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quinta-feira, 29 de junho de 2023

Cor da pele e etnia não podem ser critérios para entrada em universidade, decide Suprema Corte dos EUA - O Globo

A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, nesta quinta-feira, que os programas de admissão com base na raça e etnia da Universidade de Harvard e da Universidade da Carolina do Norte são inconstitucionais, restringindo a ação afirmativa em faculdades e universidades de todo o país — uma política que há muito é um pilar do ensino superior, e em mais uma decisão histórica um ano após o revés no direito constitucional ao aborto. A decisão pode significar menos estudantes negros e hispânicos nas melhores universidades do país e forçar centenas de escolas a reformular suas políticas de admissão.[perguntar não ofende: se a Constituição da República Federativa do Brasil diz em seu artigo 5º,  com todas as letras,de forma clara e inequívoca  que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,..." como pode uma lei, portanto, inferior à  Constituição, estabelecer o contrário?
Portanto, em nossa opinião, no Brasil devem ser seguidos os preceitos constitucionais, que sempre devem prevalecer sobre as leis.]

A Corte — dominada por uma maioria conservadora de 6 a 3, incluindo três juízes nomeados pelo ex-presidente Donald Trump — determinou que os procedimentos de admissão com base na cor da pele, ou na origem étnica dos candidatos, são inconstitucionais, rejeitando os argumentos das universidades de que seus programas foram implementados para garantir a diversidade nos campi.

O presidente da Corte, John Roberts Jr., escreveu a opinião da maioria, dizendo que os programas violavam a cláusula de proteção igualitária da Constituição. "Ambos os programas carecem de objetivos suficientemente focados e mensuráveis ​​que justifiquem o uso da raça", disse, acrescentando que "inevitavelmente empregam a raça de maneira negativa" e envolvem "estereótipos raciais".

"Nunca permitimos que os programas de admissão funcionassem dessa maneira e não o faremos hoje", continuou. Os alunos, escreveu ele, "devem ser tratados com base em suas experiências como indivíduos, não com base na raça".

As juízas Sonia Sotomayor — primeira hispano-americana a compor a Corte —, Ketanji Brown Jackson — primeira mulher afro-americana nomeada ao cargo — e Elena Kagan foram contra a decisão. Sotomayor resumiu a discordância do tribunal, um movimento raro que sinaliza profundo desacordo, afirmando que a Corte está "enraizando ainda mais a desigualdade racial na educação, a própria base de nosso governo democrático e sociedade pluralista".

Os dois casos foram apresentados pelo Students for Fair Admissions (Estudantes por admissões justas, em tradução livre do inglês), um grupo fundado por Edward Blum, um estrategista legal conservador que organizou muitos processos contestando as políticas de admissão com consciência racial e as leis de direito de voto, várias das quais chegaram à Suprema Corte.

No caso da Carolina do Norte, os queixosos defendiam que a universidade discriminou candidatos brancos e asiáticos ao dar preferência aos negros, hispânicos e nativos americanos. 
Já o caso contra Harvard tem um elemento adicional, acusando a universidade de discriminar estudantes asiático-americanos usando um padrão subjetivo para avaliar características como simpatia, coragem e gentileza, e efetivamente criando um teto para eles nas admissões.

As universidades ganharam as ações em tribunais federais, e a decisão a favor de Harvard foi confirmada por um tribunal federal de apelações.

O presidente republicano da Câmara dos Estados Unidos, Kevin McCarthy, aplaudiu a decisão da Suprema Corte, citando "méritos individuais" dos candidatos. "Agora os estudantes poderão competir em igualdade de condições e por méritos individuais. Isso fará com que o processo de admissão na universidade seja mais justo e defenda a igualdade antes da lei", publicou no Twitter.

Decisão pode ter efeitos de longo alcance
Estudos indicam que a maioria das universidades americanas considera a raça nas admissões, embora nove estados, incluindo Califórnia e Flórida, proíbam a prática em instituições públicas. A decisão, contudo, pode ter efeitos de longo alcance, e não apenas nas faculdades e universidades de todo o país, podendo levar empregadores a repensar como consideram a questão nas contratações e potencialmente reduzir o fluxo de candidatos minoritários altamente credenciados que entram na força de trabalho.[quem torna qualquer cidadão 'altamente credenciado' é o MÉRITO.]

Metade dos americanos desaprova que faculdades e universidades levem em consideração raça e etnia nas decisões de admissão, de acordo com um relatório recente do Pew Research Center, enquanto um terço aprova a prática. Mas um olhar mais atento sobre pesquisas recentes mostra que as atitudes sobre ação afirmativa diferem dependendo a quem e como se pergunta sobre o assunto.

A pesquisa mostra uma divisão clara ao longo das linhas raciais e étnicas: a maioria dos adultos brancos e asiáticos desaprova a consideração racial nas admissões, enquanto os negros americanos aprovam amplamente e os hispânicos estão divididos igualmente. [óbvio que a tendência dos favorecidos é apoiar o que lhes favorece - ainda que injusto e ilegal; apesar de haver divisão entre eles.]  

-(Com New York Times, AFP e Bloomberg.)

Mundo - O Globo


segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Hidroxicloroquina provavelmente ajudou na pandemia, conclui reanálise dos melhores dados - Eli Vieira

Gazeta do Povo -  Ideias

Uma nova análise dos dados dos melhores estudos publicados sobre o efeito da hidroxicloroquina (HCQ) na pandemia concluiu que essa droga ajudou a reduzir a Covid-19 sintomática em 5% a 45% dos casos, em comparação a pessoas que não tomaram HCQ, se ela fosse tomada antes da exposição dos pacientes à doença. O resultado central dessa profilaxia pré-exposição, que consiste em tomar HCQ por precaução antes do contágio, é uma redução de 28% no risco de Covid-19.

