Eliane Cantanhêde
Não terá quebra-quebra, mas Dodge vê 'triplo retrocesso' em decisão do Supremo
O Supremo finalmente cumpriu a ameaça de derrubar a prisão após
condenação em segunda instância – instrumento importantíssimo contra os
crimes, em especial de colarinho branco –, mas é bom que se saiba que a
guerra continua. Agora num outro foro também improvável, mas igualmente
legítimo: o Congresso Nacional.
“Sim, a guerra continua”, concordou ontem a ex-procuradora geral da
República, Raquel Dodge, descartando o frágil argumento de que o
“trâmite em julgado”, que se contrapõe à prisão em segunda instância, é
cláusula pétrea da Constituição. Não é. Logo, pode ser mudada por
Proposta de Emenda Constitucional (PEC).Se fosse cláusula pétrea, argumenta ela, o Supremo jamais poderia ter
admitido a prisão após a condenação em segunda instância, como até
ontem, e, aliás, teria votado por unanimidade contra sua aplicação.
Como PGR (aliás, a primeira mulher a ocupar o cargo), Dodge assinou
longo parecer contra nova mudança de entendimento. E, muito antes,
quando a prisão em segunda instância voltou, era procuradora junto ao
Superior Tribunal de Justiça (STJ) e atuou para o cumprimento antecipado
da pena passasse a valer rapidamente. Dodge, que tem no currículo também três anos na prestigiada universidade
de Harvard, elogia a firme decisão da ministra Carmen Lúcia que, em
seus dois anos de presidência do STF, se negou peremptoriamente a
colocar em pauta, mais uma vez, uma questão já decidida pelo plenário em
três oportunidades muito recentes. “Não há fatos novos nem mudança na composição do plenário”, diz a
procuradora, repetindo quase que literalmente os argumentos de Carmen
Lúcia, que enfrentou ameaças, agressões, insinuações e ironias,
inclusive de colegas e em sessões transmitidas ao vivo pela TV Justiça,
mas não arredou pé da sua convicção. Seu sucessor na presidência, Dias
Toffoli, esperou mais de um ano para fazer o oposto e por em votação,
mas já assumiu determinado a fazê-lo. Tardou, mas não falhou. [no compromisso assumido de colocar em votação - já seu voto foi uma falha gigantesca, somada a da aprovação da PEC da Bengala.]
Como vem dizendo Dodge, o fim da prisão após segunda instância é um
triplo retrocesso: falta de estabilidade, com idas e vindas; perda de
eficiência do sistema, com a volta de processos penais infindáveis,
recursos protelatórios e prescrições; risco de perda de credibilidade
junto à sociedade, pela eterna sensação de impunidade, principalmente de
réus ricos e poderosos.[perder o que não se tem, é impossível.]
Assim como os especialistas militares defendem pesados investimentos em
Defesa e Forças Armadas para garantir o “papel dissuasório” dos países,
mesmo os mais pacíficos, como o Brasil, Raquel Dodge lembra da
importância da “força inibitória” da Justiça. Uma justiça efetiva, ágil e
realmente justa ( pleonasmo necessário) é fundamental para inibir
ímpetos criminosos e, portanto, os próprios crimes. A estabilidade e a
credibilidade são fatores inalienáveis nessa direção.
Quanto à questão política, sobre a qual Dodge não fala, há que se
destacar que se pode apoiar ou discordar da decisão do Supremo, mas
esqueçam a possibilidade de rebeliões, manifestações imensas, tumultos.
Eliane Cantanhêde - O Estado de S. Paulo