Eram quase 22 horas. Alice entrou na rodoviária de Santa Maria e foi direto ao guichê número dois.
- Uma passagem para Porto Alegre por favor.
- São setenta e cinco reais.
Abriu a carteira e retirou uma nota de cem. Recebeu o troco e conferiu o
bilhete: “box 4, poltrona 23; horário: 22:30; modalidade: direto.”
Não levava muita bagagem. Afinal, era só para passar o final de semana com o noivo.
-Vou fazer-lhe uma surpresa, pensou em voz alta- e embarcou no ônibus.
O ronco do motor anunciava que chegara a hora da partida. Apoiou o rosto
na janela que ficava levemente embaçada a cada respiração. Alice
refazia os planos em sua mente: “devo chegar perto da uma hora, uma
hora e meia… Não vou pegar um táxi, o dinheiro está curto. Depois, é só
atravessar a passarela e pegar o ônibus do outro lado da avenida… Quero
só ver a cara dele quando me ver”. Um leve sorriso passou pela sua
face.
Nem bem terminou de colocar os planos em ordem e o sono logo a abraçou. O
sacolejar do ônibus na rodovia esburacada só era interrompido pelos
postos de pedágio estatal onde era obrigado a parar. Mas ela não
acordava. Apenas virava a cabeça de lado e seguia dormindo. O
desconforto da poltrona ao acordar era certo. Mas valia o sacrifício.
Afinal, iria encontrar seu amor. E as horas foram passando.
Já próximo a Canoas, as luzes da cidade começaram a tocar seus olhos. Lentamente começou a despertar. – Estamos chegando – pensou. Conforme atravessavam a cidade pela cento e dezesseis, seu destino se
aproximava cada vez mais. Levantou-se e começou a apanhar sua bagagem
preparando-se para o desembarque. Entraram, na freeway e, em
quinze minutos, estavam sob o viaduto da ponte do Guaíba, entrando pela
avenida Castelo Branco… Ou era avenida Da Legalidade? Pouco importa. O
importante é que estava chegando.
Subindo a elevada da via, o ônibus foi tomando a pista da esquerda para,
finalmente, entrar na estação rodoviária de Porto Alegre. Enfim, estava
na capital. Olhou no relógio, 01:00 hora. Vagarosamente, entraram no
box de destino na plataforma de desembarque. Até que o ônibus parou e o
motorista abriu a porta. - Sejam bem-vindos a Porto Alegre – disse o motorista.
Com os olhos ainda pesados, Alice tomou sua bagagem nas mãos verificou
se não estava esquecendo nada e levantou da poltrona. Caminhou pelo
corredor até atingir a porta. - Muito obrigado – disse ao motorista. E desceu.
A madrugada era agradável. Alice caminhou pela plataforma de desembarque
até atingir o hall da estação. Dirigiu-se a uma lancheria onde comprou
uma garrafa de água mineral com gás. Estava cansada. Tudo que queria era
chegar logo à casa de seu noivo, dar-lhe um beijo demorado e deitar-se a
seu lado. Nunca estivera tão perto. Pagou pela água e logo dirigiu-se para a saída da rodoviária. A sua
frente, uma grande avenida que, mesmo as 01:15 estava movimentada.
Decidiu atravessar pela passarela. Obviamente, era a opção mais segura.
Do alto da passarela, Alice contemplava a imensidão da cidade e seus
contrastes. Prédios novos, antigos, alguns quase em ruínas. Vislumbrava
os carros de luxo que passavam sob seus pés ao mesmo tempo que uma
carroça carregava lixo reciclável, dividindo a mesma via. Jovens fumavam
maconha, crack… Nas calçadas, mendigos dormiam encolhidos e debaixo do
viaduto da conceição, uma família sobrevivia a mais um dia. Finalmente
chegou ao outro lado. Saiu da passarela e caminhou em direção ao ponto
de ônibus. Agora era esperar para, logo em seguida, estar nos braços do
seu amor.
