. Bons estudos epidemiológicos ajudariam muito. O que torna a posição defendida por Bolsonaro insustentável são as incertezas em relação à epidemia. Um lockdown exagerado sempre pode ser relaxado, mas um desleixo inicial, magnificado pelo poder avassalador da curva exponencial, não tem volta.

Hélio Schwartsman, jornalista - Folha de S. Paulo