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sexta-feira, 26 de maio de 2023

A reação das instituições - Ana Paula Henkel

Revista Oeste

A semana nos deu vitórias diante de um sistema corrompido gigantesco. Mesmo que pequenas, temos que celebrar


Foto: Shutterstock

Pegue as últimas edições de Oeste. Não falo das últimas semanas, mas dos últimos meses, anos. Corra os olhos pelas notícias e artigos. A montanha-russa de emoções na qual nos obrigaram a embarcar diariamente é inacreditável. Os trilhos das más notícias impostas por um Judiciário aparelhado mais parecem, na verdade, um trem-fantasma. Imoralidades e inconstitucionalidades viraram a regra de muitos homens e mulheres que deveriam proteger o sagrado Estado de Direito, a Constituição. Nosso cotidiano é feito por eternas brigas com nosso desânimo e apatia. Não é fácil. O sentimento de derrota chega a ser avassalador. Mas, às vezes, algo para nos puxar para fora do desalento aparece e, francamente, não custa acreditarmos que não nos afogaremos em um mar de insanidade e promiscuidade jurídica.

Nesta semana, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) atendeu a uma representação do desembargador Marcelo Malucelli e afastou Eduardo Appio, novo juiz da Operação Lava Jato da 13ª Vara de Curitiba. Durante uma entrevista à GloboNews recentemente, pouco antes de ser afastado do cargo, Appio revelou que achou injusta a prisão de Lula e que usava a senha “LUL22” para acessar os sistemas da Justiça Federal como “protesto isolado contra uma prisão que considerava ilegal. O juiz ativista (o termo está se tornando um pleonasmo no Brasil) se defendeu dizendo que a senha usada era “questão individual” e garantiu “não ser petista”: “Acho que o atual presidente Lula é uma figura histórica, muito importante para o país. Erros e acertos vão ser julgados pela Justiça. O juiz fala nos autos. Eu falo no processo”. publicidade

Eu sou mineira, tenho algumas camisas do Cruzeiro, mas não sou cruzeirense. Tenho-as apenas em protesto a uma derrota para o Atlético, em 1984, em uma das maiores polêmicas da história do clássico, quando a disputa pelo título do campeonato mineiro foi levada para os tribunais que, apenas em 1990, deram a vitória ao Cruzeiro. Mas que fique bem claro — não sou cruzeirense, as camisas azuis no meu armário são apenas uma forma de protesto. 

O juiz Eduardo Appio | Foto: Divulgação/Justiça Federal do Paraná

Na Lava Jato desde fevereiro deste ano, em sua primeira sentença proferida na operação Lava Jato, o juiz ativista (perdoem-me pela redundância) absolveu de cara, logo na largada, o réu Raul Schmidt Júnior, acusado de pagar propina a ex-diretores da Petrobras. Schmidt foi preso em 2016 em Portugal, na 25ª fase da Lava Jato, e deixou a cadeia em 2018. Na decisão, Appio argumentou que o Ministério Público Federal teve acesso de “maneira ilegal” aos dados bancários de Schmidt e que os procuradores da Lava Jato não tinham uma decisão judicial autorizando a quebra de sigilo bancário da conta do réu em um banco em Mônaco.

O mais curioso é que Appio defende a soltura de Lula pelo STF na manobra ativista da corte que usou mensagens hackeadas, adquiridas ilegalmente e sem terem sido submetidas a uma perícia técnica, mas que “mostravam um conluio entre o então juiz Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa” para perseguir o ilibado Lula. Igualmente curioso é o fato de que o CPF do juiz igualmente ilibado ainda consta entre um dos doadores da campanha de Lula no Tribunal Superior Eleitoral. Desde o início de fevereiro, ele foi transferido para a 13ª Vara Federal de Curitiba. Conforme a Corte, Appio doou R$ 13 a Lula e R$ 140 à deputada estadual Ana Júlia Pires Ribeiro (PT-PR). Já disse que não sou cruzeirense.