(...)

Harvard e Espanha

O primeiro autor da análise é Xabier García-Albéniz, afiliado a uma organização não-governamental de saúde em Barcelona, Espanha, e à Universidade de Harvard. 
Ele é acompanhado por quatro coautores afiliados a Harvard, ao Ministério da Saúde da Espanha e à Universidade de Málaga. 
A análise é uma revisão metanalítica, ou seja, um estudo sobre estudos que busca agregar dados e conciliar as diferentes conclusões dos estudos individuais. Foi publicada na revista European Journal of Epidemiology, a oitava mais influente publicação científica na área da epidemiologia (entre 111) segundo o site Scimago, especializado em rankings de revistas científicas.
 
Internados com Covid em Hospital de Campanha Pedro Dell’Antonia, em Santo André, 16 de abril de 2021. Análise de estudos mostra que a hidroxicloroquina poderia ter ajudado de maneira profilática.| Foto: EFE / Sebastiao Moreira
 
O foco dos autores da revisão foi nos estudos que utilizaram a HCQ como um profilático antes e depois da exposição ao vírus, como algo que evitasse a apresentação ou o agravamento dos sintomas, não como um tratamento. 
Estudos que utilizassem a HCQ como tratamento para um quadro estabelecido de Covid-19 foram excluídos da análise. 
Também foram excluídos estudos que não usaram a técnica da randomização, que é a distribuição por sorteio dos pacientes em dois grupos, um que tomou HCQ e outro que não tomou, para comparação — uma estratégia para reduzir possível tendenciosidade nos resultados.
 
O ex-presidente, ex-presidiário e ex-condenado [não inocentado]    Lula tem todos os motivos para não gostar da Lei da Ficha Limpa, que ele próprio sancionou em 2010.

TSE nega pedido para tirar do ar postagens de Bolsonaro que relacionam o PT ao PCC

De 72 estudos, 11 restaram para a reanálise após a seleção: sete deles tratavam da profilaxia pré-exposição e quatro da pós-exposição.


A Falácia da Linha Nítida

Xabier e colegas discutem os resultados em linguagem negativa: não se pode descartar a ideia de que a hidroxicloroquina foi benéfica como um tratamento preventivo para Covid-19, como muitos fizeram — frequentemente com motivações políticas. 
Eles lamentam uma interpretação errônea dos resultados dos estudos que atrapalhou os estudos clínicos que estavam em andamento no começo da pandemia e impediu que fossem geradas estimativas precisas a respeito do manejo da pandemia antes do advento das vacinas.

Internados com Covid em Hospital de Campanha Pedro Dell’Antonia, em Santo André, 16 de abril de 2021. Análise de estudos mostra que a hidroxicloroquina poderia ter ajudado de maneira profilática.| Foto: EFE / Sebastiao Moreira

Essa interpretação errônea é conhecida como a “falácia da linha nítida”. Na pesquisa científica, especialmente nas áreas biológicas e médicas, convencionou-se usar uma ferramenta estatística conhecida como valor p. Simplificadamente, o valor p é a probabilidade de os resultados a favor de eficácia de um medicamento terem sido obtidos por pura sorte, em vez de por causa de um efeito real. Por uma convenção, aceita-se no máximo um valor p de 5% — em menos de cinco a cada cem vezes aqueles resultados serão observados ao acaso, então é suficientemente improvável que eles sejam por sorte e suficientemente provável que representem algo como uma diferença no risco de desenvolver Covid entre quem tomou HCQ e quem não tomou.

(...)


Em suma, o erro de muitos jornalistas e divulgadores de ciência ao comentar os estudos da hidroxicloroquina em que o valor p foi maior que 5% é uma violação de um famoso adágio popularizado pelo astrônomo Carl Sagan: “Ausência de evidência não é evidência de ausência”. Se o valor p algumas vezes passou de um limiar arbitrário máximo, isso não significa que está provada uma ineficácia da droga, mas no máximo que não houve, na amostra e sob as condições específicas de alguns estudos, evidências suficientes a favor de sua eficácia. Pelo contrário, uma observação repetida de valores p baixos, mas acima do limiar, poderia ser contada como evidência a favor de algum efeito que os métodos não foram adequados para capturar.

Os cientistas da revisão lamentam os resultados dessa confusão: “o recrutamento [de participantes] para a maioria dos estudos de profilaxia com HCQ foi impedido de forma severa pelas interpretações incorretas das evidências” dos primeiros estudos. Os achados desses estudos foram retratados “amplamente (e incorretamente) como evidências definitivas da falta de eficácia da HCQ, simplesmente porque não eram ‘estatisticamente significativos’ quando tomados individualmente”, comentam, o que levou muitos a “concluírem prematuramente que a HCQ não tinha efeito profilático, quando a conclusão correta era que a estimativa do efeito era imprecisa demais”. Em suma, “a opinião pública interfere com a geração das próprias evidências”, alertam os autores aconselhando futuros estudos.

Revisando a revisão
A propósito da revisão a reportagem consultou o dr. Daniel Victor Tausk, que vem se manifestando publicamente de forma similar à vista nesta revisão há dois anos. Ele é professor associado do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo.

(...)

