Flávio Gordon
Por que a ideologia de gênero é relativista no sentido cis e essencialista no sentido trans?
Foto: Shutterstock
Ao fim do meu último artigo, observei o estranho fenômeno do ativismo transativista, que, muito embora se apresente como continuador do movimento pelos direitos civis, tem realmente muito pouco a ver com a tradição norte-americana do common sense. Não obstante a retórica do universalismo possa enganar os mais incautos, o que ressalta na agenda trans são a radicalidade, a virulência, o seu niilismo. Eis a principal marca do movimento identitário em sua versão mais extremada.
Ocorre é que, quando se dirigem a públicos extra-acadêmicos, e genericamente progressistas, os transativistas mais radicais costumam atenuar seu discurso, tentando angariar empatia e identificação geral.
A coisa não tarda a mudar de figura quando os radicais estão em seus casulos acadêmicos, quando já não hesitam em moderar a linguagem. Num ensaio introdutório a uma coletânea de estudos sobre gênero, uma das enragés transativistas, Susan Stryker, chegou a propor que o maior propósito do transgenderismo era o de subverter o paradigma epistemológico do Ocidente. Nada menos. Para a alegada defesa de direitos individuais e proteções civis, a coisa parece ter ido bem além das chinelas… publicidade
Stryker e outros transativistas sabem que, no fundo, o que lhes cabe promover é o trabalho disruptivo, de modo a que os indivíduos concretos sejam usados pelas causas, e não o contrário. Nesse sentido, a velocidade com que as contradições se sucedem no seio do movimento trans-identitário chega a ser estonteante, gerando uma série de fissões no radicalismo outrora “ortodoxo”. Uma das principais frentes de batalha, como se sabe, tem oposto as feministas radicais aos transativistas. Enquanto as primeiras assumem uma posição mais convencionalmente construcionista, as segundas apelam a um curioso “naturalismo” de segunda mão. Susan Stryker chegou a propor que o maior propósito do transgenderismo era subverter o paradigma epistemológico do Ocidente | Foto: Reprodução Redes sociais
Com efeito, as assim chamadas “mulheres trans” dizem ser mulheres — como se, de algum modo, possuíssem cérebros femininos “presos” no corpo de homens. Mas, da perspectiva feminista radical, a ideia de um cérebro naturalmente feminino não faz sentido.
Stryker e outros transativistas sabem que, no fundo, o que lhes cabe promover é o trabalho disruptivo, de modo a que os indivíduos concretos sejam usados pelas causas, e não o contrário. Nesse sentido, a velocidade com que as contradições se sucedem no seio do movimento trans-identitário chega a ser estonteante, gerando uma série de fissões no radicalismo outrora “ortodoxo”. Uma das principais frentes de batalha, como se sabe, tem oposto as feministas radicais aos transativistas. Enquanto as primeiras assumem uma posição mais convencionalmente construcionista, as segundas apelam a um curioso “naturalismo” de segunda mão. Susan Stryker chegou a propor que o maior propósito do transgenderismo era subverter o paradigma epistemológico do Ocidente | Foto: Reprodução Redes sociais
Com efeito, as assim chamadas “mulheres trans” dizem ser mulheres — como se, de algum modo, possuíssem cérebros femininos “presos” no corpo de homens. Mas, da perspectiva feminista radical, a ideia de um cérebro naturalmente feminino não faz sentido.
Se as mulheres pensam e agem diferentemente dos homens é porque a sociedade assim as forçou por convenção social, exigindo-lhes que fossem sexualmente atraentes, maternais e submissas aos homens.
Para as feministas, o que terá se passado na história entre os sexos foi um processo político marcado por uma espécie de “submissão ritualizada” das mulheres aos homens, um processo de exploração do qual as “mulheres trans” estariam se beneficiando.
Há não muito tempo, o gênero era considerado uma mera construção social, enquanto o sexo era uma realidade biológica. Agora, os ativistas alegam que o gênero é destino, enquanto o sexo biológico não passa de construção social
A posição construcionista, como dissemos, é a que foi sempre historicamente marcada pela ideologia feminista da segunda onda. Consagrada, entre outras, por Simone de Beauvoir, o argumento consistia na ideia de que as mulheres não nascem naturalmente mulheres, conquanto possam vir a se tornar. No lado do transativismo, a confusão reside num misto entre duas posições. Se, por um lado, o transativista começa como realista contra o construcionismo feminista, obviamente não pode levar esse realismo naturalista até as últimas consequências, pois isso destruiria a premissa política fundamental de que o gênero é construído, fluido, mutável etc.
As contradições do transativismo permanecem sempre ocultas, jamais examinadas, porque, no fundo, o transativismo não admite fazer elucubrações metafísicas.
Há não muito tempo, o gênero era considerado uma mera construção social, enquanto o sexo era uma realidade biológica. Agora, os ativistas alegam que o gênero é destino, enquanto o sexo biológico não passa de construção social
A posição construcionista, como dissemos, é a que foi sempre historicamente marcada pela ideologia feminista da segunda onda. Consagrada, entre outras, por Simone de Beauvoir, o argumento consistia na ideia de que as mulheres não nascem naturalmente mulheres, conquanto possam vir a se tornar. No lado do transativismo, a confusão reside num misto entre duas posições. Se, por um lado, o transativista começa como realista contra o construcionismo feminista, obviamente não pode levar esse realismo naturalista até as últimas consequências, pois isso destruiria a premissa política fundamental de que o gênero é construído, fluido, mutável etc.