Appio também foi responsável por decisões contrárias às tomadas pelo seu antecessor na Vara de Curitiba, o ex-ministro e hoje senador Sergio Moro, e, em poucos meses de atuação à frente da Lava Jato, o fã de Lula no Judiciário do Paraná reverteu a sentença contra o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, e anunciou o desejo de rever o caso do doleiro Alberto Youssef.Sérgio Cabral | Foto: Agência Brasil

O afastamento de Appio do cargo de juiz da Lava Jato foi determinado pela Corregedoria do TRF4 depois que Appio, de acordo com as investigações, fez uma ligação para ameaçar o filho do desembargador Marcelo Malucelli. Além de utilizar um número de telefone bloqueado, que não permite a identificação da chamada, ele usou um nome falso, de um servidor inexistente nos sistemas da Justiça. No dia anterior à ligação, a 8ª Turma do TRF4 havia autorizado algumas medidas contra Appio para apurar possíveis irregularidades e adotar providências contra o magistrado — o desembargador Marcelo Malucelli era relator do procedimento.

O que o juiz não contava era com o fato de que o filho do desembargador, João Eduardo Barreto Malucelli, gravaria o telefonema. A gravação foi encaminhada à Polícia Federal, e o perito concluiu que, “a partir da comparação da voz do interlocutor da ligação suspeita com a voz do juiz federal, Eduardo Fernando Appio, se ‘corrobora fortemente a hipótese’ de que a voz presente no vídeo que gravou a ligação telefônica recebida pelo filho do desembargador federal Marcelo Malucelli fora produzida pelo juiz federal Eduardo Fernando Appio, em nível ‘+3’”. A escala vai do grau “-4” ao “+4”.

Com o afastamento de Appio, a juíza Gabriela Hardt assume a condução dos processos da Operação Lava Jato da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, pelo menos temporariamente. Em passagem anterior como titular da Lava Jato, Gabriela proferiu sentença no processo do sítio de Atibaia, na qual condenou o então ex-presidente Lula a 12 anos e 11 meses de prisão.  
 
Uma de suas frases ficou famosa quando, depois de uma resposta mal-educada do futuro ex-presidiário durante uma audiência, Hardt disse a Lula: “Se começar nesse tom comigo, a gente vai ter problema”. A presença de Gabriela como mulher forte e influente, que combate a corrupção com mão firme e no rigor da lei, recebeu inúmeras comemorações de feministas pelo Brasil. Mentira. Nem um pio. Gabriela Hardt | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Se perdermos a esperança na reação do povo, de pessoas sérias nas instituições, não será o fracasso que nos atingirá, mas a barbárie absoluta de um Estado caótico sem leis

A semana nos deu vitórias diante de um sistema corrompido gigantesco. Mesmo que pequenas, temos que celebrar. Fica cada dia mais óbvio que Lula não tem força no Congresso, apesar de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, presidentes da Câmara e do Senado, respectivamente, fazerem parte do ecossistema petista.

Não podemos perder a esperança de que ainda haja bons juízes em Berlim e de que haverá, sim, uma reação em algum momento por parte das instituições. Não há mais para onde fugir. Não há mais corda para ser esticada. Não há mais páginas da Constituição para serem rasgadas. Se perdermos a esperança na reação do povo, de pessoas sérias nas instituições, não será o fracasso que nos atingirá, mas a barbárie absoluta de um Estado caótico sem leis.

Confesso, eu estava um pouco desanimada no último domingo, logo depois da batida forte que sofremos com a ilegal e imoral cassação de Deltan Dallagnol, em mais uma missão cumprida pelos vingativos vingadores. Mas Deus manda suas mensagens. Fui surpreendida pela homilia do padre na missa com palavras que parecem ter sido enviadas diretamente para um coração, como o de todos vocês, que questiona diariamente se vamos “aguentar o tranco”.Deltan Dallagnol | Foto: Wikimedia Commons

O padre trouxe para reflexão um poema do poeta francês Charles Péguy, Le Porche du Mystère de la Deuxième Vertu (“O portal do mistério da esperança”, numa tradução livre).