Ele refez para a Gazeta do Povo parte da análise da nova revisão de Xabier García-Albéniz e colaboradores. Os autores usaram duas abordagens estatísticas, uma mais “clássica” e outra mais “pessimista”. Tausk removeu um estudo usado na revisão pois suspeita que os resultados podem ter sido atrapalhados pela forma como o estudo separou os participantes: por andares de um prédio. 
Há espaços fechados como corredores em que pessoas em um mesmo andar podem pegar Covid. 
Na abordagem clássica, o valor p da profilaxia pré-exposição da hidroxicloroquina dá 2%, ou seja, “significativo”. Na abordagem mais pessimista, o valor p é de 6,5%, acima do limiar convencional de 5%, mas não muito. O matemático calcula que a redução do risco de piora clínica com o uso da droga é de cerca de 20%, um pouco menor que a estimativa da revisão.

 Eli Vieira, colunista - Gazeta do Povo - Ideias


quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Esportes femininos dominados por homens biológicos - Rodrigo Constantino

VOZES - Gazeta do Povo

Depois que a integrante da equipe de natação feminina da Universidade da Pensilvânia, Lia Thomas, anteriormente conhecida como Will Thomas, venceu mais duas disputas contra nadadoras no sábado, uma colega de equipe que preferiu permanecer anônima se manifestou, dizendo: “As mulheres agora são cidadãs de terceira classe”. Lia Thomas venceu as disputas de estilo livre de 100 e 200 jardas contra a Universidade de Harvard.


A colega de equipe anônima disse ao The Washington Examiner: Lia não estava nem perto de ser competitiva como homem nas 50 e 100 jardas. Mas só porque Lia é biologicamente um homem, [Lia] é naturalmente melhor do que muitas mulheres nas 50 e 100 jardas ou qualquer coisa que [Lia] não fosse boa como homem.”

A companheira de equipe continuou: “As principais pessoas da NCAA, que estão no conselho de administração… não estão protegendo os direitos das mulheres. Imagine se houvesse esse tipo de desigualdade nos esportes masculinos. Ou alguém descobriu sobre doping em um esporte masculino. Seria consertado em um piscar de olhos. Todo mundo estaria em cima disso. Mas porque são mulheres, elas não se importam.”

“As pessoas vieram até mim e disseram que isso é tão errado”, disse ela. “Eu sou tipicamente liberal, mas isso já passou dessa questão. Isto é tão errado. Isso não faz nenhum sentido. Estou tentando fazer tudo o que posso sem prejudicar meu futuro para impedir que isso aconteça. Eu não posso simplesmente sentar e deixar algo assim acontecer. Não vou apenas sentar e dizer: 'Meus direitos estão sendo retirados, uma pena'. É embaraçoso que as pessoas não estejam se manifestando mais."

"Não consigo ver como alguém se sente bem sobre isso", desabafou. O The Examiner apontou os dados: Para a equipe de natação feminina da Universidade da Pensilvânia de 2021-2022, o melhor tempo para as 50 jardas livres é de 22,78 segundos, realizado por Thomas. Comparativamente, o melhor tempo masculino no mesmo evento durante esta temporada é de 20,32 segundos. O tempo recorde de Thomas para as mulheres teria sido o 17º melhor tempo para os homens este ano. Além disso, o desempenho de Thomas foi o terceiro tempo mais rápido para a equipe feminina da universidade nas últimas 13 temporadas.

Numa coluna de opinião na Fox News, escrita pela nadadora Sandra Bucha, o título já deixa claro o tamanho do problema: "Homens devolvendo as mulheres à margem dos esportes". No subtítulo, ela diz: "Quase todas as organizações em posição de proteger as mulheres atletas estão deixando a bola cair". Ela conta um pouco da luta que travou no passado dentro do esporte: "Em 1972, a American Civil Liberties Union me representou em um processo contra a Illinois High School Association, argumentando que, se não houvesse time feminino em uma escola, uma menina deveria poder competir por uma vaga no time masculino. Na decisão do juiz distrital contra nós, ele concordou que deveriam existir equipes separadas para meninas, mas também descobriu que permitir meninas em equipes masculinas não seria justo devido às gritantes diferenças biológicas entre os sexos".

O esporte feminino floresceu com a divisão, mas hoje a ex-nadadora lamenta a situação das meninas: "Mas agora, quase meio século depois, uma nova geração de mulheres e meninas está enfrentando os mesmos desafios que eu, só que com uma reviravolta: elas estão perdendo suas melhores oportunidades atléticas para homens que se identificam como mulheres". Ela continua: "Alguns atletas do sexo masculino estão pressionando muito pelo que consideram sua melhor oportunidade para o sucesso atlético, mesmo que isso signifique eliminar as condições equitativas para as mulheres, mesmo que isso signifique que anos de tempo, esforço e sacrifícios de atletas do sexo feminino não valem nada".

É a volta dos anos 60, e as mulheres ficam do lado de fora torcendo para homens, ou fingindo que estão torcendo. "Se os ideólogos 'woke' não estão do lado das mulheres, a ciência está. Os grupos que fiscalizam o atletismo feminino estão tendo que ignorar muita realidade física para justificar essas competições desequilibradas. Como o juiz do meu caso observou, os homens têm maior capacidade pulmonar, massa muscular, estrutura óssea e até mesmo comprimento do braço do que as mulheres. Nenhuma quantidade de supressão de testosterona pode mudar esses fatos", conclui.