Parada, esperando, viu um casal se aproximar ao longe. Caminhavam
tranquilos, chegando cada vez mais perto… Mais perto… Mais perto.
Começaram a encará-la com cara de poucos amigos. Um arrepio percorreu sua
espinha. E não era pelo frio.- Entrega a bolsa! - disse-lhe a mulher – e não reage!
Com um golpe rápido, o homem arrancou-lhe seus pertences. Estava
acontecendo. Alice estava sofrendo um assalto na madrugada
porto-alegrense. Apenas mais uma vítima dentre tantas outras. Nervosa,
entrou em desespero. Era tudo o que trouxera. Queria apenas chegar à
casa do noivo e matar a saudade. Nada mais. Sentiu uma dor em seu
calcanhar. O homem tinha lhe aplicado uma rasteira. Mal teve tempo de se
virar e caiu ao chão. -Anda, passa tudo! - disse o homem com uma voz assustadora e fria.
Arrancou-lhe bolsa, mala, carteira, tudo. Virou as costas e foi saindo
com os frutos de seu roubo. Alice continuava prostrada no chão.
- Não chora, ou eu te mato! - falou em tom agressivo.
Conforme os criminosos se afastavam, Alice não conseguia conter seu
desespero. Lágrimas começaram a brotar de seus olhos. Um soluço… Dois…
Até que não conseguiu mais se conter. E chorou. Chorou tanto que não conseguia ouvir ou ver mais nada a seu redor. Não
conseguia entender o porquê de estar passando por aquilo. As lágrimas já
caiam pela sua face, pelo seu queixo. Cotas caíram ao chão.
Mal conseguiu se levantar e sentiu um ardor quente no abdômen. A
ardência do aço cravado em seu corpo deu lugar ao calor do sangue que
começou a brotar. - Eu avisei para não chorar! - uma figura lhe falou. Levantou os olhos e
lá estava o casal que acabava de roubar-lhe. Só pode ver o homem
limpando o sangue da faca e se afastar em passo apressado. Mesmo assim,
conseguiu levantar. Dirigiu-se na direção da passarela na esperança de
encontrar ajuda na rodoviária. Não conseguia entender. “Fiz tudo o que dizem para fazer… Não reagi, entreguei o que me pediram…
Mas como segurar minhas lágrimas? Fui esfaqueada porque chorei… Assim
como seria se eu decidisse reagir"
Conforme foi subindo na passarela, suas forças lentamente começavam a
falhar. Percebeu que não iria conseguir. Agarrou-se com todas as forças
ao fio de vida que ainda lhe restava. Precisava de ajuda, queria gritar
por ela. Mas já não tinha mais forças. Um caminho rubro foi se formando
na superfície. Até que se concentrou em um ponto e a poça de sangue
manchou o chão. Não havia polícia, não havia ambulância, não havia
ninguém além das pessoas que passavam alheias a tudo. Para elas, era
apenas mais uma vítima da violência da capital gaúcha.
Alice estava indefesa. Sempre esteve. Queria ter uma arma para pelo
menos se defender. Mas só bandidos podem ter armas. Prostrada, exausta,
com um misto de raiva e medo, finalmente, jogou-se ao chão. Sua vida
terminara. Não iria rever seu amor. Não iria rever sua família. Naquele
exato momento, Alice deixava de ser Alice para se transformar em um
número posto em uma planilha estatísticas. Faleceu ali mesmo, no meio da
travessia.
Pela manhã, jornais estampariam suas capas com sua história. Artigos
indignados clamando por segurança seriam escritos, sempre com o apelo do
"nunca reaja a um assalto". Ela não reagiu. Apenas chorou sua perda. - Eu falei que não era para ela chorar! - disse o assaltante após ser
preso. - Ela chorou, então eu a matei - continuou friamente.
E Alice passou a ser responsável por sua própria morte. Quem mandou chorar?
Fonte: Blog do Lenilton Morato
http://leniltonmorato.blogspot.com.br/
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