Péguy escreveu o poema em 1911, quando as sombras da Primeira Guerra Mundial se acumulavam sobre a Europa em uma guerra que ele também acreditava ser “a guerra para acabar com todas as guerras”, e na qual ele morreria lutando em 1914, aos 41 anos, em um ambiente de crescente tensão política e econômica. Sem filosofar, sem moralizar, sem fazer advertências nem prescrições leves, Péguy propõe uma terapia radical em suas palavras: a esperança. Como os profetas bíblicos, ele discerne a presença de Deus nas experiências humanas concretas. Para ele, a esperança brota da leitura da criação, onde Deus fala, transformando a angústia em compaixão, o fracasso em abandono criativo, a amargura em ternura. Péguy, em Le Porche du Mystère de la Deuxième Vertu, é o escriba de Deus, e a mensagem de Deus é a esperança.

Naturalmente, o poeta personifica a Esperança (“Hope”), assim como a Fé (“Faith”) e a Caridade (“Charity”), embora, curiosamente, seja apenas em uma seção muito curta do poema que ele dá letras maiúsculas aos três nomes. Todos os três personagens são femininos, o que não é surpreendente, porque “l’espérance”(“esperança”), “la foi” (“fé”) e “la charité” (“caridade”), assim como no português, são palavras femininas em francês.

Péguy as vê como três irmãs que caminham juntas pela estrada áspera e pedregosa que conduz à salvação (“le chemin raboteux du salut”), a estrada que segue interminável (“la route interminable”). Enquanto caminham, a fé está de um lado, a caridade do outro, enquanto no meio está a pequena esperança, quase escondida nas saias de suas duas irmãs mais velhas. O poeta não resiste a algumas imagens vívidas. A fé, diz ele, é uma catedral, construída sobre fortes alicerces, sólida, antiga, venerável, que dura séculos. A fé é uma esposa firme e íntegra, uma mulher casada e de fidelidade inquestionável. A caridade, ao contrário, é um hospital, uma casa de esmolas, e ali recolhem-se todas as misérias do mundo, ali acolhem-se os feridos, os doentes, os tristes, os indesejados. A caridade tem se doado incessantemente ao longo de todos os séculos da existência humana e sempre o fará. Ela é uma mãe viva em seu coração profundo, compassiva e gentil. Seus olhos brilham com preocupação amorosa, suas mãos estão sempre estendidas para ajudar todos os necessitados. Assim ela vive.

Mas e a esperança? A esperança de Péguy é uma criança, “une petite fille de rien du tout”, inocente, confiante, indefesa. Ela não carrega fardos pesados, então ela pula entre suas duas irmãs mais velhas, despreocupada e alegre, e ninguém, na verdade, liga muito para ela ou nota sua presença. Todas as noites ela vai para a cama, dorme muito bem e levanta-se todas as manhãs, revigorada e renovada.