A ideologia de gênero declarou guerra à ciência, matou a biologia, parte da premissa absurda de que homens e mulheres não são diferentes, ou sequer existem do ponto de vista objetivo. O resultado disso para o esporte feminino tem sido catastrófico. Homens biológicos que se identificam como mulheres têm ocupado os espaços e colocado as mulheres de verdade para escanteio
Cada vez mais mulheres - e homens decentes - se revoltam contra tamanha injustiça, mas muitos ainda sentem medo de confrontar a patrulha 'woke'. Se continuar essa tendência, porém, será o fim dos esportes femininos.
 
 

Rodrigo Constantino, colunista - Gazeta do Povo - VOZES


quarta-feira, 5 de maio de 2021

Cientistas identificam proteínas ligadas aos casos graves de covid-19

Cientistas dos EUA identificam mais de 250 moléculas associadas à piora da infecção pelo Sars-CoV-2. Algumas têm concentrações distintas no corpo em caso de morte do paciente ou de cura da doença. Descoberta pode ajudar a melhorar as opções terapêuticas

Idade e comorbidades são fatores de risco conhecidos da covid grave. Porém, o que intriga médicos é por que pessoas com as mesmas condições de saúde têm desfechos tão diferentes. Ao buscar essa resposta, pesquisadores do Hospital Geral de Massachusetts (HGM), nos EUA, descobriram um grupo de 250 proteínas circulando no organismo de pacientes com a forma severa da doença. Em um estudo publicado na revista Cell Reports Medicine, a equipe, liderada pela especialista em doenças infecciosas Marcia Goldberg, defende que esses marcadores podem ser alvo de terapias que evitem os danos a órgãos vitais que levam à morte por Sars-CoV-2.

“Nosso interesse era saber se poderíamos identificar os mecanismos que podem estar contribuindo para a morte em covid-19”, diz Goldberg, autora sênior do estudo. Para tanto, a equipe do HGM usou a abordagem da proteômica, a análise de toda a composição da proteína de uma célula, um tecido ou um organismo. Os pesquisadores aplicaram a técnica em amostras de sangue de pacientes que deram entrada no pronto-socorro do hospital com sintomas respiratórios compatíveis com os da covid-19. No total, foram 306 coletas de pacientes com teste positivo para a doença e de 78 com sintomas semelhantes, mas resultado negativo para a infecção pelo novo coronavírus.

Em seguida, Arnav Mehta, pesquisador de pós-doutorado no Broad Institute da Universidade de Harvard, fez a interpretação dos dados produzidos pela análise proteômica. O estudo demonstrou que a maioria dos pacientes com covid-19 tem uma assinatura consistente de proteína, independentemente da gravidade da doença — como seria de se esperar, seus organismos deflagram uma resposta imunológica ao produzir proteínas que atacam o vírus. “Mas também encontramos um pequeno subconjunto de pacientes com a doença que não demonstraram a resposta proinflamatória típica de outras pessoas com covid-19”, diz Goldberg. Esses pacientes, porém, tinham a mesma probabilidade de sofrer a condição grave da doença. Ele observa que as pessoas nesse subconjunto tendiam a ser mais velhas e com doenças crônicas, indícios de que, provavelmente, tinham o sistema imunológico enfraquecido.

Trajetória
A próxima etapa foi comparar as assinaturas de proteínas de pacientes com doença grave (definida como aqueles que necessitaram de intubação ou que morreram dentro de 28 dias de admissão hospitalar) com casos menos graves. A comparação permitiu aos pesquisadores identificar mais de 250 proteínas associadas à severidade da doença, com amostras coletadas dos pacientes em três momentos (quando foram internados, três e sete dias depois). “Isso nos permitiu olhar a trajetória da doença”, afirma Mehta, em nota. Entre outras descobertas, a análise mostrou que a proteína associada à gravidade mais prevalente, uma proteína proinflamatória chamada interleucina-6, ou IL-6, aumentou de forma constante em pacientes que morreram, enquanto aumentou e, depois, diminuiu naqueles com doença grave que sobreviveram.

As primeiras tentativas de cientistas para tratar pacientes com covid-19 que desenvolveram dificuldade respiratória aguda com medicamentos que bloqueiam a IL-6 foram decepcionantes, lembra Goldberg. Porém, estudos mais recentes se mostraram promissores na combinação desses medicamentos com o esteroide dexametasona.

Os pesquisadores observam que muitas das outras proteínas associadas à gravidade que a análise identificou são, provavelmente, importantes para entender por que apenas uma parte de pacientes de covid-19 evolui para casos graves. Aprender como a doença afeta os pulmões, o coração e outros órgãos é essencial, afirmam, e a análise proteômica do sangue é um método relativamente fácil para obter essa informação. Goldberg acredita que as assinaturas proteômicas identificadas no estudo conseguirão explicar os diferentes prognósticos dos pacientes. “Elas serão úteis para descobrirmos alguns dos mecanismos subjacentes que levam à doença grave e morte na covid-19”, diz.

Melhor compreensão

Precisamos entender as diferenças entre as pessoas que morrem de covid-19 e as que têm apenas um caso leve da doença. Temos de saber como as proteínas do vírus estão interagindo com as células humanas e o que podemos fazer a respeito. Não faltam terapêuticas possíveis, o que precisamos é obter uma melhor compreensão de como os genes do vírus se comportam e como essa atuação afeta as células humanas.”

