Gabriel de Arruda Castro
O vazamento de mais de 100 mil mensagens de WhatsApp enviadas pelo então secretário da Saúde britânico mostra como o governo manipulou a opinião pública durante a pandemia
Regent Street, Londres, durante o último bloqueio nacional de coronavírus - Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
O The Telegraph, um dos mais importantes jornais britânicos, obteve mais de 100 mil mensagens de WhatsApp trocadas durante a pandemia entre o então secretário (equivalente a ministro) da Saúde britânico, Matt Hancock, e outras autoridades do Executivo. [os segredos sujos da pandemia - saiba mais, clicando aqui .] O material mostra, com detalhes, como o governo tentou manipular a opinião pública.
Alerta sobre lockdownsNo fim de outubro de 2020, quando o governo do Reino Unido anunciou o segundo lockdown nacional, com a justificativa de parar a transmissão da covid-19, as autoridades sabiam dos efeitos negativos da medida. Um dos principais assessores do então primeiro-ministro, Boris Johnson, foi explícito: a restrição de circulação traria malefícios, e o assunto deveria ser tratado de forma aberta com a população.
“Acho que precisamos ser brutalmente honestos com as pessoas. Os lockdowns completos otimizam nossa sociedade/economia para lidar com a taxa de transmissão da covid — mas são terríveis para outros resultados (saúde não relacionada à covid, empregos, educação, coesão social, saúde mental etc.)”, escreveu Simon Case, em um grupo de WhatsApp que incluía Hancock e outras autoridades da Saúde. Mas o alerta não foi levado em conta.
Seis meses depois, a chefia do NHS (equivalente ao SUS brasileiro) detectou um crescimento na mortalidade de jovens e crianças, com “desordens mentais severas ou complexas”. O número total de crianças e adolescentes com esses distúrbios também havia aumentado. “Nós temos tido muito mais crianças e jovens no T4 do que antes da pandemia”, escreveu Nadine Dorries, uma das principais autoridades de Saúde à época. T4 é o código para os casos mais graves de transtornos mentais. A causa do problema, na visão de Nadine, era o lockdown.
O ministro temia que o noticiário sobre o Brexit tirasse a atenção da pandemia e enfraquecesse a tática do medo. Ele então indaga quando deveria “empregar a nova variante”
Em abril de 2020, quando recebeu a recomendação para que todos os pacientes oriundos de asilos passassem por testes de covid antes de ser liberados, Hancock se mostrou relutante: para ele, a medida “não acrescentaria nada” e causaria confusão quanto aos procedimentos-padrão. A testagem obrigatória para esse grupo só viria em agosto. No período de quatro meses, entre as mensagens e a mudança nas regras, 17.678 pessoas morreram de covid nos asilos.
O medo como estratégia
Outra revelação das mensagens obtidas pelo The Telegraph é que Hancock tentou usar o medo para manipular a opinião pública britânica. Em junho de 2020, Hancock afirma a um auxiliar que não era “algo ruim” que a imprensa estivesse dando ampla cobertura a uma pesquisa “sombria” da Universidade Cambridge que mostrava uma alta taxa de transmissão do vírus. Na avaliação dele, isto aumentaria a obediência às medidas impostas pelo governo.
Seis meses depois, o surgimento de uma variante da covid-19 foi recebido como uma ferramenta para causar medo na população e elevar o nível de adesão. Hancock diz: “Nós assustamos todo mundo com essa nova cepa” — a versão original é “frighten the pants off”, o que pode ser literalmente traduzido como “assustar a ponto de as calças caírem”. O interlocutor, outro burocrata da Saúde, responde: “É, é isso que vai trazer a mudança de comportamento adequada”.
O ministro temia que o noticiário sobre o Brexit tirasse a atenção da pandemia e enfraquecesse a tática do medo. Ele então indaga quando deveria “empregar a nova variante”. Ou seja: a divulgação de informações sobre a cepa foi usada de forma estratégica para assustar a população.
