O Inquérito das Fake News (instaurado em 2019 para investigar manifestações contra ministros do STF e conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes) já dura mais de quatro anos e não dá sinais de fim.
O ministro do STF Alexandre de Moraes durante reunião com o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco: investigador, acusador, julgador e vítima| Foto: Lula Marques/ Agência Brasil
Artigos publicados nesta Gazeta do Povo já deram conta das múltiplas ilegalidades do inquérito. Não se trata de ilegalidades comuns em processos judiciais, mas sim de aberrações singulares, como a concentração das funções de investigador, acusador, julgador e vítima; ou a pretensão de reunir sob o mesmo grupo de julgadores um rol infinito de crimes cometidos pelas mais variadas pessoas em todo o país e até no estrangeiro, por alegação de conexão entre os crimes, mas sem qualquer conexão verdadeira entre eles, exceto o fato de os próprios julgadores figurarem como vítimas. Ou, em alguns casos, nem mesmo isto.
Mas, com frequência, nem mesmo estes fatos extremos têm sido capazes de persuadir os observadores: grande parte da opinião publicada no Brasil tem apoiado o inquérito, mesmo estando escancarado o seu caráter antijurídico. O raciocínio aparente é o de que os fins justificam os meios, e a finalidade da lei e da Justiça seria a de punir criminosos; função que, ainda que por vias tortas — e como são tortas! —, estaria sendo cumprida pelo implacável ministro Alexandre de Moraes.
Mas o Inquérito das Fake News se destina mesmo a punir criminosos?
Eis uma rememoração exemplificativa de pessoas e entidades que se tornaram alvos do Inquérito das Fake News por críticas ao STF ou a seus ministros.
Mas, com frequência, nem mesmo estes fatos extremos têm sido capazes de persuadir os observadores: grande parte da opinião publicada no Brasil tem apoiado o inquérito, mesmo estando escancarado o seu caráter antijurídico. O raciocínio aparente é o de que os fins justificam os meios, e a finalidade da lei e da Justiça seria a de punir criminosos; função que, ainda que por vias tortas — e como são tortas! —, estaria sendo cumprida pelo implacável ministro Alexandre de Moraes.
Mas o Inquérito das Fake News se destina mesmo a punir criminosos?
Eis uma rememoração exemplificativa de pessoas e entidades que se tornaram alvos do Inquérito das Fake News por críticas ao STF ou a seus ministros.
O crime de desabafo
Em 2018, o advogado Cristiano Caiado de Acioli, que compartilhava o mesmo avião comercial que o ministro Ricardo Lewandowski, disse a ele: “O Supremo é uma vergonha, viu? Eu tenho vergonha de ser brasileiro quando eu vejo vocês.” O caso recebeu muita atenção nos meios de comunicação, mas não pela fala de Acioli, e sim pela reação do ministro Lewandowski, que ameaçou o advogado de prisão e chamou a Polícia Federal. Na chegada do voo a Brasília, o advogado foi detido para prestar esclarecimentos em delegacia, sendo instaurado inquérito policial para apurar suposto crime de desacato.
Todavia, o Ministério Público não enxergou crime na conduta, pedindo o arquivamento do inquérito, e o juiz competente de primeira instância concordou com o pedido, declarando que Acioli estava em sua liberdade de expressão.
Insatisfeito, o STF atropelou a decisão do Judiciário e, em 11 de outubro de 2019, incluiu Acioli no Inquérito das Fake News. Segundo nota do gabinete de Lewandowski, Acioli teria praticado “um ato de injúria” ao STF — muito embora, no direito brasileiro, pessoas jurídicas, mesmo as privadas, e com muito mais razão as públicas, como o STF, não podem ser vítimas de crimes contra a honra.
O crime de reportagem
Segundo a imprensa, a causa imediata da instauração do Inquérito das Fake News teria sido um artigo publicado por Diogo Castor de Mattos, procurador da força-tarefa da Lava Jato, no veículo O Antagonista, em 9 de março de 2019, no qual chamava de “o mais novo golpe à Lava Jato” uma decisão iminente do tribunal que implicaria a transferência de muitos processos por corrupção para a Justiça Eleitoral.
O inquérito foi instaurado cinco dias depois da publicação artigo. Mas a primeira medida tomada no inquérito só ocorreu semanas depois, em reação a uma reportagem publicada em outro veículo do mesmo grupo (revista Crusoé), intitulada “O amigo do amigo de meu pai”. A reportagem revelava delação do empresário Marcelo Odebrecht (que estava em prisão domiciliar) em que ele afirmava ter usado habitualmente o codinome do título para referir-se ao então advogado-geral da União, depois tornado ministro do STF, Dias Toffoli.
O ministro Alexandre de Moraes afirmou que o comportamento da revista Crusoé tinha “contornos antidemocráticos” e ordenou a retirada da reportagem do ar, a abstenção de publicação de novas postagens sobre o assunto, sob pena de multa diária de R$ 100 mil, e o depoimento dos jornalistas à Polícia Federal.
O ministro Alexandre de Moraes afirmou que o comportamento da revista Crusoé tinha “contornos antidemocráticos” e ordenou a retirada da reportagem do ar, a abstenção de publicação de novas postagens sobre o assunto, sob pena de multa diária de R$ 100 mil, e o depoimento dos jornalistas à Polícia Federal.
O crime de hashtag
Em 2020, o inquérito se utilizou de “relatório técnico pericial” que consistiu em uso da ferramenta pública de busca do Twitter para visualizar tuítes postados em determinado período. Os termos buscados foram palavras pouco elogiosas envolvendo o STF ou seus ministros: #impeachmentgilmarmendes, #STFVergonhaNacional, #STFEscritoriodocrime, #hienasdetoga, #forastf, #lavatoga, STF, SUPREMO, IMPEACHMENT, toffoli e gilmar.