Jack Chen, pesquisador de bioinformática da Universidade do Alabama, que está desenvolvendo um banco de dados genéticos do Sars-CoV-2 e da interação do coronavírus com amostras de sangue de pacientes graves

Ciencia-e-saude - Correio Braziliense

 

sábado, 27 de junho de 2020

O professor que queria ser doutor e virou ministro de Bolsonaro - VEJA - Blog do Noblat

Ricardo Noblat

O currículo encolheu

O ex-oficial da Marinha e professor de finanças Carlos Alberto Decotelli foi escolhido para ministro da Educação porque, entre os candidatos ao cargo, ele era o que tinha o currículo mais longo, segundo o presidente Jair Bolsonaro. Não deve ter sido só por isso. Pesou o apoio dos militares a Decotelli. E também a sua cor. Será o primeiro ministro preto do governo. De todo modo, o currículo do ministro ficou mais curto menos de 24 horas depois do anúncio.

Constava na plataforma CNPq Lattes que Decotelli era doutor pela Faculdade de Ciências Econômicas e Estatística da respeitável Universidade Nacional de Rosário, na Argentina. Fraude! Ele concluiu o curso, mas não foi aprovado. Descoberto, o ministro admitiu que concluíra o curso, mas que não defendera tese, exigência essencial para que pudesse se apresentar como doutor. Fraude! Em entrevista ao Jornal Nacional, o reitor confirmou que ele defendeu tese, mas que ela obteve notas baixas.

Estava escrito no currículo de Decotelli que o orientador de sua tese fora o professor Antônio Freitas Júnior, da Fundação Getúlio Vargas, e presidente do Conselho Nacional de Educação. Fraude! Freitas nunca pertenceu aos quadros da universidade.Por lá, não há registro da passagem de Freitas Junior, nem como professor permanente ou visitante, nem como membro de banca examinadora. Provocado a se pronunciar a respeito do assunto, o professor preferiu manter-se calado.

Não está sendo um bom começo para Decotelli como ministro da Educação. Ele não é a primeira figura pública a falsificar parte do seu currículo. A ex-presidente Dilma Rousseff se dizia pós-graduada em Economia pela Universidade de Campinas. Fraude! A joia da coroa no currículo do governador Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, era ter feito parte do seu doutorado na Universidade de Harvard, uma das mais importantes dos Estados Unidos. Fraude! Que Witzel preferiu chamar simplesmente de erro.

A sorte de Decotelli é que ele substituirá as duas maiores nulidades que já ostentaram na história deste país o título de Ministro da Educação – Ricardo Vélez e Abraham Weintraub, que fugiu para os Estados Unidos com medo de ser preso. Difícil que Decotelli possa ser pior do que os dois. O risco que corre é de ser melhor do que supõe Bolsonaro e se tornar popular a ponto de incomodá-lo. Foi por isso, mas não só, que o médico Luiz Henrique Mandetta acabou demitido do Ministério da Saúde.

Blog do Noblat - Ricardo Noblat, jornalista - VEJA

sábado, 20 de junho de 2020

Sexo na pandemia? Universidade de Harvard recomenda máscara e outros cuidados

Thays Martins


UTILIDADE PÚBLICA

Pelo menos um terço da população está ou passou pelo isolamento social devido ao novo coronavírus. O que deixou muita gente insatisfeita com o sexo na pandemia. Seja pela quarentena, seja pelo receio de pegar a covid-19 durante a relação.
Pensando nisso, professores da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, elaboraram um guia com recomendações para uma vida sexual saudável durante a pandemia.
Publicadas na revista especializada Annals of Internal Medicine, as recomendações apontam os riscos e os cuidados recomendados para cada prática. Veja a seguir:

Recomendações para sexo na pandemia de coronavírus:
  • Se possível, transar apenas com uma pessoa que está isolamento na mesma casa. Porém, isso não elimina o risco de contaminação, pois um dos parceiros pode ter sido contaminado pelo coronavírus durante algum período que ficou fora. É bom lembrar que há pessoas assintomáticas (doentes, mas sem sintomas)
  • Reduzir ao máximo o número de parceiros. Quanto menor o número, menor o risco de contágio
  • Usar máscara, pois pode haver projeção de gotículas de saliva
  • Evitar beijos
  • Evitar sexo com pessoas que estão com sintomas de covid-19, como tosse e febre
  • Evitar práticas que aumentem a chance de uma transmissão oral-fecal (sexo oral no ânus)
  • Evitar contato com sêmen (use camisinha!) e urina
  • Tomar banho antes e depois da relação sexual
  • Escolher um local limpo e higienizado para a relação

Abstinência sexual: não fazer sexo, evidentemente, é o comportamento de menor risco, mas os especialistas reconhecem que a sugestão não e factível para muitas pessoas, logo, há as opções a seguir.

Masturbação: apresenta também um baixo risco de infecção. A pessoa deve lavar as mãos antes da prática e, se for usar brinquedos, assegurar que eles estão higienizados.

Sexo por plataformas digitais: apresenta o mesmo nível de risco da masturbação, mas há outros perigos, como o da exposição. 
Transmissões ao vivo podem ser gravadas e compartilhadas indevidamente. O mesmo pode acontecer com fotos. Por isso, esse tipo de prática deve ser avaliado com muito cuidado.

Correio Braziliense

sábado, 18 de abril de 2020

A nova ordem mundial - IstoÉ

A pandemia de coronavírus marca uma guinada definitiva na história da civilização. 