As contradições do transativismo permanecem sempre ocultas, jamais examinadas, porque, no fundo, o transativismo não admite fazer elucubrações metafísicas.
Sua retórica está repleta de afirmações ontológicas, tal como a de que as pessoas são do gênero ao qual dizem pertencer ser, e de que os sentimentos determinam a realidade. Os radicais não querem que o debate aconteça no nível da filosofia, de modo que o disfarçam com as vestes da “ciência” e da “medicina”. E cooptam várias associações médicas e profissionais a serviço dessa ideologia delirante.
Simone de Beauvoir foi escritora, intelectual, filósofa existencialista, ativista política, feminista e teórica social francesa | Foto: Wikimedia Commons
A Associação Psicológica Americana, por exemplo, elaborou um panfleto intitulado “Respostas às suas questões sobre pessoas trans, identidade de gênero e expressão de gênero”. O texto fala em “transgenderismo como um termo guarda-chuva para pessoas cuja identidade de gênero, expressão de gênero e comportamento não se conformam com o tipicamente associado com o sexo que lhe foi atribuído ao nascer”. Note-se a linguagem politizada. As pessoas não nascem com sexo — é-lhes “atribuído”.
Trata-se de uma reviravolta espantosa. Há não muito tempo, o gênero era considerado uma mera construção social, enquanto o sexo era uma realidade biológica. Agora, os ativistas alegam que o gênero é destino, enquanto o sexo biológico não passa de construção social. Se, por um lado, afirmam ainda que as possibilidades para a identidade de gênero são ilimitadas — para homens, mulheres, ambos ou nenhum —, insistem também que a identidade de gênero é inata e imutável, estabelecida de uma vez por todas desde uma tenra idade.
O transativismo afirma não haver diferenças significativas entre homens e mulheres, mas repousa sobre rígidos estereótipos sexuais a fim de sustentar que a “identidade de gênero” é real, mas o corpo biológico não o é. Diz-se ademais que a verdade é tudo o que uma pessoa afirma ser, mas no instante seguinte postula-se a existência de um eu real “dentro” da pessoa. O gênero é uma construção social, mas também simultaneamente inato e, em novo rodopio, por sua vez “fluido”.
A Associação Psicológica Americana, por exemplo, elaborou um panfleto intitulado “Respostas às suas questões sobre pessoas trans, identidade de gênero e expressão de gênero”. O texto fala em “transgenderismo como um termo guarda-chuva para pessoas cuja identidade de gênero, expressão de gênero e comportamento não se conformam com o tipicamente associado com o sexo que lhe foi atribuído ao nascer”. Note-se a linguagem politizada. As pessoas não nascem com sexo — é-lhes “atribuído”.
Trata-se de uma reviravolta espantosa. Há não muito tempo, o gênero era considerado uma mera construção social, enquanto o sexo era uma realidade biológica. Agora, os ativistas alegam que o gênero é destino, enquanto o sexo biológico não passa de construção social. Se, por um lado, afirmam ainda que as possibilidades para a identidade de gênero são ilimitadas — para homens, mulheres, ambos ou nenhum —, insistem também que a identidade de gênero é inata e imutável, estabelecida de uma vez por todas desde uma tenra idade.
O transativismo afirma não haver diferenças significativas entre homens e mulheres, mas repousa sobre rígidos estereótipos sexuais a fim de sustentar que a “identidade de gênero” é real, mas o corpo biológico não o é. Diz-se ademais que a verdade é tudo o que uma pessoa afirma ser, mas no instante seguinte postula-se a existência de um eu real “dentro” da pessoa. O gênero é uma construção social, mas também simultaneamente inato e, em novo rodopio, por sua vez “fluido”.
Tente-se imaginar o que significa exatamente ter um senso interior de gênero, e o que significaria ter esse senso interno de gênero à parte o fato de ter um corpo desse ou daquele sexo.
Por último, restam mais de mil e um paradoxos do transgenderismo. Se não há homem e mulher, por que há homem trans e mulher trans? Se nenhuma mulher cis pode ser enquadrada num determinado estereótipo de feminilidade, por que a mulher trans é invariavelmente um homem que se autoidentifica como uma mulher estereotípica?
Por último, restam mais de mil e um paradoxos do transgenderismo. Se não há homem e mulher, por que há homem trans e mulher trans? Se nenhuma mulher cis pode ser enquadrada num determinado estereótipo de feminilidade, por que a mulher trans é invariavelmente um homem que se autoidentifica como uma mulher estereotípica?
Por que uma mulher trans é sempre um homem cis que se autoidentifica como mulher cis, e nunca um homem trans que se autoidentifica como mulher trans?
Por que não parece haver dupla incidência do fator trans?
Talvez porque trans + trans = cis?
Diz-se que um homem trans é uma mulher que se autoidentifica como homem.
Mas ser homem (ou mulher) não é justamente o ato de se autoidentificar como tal?
Se a ideologia de gênero postula uma identidade identificante, por que depende tanto das identidades identificadas para definir o gênero por oposição?
Por que, enfim, a ideologia de gênero é relativista no sentido cis e essencialista no sentido trans? Resta-nos, enquanto dá, seguir perguntando, enquanto a gritaria revoltosa não se impõe pelo silêncio… Ativistas alegam que o gênero é destino, enquanto o sexo biológico não passa de construção social| Foto: Reprodução/WikiMedia Commons
Leia também “O que o transativismo tem a ver com direitos civis”
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Flávio Gordon, colunista - Revista Oeste
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