O poema abre com a voz de Deus dizendo que a fé não o surpreende em nada: “La foi, ça ne m’étonne pas. / Ҫa n’est pas étonnant”. Deus brilha na criação. O tom de Péguy, melancólico e contemplativo em seu imaginário, transporta o leitor para a França rural, ainda tocada pela beleza do cristianismo medieval e suas devoções tradicionais. Deus não é revelado no universo? Deus não é visível na face da Terra, na face das águas, no movimento das estrelas, no vento que sopra sobre a terra e o mar, nas montanhas e vales e florestas e campos, nos povos e nações, em homem e mulher? Não vemos Deus sobretudo nas crianças — no seu olhar inocente, na pureza da sua voz? Basta que os nossos olhos contemplem a criação, diz o poeta, e seremos levados sem esforço ao reino da fé. Para não acreditar, para não ter fé, diz ele, teríamos de tapar os olhos e os ouvidos.
A caridade também não surpreende a Deus: “‘La charité’, dit Dieu, ‘ça ne m’étonne pas’”. Estamos cercados por tantos infelizes, desolados, feridos no corpo e na alma, que precisaríamos ter um coração de pedra para não responder a eles, nossos irmãos e irmãs, em sua necessidade. Como não desejar repartir o nosso pão com os famintos? Não tiraríamos de nossas próprias bocas o próprio alimento, nosso próprio pão de cada dia, e o daríamos de bom grado a qualquer criança faminta que cruzasse nosso caminho? Certamente não seria natural fazer o contrário. Teríamos que tapar os olhos para não ver tanta gente sofrendo; teríamos que tapar os ouvidos para não desejar responder a tantos gritos de angústia. Segundo Deus, de acordo com o poeta, a caridade é totalmente natural, e o coração humano está cheio dela: jorra como um rio cheio, e nada nem ninguém pode impedir o seu fluxo.

“Não”, diz Deus, “a fé e a caridade não surpreendem”. Elas são bastante naturais e simplesmente acontecem.

O que Deus acha realmente incrível é a esperança. Que vê tudo o que está acontecendo ao nosso redor hoje e ainda espera que amanhã seja melhor: “Ҫa c’est étonnant”, diz Deus. A fé e a caridade são comparativamente fáceis e diretas — a esperança é muito mais difícil, pois a tentação de perder a esperança paira constantemente sobre nós. A fé vê o que é, no tempo e na eternidade; a esperança vê o que ainda não é e o que será, no tempo e na eternidade. A caridade ama o que é, no tempo e na eternidade; a esperança ama o que ainda não é e o que será, no tempo e na eternidade. Péguy apresenta a esperança ao mesmo tempo natural e sobrenatural, temporal e eterna, terrena e espiritual, mortal e imortal. Ela é uma chama frágil, mas não pode ser extinta, nem mesmo pelo sopro da própria morte. Essa pequena chama perfurará a escuridão da eternidade: “Une flamme percera des ténèbres éternelles”.Foto: Shutterstock

À medida que o cristianismo avança através dos tempos, as novas gerações de cristãos extraem força desse trio de virtudes. A fé é o fundamento e, de acordo com Paulo na Bíblia, a caridade, “sempre paciente e bondosa e nunca ciumenta”, é a maior das três virtudes. Mas a esperança também é essencial — ela também é um dom espiritual muito precioso. O “petite fille de rien du tout” de Péguy é indispensável para as outras duas virtudes, pois na verdade é ela quem permite que todas continuem caminhando: “…en réalité c’est elle qui fait marcher les deux autres”. Sem ela, tudo é humanamente impossível. A esperança humaniza a fé. Ela sabe que não é fácil, nem mesmo possível, acreditar em Deus sem cessar e sem nunca duvidar. Ela sabe que é impossível para nós vivermos sempre à altura das exigências da fé que professamos e, mesmo assim, ela nos empurra para o que pode ser: o melhor de nós mesmos, o melhor de tudo.

Ao acordar todas as manhãs, vulnerável, mas invencível, a esperança nos sensibiliza a perceber os minúsculos vislumbres de luz na escuridão espessa que tantas vezes nos envolve. Ela nos lembra que, se a nossa fé enfraquece e perdemos Deus de vista no caminho da vida, podemos sempre reencontrar a sua presença e caminhar com Ele. É a esperança que caminha nas trevas, sem medo, e ilumina a escuridão.

O emblemático líder francês Charles de Gaulle, confrontando-se com as tragédias de outra grande guerra, teria dito que Le Porche du Mystère de la Deuxième Vertu era seu poema favorito — dado o tema, hoje não é difícil entender por quê.

Leia também “Missão dada, missão cumprida”

Ana Paula Henkel, colunista - Revista Oeste


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