Ela pode ser o acontecimento inaugural de um ciclo catastrófico ou o ponto de inflexão para uma mudança profunda. Rendidos pelas forças da natureza, como diante de um dilúvio ou de um terremoto, nunca fomos tão frágeis. Tememos a morte, não sabemos para onde vamos e as previsões de longo prazo que tentávamos traçar ruíram, tanto na vida pessoal, como nos planos estratégicos de governos e empresas.

Alguns estudiosos chegam a dizer que se trata do colapso do capitalismo industrial. Outros falam que o modelo de Estado-Nacional, construído no final do século 18, está sofrendo um golpe fatal. Seja como for, o que se verifica, neste momento, é o fortalecimento do Estado como força protetora dos cidadãos. E em meio ao caos ­— confinados no aconchego do lar — temos a oportunidade de aproveitar o tempo para colocar em prática a máxima do filósofo grego Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”, estampada, há 2,5 mil anos, no oráculo de Delfos, um dos epicentros espirituais da Antiguidade.

A tendência mais imediata, necessária e óbvia relacionada à pandemia de Covid-19 é a redução da mobilidade. De uma hora para outra, o direito de ir e vir tornou-se relativo. A determinação da autoridade de saúde passou a prevalecer sobre qualquer vontade pessoal. O transporte público ficou ameaçador, um lugar de contágio. Há restrições para caminhar pelas ruas. As barreiras sanitárias entre cidades, estados e países aumentaram e continuarão elevadas por meses ou anos. Será difícil cruzar qualquer fronteira no mundo sem um teste negativo de coronavírus.

A tendência mais imediata, necessária e óbvia relacionada à pandemia de Covid-19 é a redução da mobilidade. De uma hora para outro o direito de ir e vir tornou-se relativo

Isolamento até 2022
Ficará dessa crise uma inibição da livre circulação de pessoas, seja no meio urbano, dentro dos países ou entre as Nações. Um estudo da Universidade de Harvard, publicado na revista Science, mostra que o isolamento, ainda que intermitente, deve se perpetuar até 2022 em várias partes do mundo, se não surgir uma vacina. “O vírus nos colocou em casa e nos obrigou a se virtualizar. E quando esse ciclo acabar, a gente vai ter muita vontade de abraçar, beijar e fazer carinho”, diz a filósofa Viviane Mosé. “Mas o importante agora é a boa convivência. Vamos falar em nome do amor, ele que deve reinar”.

(.....)

Valorização da ciência
[será que a ciência vai solucionar os problemas humanos?
o teste de fogo está sendo controlar, extingui, a PANDEMIA em curso. E a ciência não está se saindo bem. 
Infelizmente, tudo indica que o vírus vai se extinguir por si.]

De um modo geral, haverá uma maior valorização da ciência para a solução dos problemas humanos e um abandono crescente de ideias obscurantistas e negacionistas que tentam se impor nesse momento trevoso. “Quem vai tirar a gente dessa crise é a ciência”, diz a especialista em educação Tatiana Filgueiras, vice-presidente do Instituto Ayrton Senna. “Mas para formarmos os cientistas do futuro precisaremos de educação”. Ainda que no Brasil, um país confuso que enfrenta a dupla tragédia da pandemia e do comando delirante do presidente Jair Bolsonaro, isso não esteja tão claro no resto do mundo é o pensamento científico que vai dar as cartas. Espera-se, por exemplo, que bolsas de estudos para pesquisadores nunca mais sejam cortadas de maneira arbitrária. A politização da doença é um desvio de caráter.

Em IstoÉ, MATÉRIA COMPLETA




sexta-feira, 8 de novembro de 2019

A guerra continua - O Estado de S.Paulo

Eliane Cantanhêde

Não terá quebra-quebra, mas Dodge vê 'triplo retrocesso' em decisão do Supremo

O Supremo finalmente cumpriu a ameaça de derrubar a prisão após condenação em segunda instânciainstrumento importantíssimo contra os crimes, em especial de colarinho branco –, mas é bom que se saiba que a guerra continua. Agora num outro foro também improvável, mas igualmente legítimo: o Congresso Nacional.

“Sim, a guerra continua”, concordou ontem a ex-procuradora geral da República, Raquel Dodge, descartando o frágil argumento de que o “trâmite em julgado”, que se contrapõe à prisão em segunda instância, é cláusula pétrea da Constituição. Não é. Logo, pode ser mudada por Proposta de Emenda Constitucional (PEC).Se fosse cláusula pétrea, argumenta ela, o Supremo jamais poderia ter admitido a prisão após a condenação em segunda instância, como até ontem, e, aliás, teria votado por unanimidade contra sua aplicação.

Como PGR (aliás, a primeira mulher a ocupar o cargo), Dodge assinou longo parecer contra nova mudança de entendimento. E, muito antes, quando a prisão em segunda instância voltou, era procuradora junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e atuou para o cumprimento antecipado da pena passasse a valer rapidamente. Dodge, que tem no currículo também três anos na prestigiada universidade de Harvard, elogia a firme decisão da ministra Carmen Lúcia que, em seus dois anos de presidência do STF, se negou peremptoriamente a colocar em pauta, mais uma vez, uma questão já decidida pelo plenário em três oportunidades muito recentes. Não há fatos novos nem mudança na composição do plenário”, diz a procuradora, repetindo quase que literalmente os argumentos de Carmen Lúcia, que enfrentou ameaças, agressões, insinuações e ironias, inclusive de colegas e em sessões transmitidas ao vivo pela TV Justiça, mas não arredou pé da sua convicção. Seu sucessor na presidência, Dias Toffoli, esperou mais de um ano para fazer o oposto e por em votação, mas já assumiu determinado a fazê-lo. Tardou, mas não falhou. [no compromisso assumido de colocar em votação - já seu voto foi uma falha gigantesca, somada a da aprovação da PEC da Bengala.]

