[como de hábito, estão sempre ocupados em nada nada fazer.]
Corria o ano 2000 e a nação se preparava para festejar os 500 anos do
Descobrimento. Nunca a esquerda foi tão indigenista! Cabral era vaiado
nas salas de aula e na mídia.
Se aparecesse alguma caravela, seria
afundada.
Aliás, fizeram uma que, de maneira muito suspeita, se recusou a
navegar. Em Porto Alegre, o relógio que fazia a contagem regressiva
serviu a culto indígena prestado por descendentes de europeus que
copiaram performances apaches aprendidas do cinema ianque. Tocaram fogo
no relógio, dançaram em torno da fogueira e foram comemorar num
restaurante.
Quando
escrevi criticando a representação teatral e o incêndio, que contou com
proteção do oficialismo petista da época, respondeu-me um padre,
reprovando minha posição. O que segue é um extrato dos argumentos que
usei na réplica e atende solicitação de leitor do Instagram que, há
alguns dias, me pediu informações sobre o tema.
Comecei a
carta ao padre alertando para a obviedade tantas vezes mencionada por
mim: o fato de o espaço físico do nosso subcontinente já estar povoado
não significa que ele não tenha sido descoberto porque, de fato só se
descobre o que já existe; o que não existe e passa a existir é criado ou
inventado. Os portugueses descobriram algo que lhes era, em todos os
seus aspectos, desconhecido.
São
raríssimos os casos em que os atuais ocupantes de quaisquer áreas do
globo estão nelas e as têm como suas desde os primórdios. Não era
diferente aqui, antes de Cabral. As tribos disputavam o litoral, por ser
mais aprazível do que o interior. Na Bahia, onde aportaram as
caravelas, os tupiniquins haviam expulso os tapuias, nome que significa
“índio do mato”.
No Peru, os
Chavins, os Nazcas, os Paracas, os Moches que ocupavam a costa do
pacífico no século XVI, foram expulsos ou submetidos pelos Incas. E os
astecas, a quantos expulsaram e sacrificaram?
Que fizeram na Europa e
norte da África, ostrogodos, visigodos, suábios, hérulos, vândalos,
entre outros?
Por ser meu
interlocutor da época um presbítero, pareceu-me oportuno lembrá-lo de
que nem Deus conseguiu que a Terra Prometida estivesse desocupada e
disponível para o povo da Aliança quando os israelitas se retiraram do
Egito. Rolou sangue, muito sangue.
Aliás, é bom
que os cristãos devotos desse tão engenhoso quanto inútil revisionismo
histórico tenham presente o que aconteceu quando Constantino decretou e
impôs o fim da religião do Império Romano.
Nunca vi qualquer religioso
“progressista” ou conservador, reclamando do que foi feito com a
civilização e a cultura romana anterior ao Cristianismo. Coitados! Num
canetaço imperial lhes tomaram a fé e os templos. Quantos deuses romanos
ficaram ao relento!
Tampouco vi alguém denunciando a ação
evangelizadora e restauradora da civilização empreendida por cristãos
junto aos bárbaros na baixa Idade Média.
Nem sobre os procedimentos de
Clóvis, rei franco, após seu batismo.
Lamentar o
fim da “civilização” pré-cabralina, como tantas vezes ouço, é fazer uso
totalmente inadequado da palavra civilização.
Pode-se falar em
“cultura”, mas tampouco esta teve um fim.
Há tribos que vivem até hoje
como viviam ao tempo do Descobrimento. Mas será isso positivo? Será bom
que essas pessoas vivam privadas dos benefícios da civilização e sirvam
de laboratório para estudos antropológicos?
Por outro
lado, tenta-se extrair dividendo político e moral de uma suposta
descoberta petista sobre os problemas dos povos originários após o
Descobrimento. Não subestimem os meus professores de escolas públicas
nos anos 50, lá em Santana do Livramento!
Aprendi deles e dos mais
elementares livros de história da época que os índios foram vítimas de
violência, tentativas de escravidão etc. Não sei de onde saiu o suposto
mérito petista de, num furo de reportagem, trazer à superfície a verdade
sobre tais fatos. Novidade é a tentativa de extrair, além do impróprio
dividendo moral, o lucro ideológico disso, jogando brasileiros contra
brasileiros, tentando simplificar a história para reduzi-la aos termos
da interpretação marxista de luta de classes.
Novidade é entrar de
martelete e picareta no relato dos acontecimentos históricos para
deslegitimar todos os títulos de propriedade do país. Que eu saiba, nem
Engels pensou nessa!
Na Ibero
América, a esquerda católica, conhecida na Itália como “cattocomunista”
parece não reconhecer o valor da conversão, do batismo e da
evangelização de um continente inteiro. Chego a crer, que muitos
religiosos veem com maus olhos a cruz plantada nas areias de Porto
Seguro, após a primeira missa, pelos nossos descobridores que ante ela
se ajoelhavam para que os nativos (na forma da carta de Caminha) “vissem
o respeito que lhe tínhamos” ...
Muitas vezes,
nas datas nacionais que cultuam o verde e amarelo da nossa bandeira,
quando a esquerda está na oposição, seus militantes costumam proclamar
do alto de sua simulada benignidade que nada há a comemorar porque as
coisas não vão bem.
A gente os conhece, mas sempre me surpreende quando
quem diz isso é um religioso católico ou cristão.
Afinal, se fossem boas
essas razões, as próprias festas cristãs deveriam ser suspensas porque
estamos tão longe do Reino de Deus e de seus critérios que deveríamos
entoar, em todas as missas, um cântico que iniciasse com “Nada a
comemorar, Senhor!”.
Eu continuo
crendo no valor do batismo e convencido de que há um bem intrínseco na
evangelização e na civilização. E quando vejo essas dezenas de milhões
de mestiços que compõem a parcela majoritária da população do norte,
nordeste e centro-oeste brasileiro, trazendo nos cabelos, nos olhos, na
estatura, as marcas de suas raízes indígenas, e os encontro nas missas e
na vida civilizada, me alegro pela obra dos jesuítas e de quantos para
cá vieram, com os recursos da época, fazendo a história como sabiam, com
a coragem que nos falta e com os conhecimentos inerentes ao período em
que viviam.
Todas essas
manifestações de repúdio aos brancos que se intrometendo aqui não
viraram índios e não trouxeram a bordo antropólogos, sociólogos,
psicólogos e filósofos me suscitam uma dúvida: onde querem chegar?
Devemos voltar para a Europa, confinarmos os brancos em reservas e
devolvermos tudo para os índios?
Nos juntarmos a eles no mato?
Des-descobrir? Desconstruir? Desevangelizar? Deseducar? Desmestiçar?
Retornarmos os brancos à Europa, os negros à África, os amarelos à Ásia?
Não conheço pensamento mais racista do que esse.
Admito que
muitos pensem diferente. Também eu preferia que essas coisas e muitas
outras tivessem ocorrido de modo diverso. Mas não vou passar a vida
remoendo fatos ocorridos em séculos passados, escrutinando-os
anacro Terra Prometida unicamente. Menos ainda criando um impasse sem solução sobre nossa
identidade nacional. Não podemos corrigir o passado, mas o futuro, sim.
Percival Puggina (78), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto,
empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores
(www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país.
Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia;
Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.
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