Seis dias depois do diálogo, o governo anunciou o terceiro lockdown, que arruinou o Natal de 2020 para milhões de britânicos. As pessoas vivendo na região de Londres e no sudeste da Inglaterra não puderam passar o 25 de dezembro fora da própria casa.
Chacota com a quarentenaEnquanto a população era afetada por medidas draconianas, que incluíam o fechamento de escolas e restrições a viagens nacionais e internacionais, as autoridades britânicas faziam chacota. Em fevereiro de 2021, em uma conversa com Hancock, Case pergunta: “Alguma ideia de quantas pessoas nós trancamos em hotéis ontem?”. O ministro responde com ironia: “149 (pessoas) escolheram entrar no país e agora estão em hotéis de quarentena graças ao seu próprio livre-arbítrio!”. Case responde: “Hilário”.
Em fevereiro de 2021, Case também debocha de passageiros submetidos a quarentenas obrigatórias: “Eu só quero ver alguns dos rostos das pessoas saindo da primeira classe e entrando em uma caixa de sapatos de luxo”.
No mês seguinte, Hancock compartilha uma reportagem dizendo que um casal foi multado em £ 10 mil, por uma pessoa não ter feito uma quarentena após ter voltado de Dubai. Desta vez, o destinatário é o próprio primeiro-ministro, Boris Johnson, que responde: “Ótimo”.
Livro censurado
As mensagens obtidas pelo The Telegraph também trazem revelações do que houve depois que Hancock deixou o cargo, em junho de 2021. Já fora do posto, ele começou a trabalhar em um livro sobre a pandemia. Quando o manuscrito estava pronto, ele o enviou ao governo britânico, que pede que obras do tipo sejam enviadas de antemão, para que nenhuma informação confidencial ou comprometedora venha a público.
O agora ex-ministro foi repreendido, depois de questionar o papel da China na origem do vírus. Por pressão do governo, o livro acabou editado em sua versão final. Um dos trechos removidos afirmava que a tese de vazamento laboratorial era a mais plausível para a origem do vírus: “Imagine que houvesse o surgimento de um novo vírus mortal em Wiltshire e nós revelássemos o fato de que o surgimento “apenas por acaso” aconteceu perto de um lugar chamado Port Down. As pessoas ririam de nós até não poder mais”, ele comparava. Port Down é sede do laboratório avançado (e secreto) do Ministério da Defesa Britânico. O trecho é uma referência ao Instituto de Virologia de Wuhan, na China, que fica a poucos quilômetros de onde os primeiros pacientes da covid-19 foram detectados.
Caso emblemáticoPara Hélio Angotti, que é doutor em medicina e foi secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde durante a gestão de Jair Bolsonaro, o caso do Reino Unido é emblemático. “Não digo em específico que o ministro da Saúde do Reino Unido tenha ambicionado prejudicar alguém, mas provavelmente acabou servindo aos interesses de quem não se importava nem um pouco com o bem do próximo. E, de fato, a mentira nunca será uma boa opção ao lidar com crises de saúde pública”, diz.
Se isso aconteceu no Reino Unido, um país de longa tradição democrática e que se orgulha do profissionalismo do seu serviço público, não é difícil imaginar como outros governos acobertaram informações sobre a pandemia.
O também médico Raphael Câmara, que foi de Atenção Primária à Saúde no Ministério da Saúde, não tem dúvidas de que, se as mensagens privadas de outros governantes durante a pandemia viessem a público, o conteúdo seria semelhante. “A pandemia foi muito politizada, e ficou automático que a esquerda era a favor dos lockdowns, e a direita era contra. Com isso, não se conseguia fazer um debate científico sério”, ele diz, antes de complementar: “Como a maior parte dos influenciadores de saúde e da imprensa são de esquerda, tomou-se isso (a defesa dos lockdowns) como verdade absoluta”, afirma.
Para Angotti, a lição dos desmandos da pandemia é a necessidade de mais vigilância sobre o que fazem os governos em nome de abstrações como “saúde pública”: “Misturar politicagem barata com saúde e ciência é uma péssima ideia, que pode terminar muitas vezes custando caro em vidas humanas”.
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