Como vem dizendo Dodge, o fim da prisão após segunda instância é um triplo retrocesso: falta de estabilidade, com idas e vindas; perda de eficiência do sistema, com a volta de processos penais infindáveis, recursos protelatórios e prescrições; risco de perda de credibilidade junto à sociedade, pela eterna sensação de impunidade, principalmente de réus ricos e poderosos.[perder o que não se tem, é impossível.]

Assim como os especialistas militares defendem pesados investimentos em Defesa e Forças Armadas para garantir o “papel dissuasório” dos países, mesmo os mais pacíficos, como o Brasil, Raquel Dodge lembra da importância da “força inibitória” da Justiça. Uma justiça efetiva, ágil e realmente justa ( pleonasmo necessário) é fundamental para inibir ímpetos criminosos e, portanto, os próprios crimes. A estabilidade e a credibilidade são fatores inalienáveis nessa direção.

Quanto à questão política, sobre a qual Dodge não fala, há que se destacar que se pode apoiar ou discordar da decisão do Supremo, mas esqueçam a possibilidade de rebeliões, manifestações imensas, tumultos. 
 
 
Eliane Cantanhêde - O Estado de S. Paulo
 
 

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Retrato do meu assassino



Biografia de Stalin em grande parte inédita era escrita por Trotsky quando foi assassinado a mando do biografado

Stalin se divertia em sua casa de campo degolando ovelhas ou jogando querosene nos formigueiros e ateando fogo. 

Kamenev me disse que, em suas visitas de lazer aos sábados a Zubalovka, Stalin caminhava pelo bosque e continuamente se divertia atirando nos animais selvagens e assustando a população local. Tais histórias sobre ele, procedentes de observadores independentes, são numerosas. E, no entanto, não faltam pessoas com esse tipo de tendências sádicas no mundo. Foram necessárias condições históricas especiais antes de que esses instintos obscuros encontrassem uma expressão tão monstruosa”.

Essas palavras fazem parte de uma biografia singular. Pela relevância de seus protagonistas, duas das figuras proeminentes da Revolução Russa, divididas por uma das rivalidades mais marcantes do século XX. E porque o perfil ficou incompleto depois que o retratado ordenou a morte de seu biógrafo. Stalin, a obra que Leon Trotsky escrevia quando foi assassinado por Ramón Mercader, no México, em agosto de 1940, permaneceu adormecida durante mais de sete décadas. E depois de muitas peripécias, mutilações e acréscimos, volta a ver a luz em um volume de quase mil páginas, em grande parte inédito, coincidindo com o centenário da chegada dos bolcheviques ao poder.

A história desse livro merecia a publicação de outro que a contasse. Trotsky, exilado no México após ter o asilo rejeitado em vários países, sabia que estava condenado pelo líder da União Soviética, Josef Stalin. Mas não tinha interesse particular em escrever sobre a vida de seu antigo camarada. “Não foi uma vingança. Escrever essa biografia não estava nos planos do meu avô. Estava concentrado em acabar outra, sobre Lenin”, afirma Esteban Volkov, neto do revolucionário, em conversa por telefone da Cidade do México, onde mora. “Mas precisava de dinheiro e a editora Harper & Brothers, de Nova York, fez uma oferta generosa”.

Volkov, prestes a completar 92 anos, tem sido durante décadas o guardião da memória de seu avô. Também é o diretor da Casa Museu Leon Trotsky, entre cujos muros o revolucionário foi assassinado em agosto de 1940 por um golpe de uma picareta de alpinismo do agente stalinista Ramón Mercader. O mesmo cenário onde será apresentada a versão em espanhol do livro, publicada pela editora mexicana Fontamara, no dia 11, coincidindo com o aniversário de uma Revolução de Outubro que, por diferenças entre os calendários gregoriano e juliano, ocorreu em novembro para o resto do mundo. A obra foi publicada há um ano em inglês por uma editora marxista de Londres e depois foi traduzido ao italiano e ao português, mas a notícia não teve repercussão na grande mídia.


Sangue sobre papel

JORGE F. HERNÁNDEZ
A biografia mais transcendental de Joseph Vissarionovich, tristemente ainda celebrado por alguns por seu apelido: Stalin, é um retrato minucioso do diabólico ditador russo em 890 páginas, escrito nada menos que por Leon Davidovich Bronstein, que conhecemos como Trotsky. Parece incrível que ao ser publicado em inglês há um ano não tenha sido manchete ou repercutido nas redes nem nas mais diversas resenhas. Vivemos em amnésias funcionais que creem saciar-se com 140 caracteres onde ao menos duas gerações só sabem algo de Leon Trotsky pelos filmes, postais, canecas e demais produtos que circulam desde que Frida Kahlo se transformou em marca registrada.

