Revista Oeste
Depois de atropelar o Legislativo, o Executivo, o Ministério Público e a Constituição, Moraes assume a chefia do Judiciário
Alexandre de Moraes | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Premiado com a mais cobiçada das togas em março de 2017, Alexandre de Moraes teve de suportar durante longos 24 meses o semianonimato imposto a todo caçula do Supremo Tribunal Federal. Ao longo desse período, no papel de coadjuvante ou mero figurante, o único ministro indicado por Michel Temer torceu para que a mão do destino recomeçasse o desfile de acasos que acabariam por depositá-lo na Praça dos Três Poderes. No primeiro, o despejo de Dilma Rousseff instalou o vice no comando do Executivo.
Formado pela Faculdade do Largo de São Francisco, aprovado pouco depois no concurso para ingresso no Ministério Público, o paulistano Moraes dividiu-se entre as aulas de Direito Constitucional, a publicação de livros sobre questões jurídicas e a vida de promotor de Justiça até topar com as pompas e fitas da política profissional.
Em março de 2019, dois anos depois do desembarque, o ainda caçula do Egrégio Plenário pressentiu que enfim chegara a sua hora.
As normas internas ordenam que o relator de cada caso seja escolhido por sorteio. Sem consultar os demais presididos, o presidente encarregou Moraes de “investigar a existência de notícias falsas, denunciações caluniosas, ameaças e roubos de publicação, sem os devidos direitos autorais, infrações que podem configurar calúnia, injúria e difamação contra os membros da Suprema Corte e seus familiares.
Como fracassou a tentativa de punir com censura e multas uma revista digital que publicara uma reportagem sobre Toffoli, poucos levaram a sério o pontapé inicial na Constituição.
O fiasco inaugural, sabe-se agora, camuflava o ovo da serpente.
Além dos sentidos mais primitivos do artilheiro, os erros da primeira ofensiva contra a liberdade de expressão acordaram o antigo promotor e o especialista em segurança pública.
Esses dois Moraes sempre flexionaram com fluência e animação os verbos prediletos dos semeadores do medo, como punir, acusar, prender, castigar ou intimidar. Passados quatro anos, o balanço é perturbador.
O inquérito inicial desdobrou-se em sete, ou oito, ou dez.
Ninguém consegue informar com precisão porque todos correm em sigilo. Alguns são tão sigilosos que talvez nem mesmo Moraes saiba direito de onde vieram e para onde vão.
“O Brasil não é uma terra sem lei”, vive declamando o Protetor do Estado de Direito. A lei sou eu, falta avisar. Só ele sabe o que é verdade e o que é mentira. Só ele conhece a diferença entre informar e desinformar
Nenhum dos Poderes escapou. Em 2020, ao interditar a nomeação do delegado Alexandre Ramagem para a Superintendência da Polícia Federal, implodiu a norma legal que atribui exclusivamente ao chefe do Executivo a escolha do ocupante do cargo. Em 2021, atropelou o Legislativo, aposentou a Constituição, suspendeu a imunidade parlamentar e inventou o flagrante perpétuo — tudo para prender o deputado federal Daniel Silveira por delitos enquadrados desde sempre no trecho do Código Penal reservado aos crimes contra a honra.
“A graça de que trata este decreto é incondicionada e será concedida independentemente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, ressaltou um trecho do documento. “Essa é uma atribuição do presidente da República, gostemos ou não”, concorda o vídeo em que o ministro ensina que ninguém tem o direito de fazer o que vem fazendo obsessivamente na perseguição a um dos seus alvos preferenciais. Um dia depois de encerrado o mandato, o xerife Moraes atropelou o professor Moraes para prender Silveira de novo. Silveira já não podia invocar a imunidade parlamentar. Mas o ministro perdera o direito de julgá-lo: um ex-deputado não tem foro especial. “O Brasil não é uma terra sem lei”, vive declamando o Protetor do Estado de Direito. A lei sou eu, falta avisar. Só ele sabe o que é verdade e o que é mentira. Só ele conhece a diferença entre informar e desinformar. Só ele conhece a fórmula que livrará a pátria em perigo dos fascistas, dos golpistas, das usinas de fake news, dos atos antidemocráticos e do gabinete do ódio. O ministro Moraes decide, todos os outros dizem amém. Ou quase todos.
"Alexandre de Moraes defendeu indulto presidencial no STF, em 2018"
— Eu cito neste sentido… é… entrevista dada ao… Es… ao jornal O Estado de S. Paulo… pelo… por Fernando Abrucio, a… em matéria publicada no dia 28 de abril de 2022 — gaguejou Mendonça. — Diz a chamada da matéria: “Pena de Daniel Silveira foi um pouco exagerada e Congresso não deu suporte ao STF, diz pesquisador”.
— Permite uma pergunta, ministro André? — interrompeu a voz abaritonada, ajustando o timbre de feitor.
— Permito.
— O Abrucio é jurista?
— Não, mas…
— Só pra que conste dos anais.
— Não, mas… mas cito também Fernando Capez, consultor jurídico, que foi colega de Vossa Excelência…
— E à época também deputado… candidato a deputado pelo partido do presidente.
— E cito Valdo Cruz. Aqui ele não faz referência a nenhum jurista…
— E também não é jurista.
— Não, não é… mas ele diz o seguinte… salvo que a gente vá dizer que é fake news. Podemos até dizer.
— Levando em conta quem tá sendo julgado, é até possível — encerrou Moraes.
Que “eminente ministro”, que nada. Que “Vossa Excelência”, que nada. Quem prende ou solta quem quer agora dispensa aos colegas o tratamento que lhe der na telha. Um “ministro André” já está de bom tamanho. É excesso de gentileza para quem, onisciente desde os tempos do berçário e onipresente depois dos distúrbios de 8 de janeiro, merece esbanjar onipotência.
Paciência tem limite, avisam os sinais de cansaço emitidos pela imprensa convencional ou por aliados de Lula.
Também neste início de maio, o mesmo jornal vergastou em editorial a mais recente ofensiva de Moraes contra as empresas Brasil Paralelo e Spotify. “Há graves erros na decisão de Alexandre de Moraes. Em primeiro lugar, ela se baseia em uma profunda incompreensão do papel do Judiciário no Estado Democrático de Direito. Nenhum juiz é árbitro do debate público no País, menos ainda com decisões de ofício, menos ainda sobre projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional. Absolutamente descabido, o papel de tutor arvorado pelo ministro do STF agride profundamente a liberdade de expressão e o exercício da cidadania. (…) A decisão tem também sérias deficiências de fundamentação. Não basta dizer, por exemplo, que ‘a liberdade de expressão não é liberdade de agressão’, ou que ‘as redes sociais não são terra sem lei’. Mesmo que dispusesse de atribuição jurisdicional para atuar assim, o magistrado teria, no mínimo, de indicar onde os conteúdos que precisam ser removidos agridem terceiros ou desrespeitam a lei.” Editorial do jornal Estado de S. Paulo (4/5/2023) | Foto: Reprodução
“É preciso cassar, com urgência, a decisão de Alexandre de Moraes”, recomenda o editorial. É preciso mais que isso.
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Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste
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