Entre os inúmeros usuários do Twitter que tinham utilizado estes . Por meio desta técnica de eliminação, chegou-se a certa quantidade de perfis que eram seguidos por grande termos, verificou-se quais seguiam quaisnúmero de pessoas e que, em larga medida, seguiam-se entre si.
Uma dessas pessoas foi Bárbara Destefani, dona de casa que tinha conquistado grande número de seguidores mantendo canal de YouTube denominado Te Atualizei, gravado em sua própria casa, no qual exibia manchetes jornalísticas recentes e as comentava.
Para o azar de Bárbara, no âmbito do Inquérito das Fake News, o fato de seguir e ser seguida por outros perfis que tinham utilizado as mesmas hashtags foi considerado indício suficiente de que os envolvidos integravam uma organização criminosa.
Uma dessas pessoas foi Bárbara Destefani, dona de casa que tinha conquistado grande número de seguidores mantendo canal de YouTube denominado Te Atualizei, gravado em sua própria casa, no qual exibia manchetes jornalísticas recentes e as comentava.
Para o azar de Bárbara, no âmbito do Inquérito das Fake News, o fato de seguir e ser seguida por outros perfis que tinham utilizado as mesmas hashtags foi considerado indício suficiente de que os envolvidos integravam uma organização criminosa.
Organização esta que, segundo o STF, teria como objetivo “atacar integrantes de instituições públicas”, “gerar animosidade dentro da sociedade brasileira”, “promover o descrédito dos poderes da República”, “além de outros crimes”. (Não são crimes.)
Em consequência, Bárbara sofreu operação de busca e apreensão na casa onde morava com o seu filho, com a Polícia Federal revirando seus pertences à procura de elementos de prova de seu envolvimento em organização criminosa que estivesse por trás dos seus vídeos. Subsequentemente, o ministro Luis Felipe Salomão, do TSE, ordenou a desmonetização em bloco de vários canais investigados no Inquérito das Fake News, entre os quais estava o de Bárbara, alegando que eram propagadores de desinformação — mas sem citar qualquer artigo de lei que autorizasse a medida, e sem individualizar qualquer conduta da youtuber, para quem a medida foi dura, visto que tinha na monetização do canal a sua principal fonte de renda. Posteriormente, em decisão sigilosa, foi determinado o bloqueio completo de todos os perfis de Bárbara em território brasileiro.
* * *
Os casos listados não configuram mera exceção. Qualquer um com conhecimento jurídico e boa-fé que leia as decisões já publicadas do Inquérito 4.781 (como é oficialmente chamado) frequentemente se verá espantado com a relativa inocuidade das condutas descritas, tratadas, no entanto como se fossem crimes de gravidade fora do comum (mas, curiosamente, quase sempre sem se dizer qual seria, em tese, o crime cometido — talvez porque não exista, em muitos casos).
O espanto diminui quando se recorda que as funções de investigar, acusar e julgar estão sendo aqui ilegalmente acumuladas nas mãos das próprias vítimas — que, como lembrado no último artigo, têm um forte viés de autosserviço. Tendo isto em vista, já não parece tão espantoso assim que violações menores sejam tratadas sob uma lupa, e que seja considerado justificado rasgar todo o ordenamento jurídico para persegui-las.
O espanto que continua intacto, no entanto, é que uma parcela tão grande do restante da opinião brasileira — que não seria, em tese, parte interessada — aplauda que esses atos sejam perpetrados contra seus concidadãos.
Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - Coluna na Gazeta do Povo - Ideias
Em consequência, Bárbara sofreu operação de busca e apreensão na casa onde morava com o seu filho, com a Polícia Federal revirando seus pertences à procura de elementos de prova de seu envolvimento em organização criminosa que estivesse por trás dos seus vídeos. Subsequentemente, o ministro Luis Felipe Salomão, do TSE, ordenou a desmonetização em bloco de vários canais investigados no Inquérito das Fake News, entre os quais estava o de Bárbara, alegando que eram propagadores de desinformação — mas sem citar qualquer artigo de lei que autorizasse a medida, e sem individualizar qualquer conduta da youtuber, para quem a medida foi dura, visto que tinha na monetização do canal a sua principal fonte de renda. Posteriormente, em decisão sigilosa, foi determinado o bloqueio completo de todos os perfis de Bárbara em território brasileiro.
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Os casos listados não configuram mera exceção. Qualquer um com conhecimento jurídico e boa-fé que leia as decisões já publicadas do Inquérito 4.781 (como é oficialmente chamado) frequentemente se verá espantado com a relativa inocuidade das condutas descritas, tratadas, no entanto como se fossem crimes de gravidade fora do comum (mas, curiosamente, quase sempre sem se dizer qual seria, em tese, o crime cometido — talvez porque não exista, em muitos casos).
O espanto diminui quando se recorda que as funções de investigar, acusar e julgar estão sendo aqui ilegalmente acumuladas nas mãos das próprias vítimas — que, como lembrado no último artigo, têm um forte viés de autosserviço. Tendo isto em vista, já não parece tão espantoso assim que violações menores sejam tratadas sob uma lupa, e que seja considerado justificado rasgar todo o ordenamento jurídico para persegui-las.
O espanto que continua intacto, no entanto, é que uma parcela tão grande do restante da opinião brasileira — que não seria, em tese, parte interessada — aplauda que esses atos sejam perpetrados contra seus concidadãos.
Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - Coluna na Gazeta do Povo - Ideias
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