A imensa biografia assinada por um dos principais líderes da Revolução Russa esmiúça detalhadamente a demência incrível de um sanguinário traidor dessa mesma Revolução: um animal que pareceria indescritível se não existissem milhares de documentos, fotografias (inclusive as alteradas “pelo bem da História”), depoimentos, sobreviventes dos expurgos, náufragos do Gulag, proscritos redimidos e seguidores arrependidos que inclusive desde a primeira vitória bolchevique deixaram registros de sua trilha de desgraças e compêndio constante de crimes. Entre os parágrafos que Trotsky escrevia durante seu exílio incansável em sua frágil fortaleza de Coyoacán estavam sobre a mesa os papéis que seriam sua lápide, cuja redação se interrompeu quando Ramón Mercader cravou uma picareta de alpinismo em seu crânio
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Trotsky lutou com o enviado, sabendo que seu mandante se encontrava sorridente no Kremlin, e talvez durante sua agonia pensou que ao menos grande parte da escrupulosa biografia de seu executor e de quase toda a sua família, de milhões de seres humanos e de não poucas ilusões utópicas estava praticamente terminada. Tinha aceitado escrevê-la pelo atraente pagamento prometido por uma editora norte-americana, cujo tradutor a traduziu e editou mal, além de fazer emendas e acrescentar parágrafos da sua própria cabeça. Isso foi corrigido, e agora contamos com a publicação de um retrato do Diabo feito em prosa sobre papéis manchados de sangue.



A Harper & Brothers publicou uma versão incompleta do livro em inglês em 1946. Antes não era possível, porque os EUA e a União Soviética eram aliados contra a Alemanha. Mas a viúva de Trotsky, Natalia Sedova, pleiteou nos tribunais, sem êxito, para que fosse retirada. Suas objeções se dirigiam, principalmente, contra o editor e tradutor da obra. “Fez uma edição deficiente do livro, com mutilações e vários acréscimos da sua cabeça muito distantes do pensamento político do meu avô”, afirma Volkov. O próprio Trotsky nunca teve muita confiança em seu tradutor, e havia se indignado quando soube que ele tinha entregue alguns originais a terceiros. “Parece ter ao menos três qualidades: não sabe russo, não sabe inglês e é tremendamente pretensioso”, escreveu em uma carta ao jornalista norte-americano Joseph Hansen.

Mas uma parte da obra nunca chegou às mãos da editora. Quando soube estar condenado, Trotsky enviou à Universidade de Harvard, nos EUA, muitos de seus documentos para serem guardados. “Os arquivos saem esta manhã de trem”, escreveu o revolucionário em 17 de julho de 1940, um mês e três dias antes de seu assassinato. E lá se acumularam 20.000 documentos que ocupavam 172 caixas de artigos, fotografias, e papeis manuscritos, datilografados, traduzidos e sem traduzir, com grande quantidade de correções que demonstravam como seu trabalho era extraordinariamente meticuloso.

Capítulos inteiros do livro sobre Stalin permaneceram assim adormecidos até que em 2003 o historiador galês Alan Woods começou a pesquisar a montanha de documentos para resgatar a versão mais ampla e íntegra possível do livro. E depois de mais de 10 anos de trabalho o resultado foi uma obra um terço mais longa do que o livro publicado nos anos 1940, sem os acréscimos do primeiro tradutor e, agora sim, com a bênção da família de Trotsky.

Woods concorda com Volkov que Trotsky não queria escrever esse livro. “Mas uma vez que se dedicou a isso, o fez conscienciosamente, com muita documentação e detalhes, inclusive do período mais desconhecido da vida de Stalin, sua infância. Para qualquer leitor é um estudo psicológico fascinante”, diz de Londres, onde mora. O historiador é um membro ativo da Corrente Marxista Internacional. Participou da luta contra o Franquismo na Espanha e foi um firme defensor da revolução bolivariana e amigo pessoal de Hugo Chávez, ainda que nos últimos tempos tenha se distanciado da deriva do Governo venezuelano.

Os dirigentes do Partido Bolchevique eram, em geral, gente muito capacitada, e entre eles brilhava Trotsky, que dominava cinco idiomas e escrevia vários livros ao mesmo tempo. Stalin aparece, por outro lado, retratado por seu grande rival político como um homem de horizontes limitados. Esse perfil medíocre coincide com o feito por outros observadores, como o jornalista norte-americano John Reed, que em sua crônica Dez Dias que Abalaram o Mundo menciona o Homem de Aço, apelido de Stalin, apenas duas vezes, e Trotsky nada menos do que 67.

Mas, pelo que se conta no livro que agora será lançado, as qualidades de Stalin eram outras: a astúcia e a arte da manipulação. “A técnica de Stalin consistia em avançar gradualmente passo a passo até a posição de ditador, enquanto representava o papel de um defensor modesto do Comitê Central e da direção coletiva. Utilizou a fundo o período de enfermidade de Lenin para colocar indivíduos que eram devotos a ele. Aproveitou-se de cada situação, de cada circunstância política, de qualquer combinação de pessoas para promover seu próprio avanço que lhe ajudasse em sua luta pelo poder e para alcançar seu desejo de dominar os outros. Se não podia elevar-se a sua altura intelectual, podia provocar um conflito entre dois competidores mais fortes. Elevou a arte de manipular os antagonismos pessoais ou de grupo a novos níveis. Nesse campo desenvolveu um instinto quase infalível”.

No entanto, Woods não atribui a chegada ao poder de Stalin a seu caráter. “Era um menino maltratado por seu pai, rancoroso e com tendências sádicas. Mas nem todos que são maltratados se tornam monstros. Como nem todos os artistas fracassados se tornam Hitler”. E propõe um argumento marxista para explicar sua ascensão. “Em todas as revoluções há um período que se precisa de heróis, gigantes. Quando se chega a um período de declive, precisam de medíocres. A degeneração burocrática teria ocorrido com ou sem Stalin, porque a Rússia era um país isolado e atrasado. Mas nesse caso a burocracia se encarnou em um personagem sanguinário”.


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