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quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Cinco trilhões de dólares - Eugênio Bucci

O Estado de S.Paulo


O que produzem a Apple, a Amazon, o Google ou o Facebook para valerem tanto?

Em janeiro foi noticiado que as empresas Apple, Amazon, Alphabet (dona do Google), Microsoft e Facebook valiam, juntas, cinco trilhões de dólares. Em junho, quando a Apple sozinha atingiu o valor de US$ 1,5 trilhão, apenas quatro delas dariam conta de bater a marca dos US$ 5 trilhões (o Facebook ficava um pouquinho para trás).

Cinco trilhões de dólares!
Essa cifra é três vezes maior que o PIB brasileiro. Três vezes. Quer dizer: se nós, os 210 milhões de habitantes destas terras convertidas em jazigos, quiséssemos comprar a Apple, a Amazon, a Alphabet e a Microsoft, pelos preços de junho, teríamos de trabalhar por três anos sem descanso e não nos sobraria troco para o pão, para o aluguel e para os impostos. E mesmo assim poderíamos chegar no fim da jornada sem caixa para saldar a fatura, pois, enquanto as ações dessas companhias sobem sem parar, o PIB brasileiro afunda, junto com o PIB mundial. Lá de cima, incólumes e luminescentes, as big techs contemplam a peste, a fome, a violência, a miséria e a ruína.

Só o PIB da China e dos Estados Unidos superam a casa dos US$ 5 trilhões. Pense bem: o que produzem a Apple, a Amazon, o Google ou o Facebook para valerem tanto?

Se formos contentar-nos com as respostas oficiais, acreditaremos que o segredo de tamanha fortuna está na inovação tecnológica dessas marcas, na genialidade dos seus criadores e na pertinácia de seus CEOs. Acreditaremos que, graças a chips, bits e bytes, as big techs dominaram o e-mail, o e-commerce, o e-government e o e-scambau, deixando seus donos biliardários. Acreditaremos, enfim, que dinheiro não nasce em árvore, mas bem que brota em máquina.

Agora, se quisermos ir além das quimeras da carochinha, buscaremos explicações em teorias menos rasas, como aquela da “economia da atenção”. A tal “economia da atenção” consiste em mercadejar com os olhos dos consumidores. Primeiro, o negociante atrai a “atenção” alheia e, ato contínuo, vai vendê-la por aí – mas vai vendê-la (detalhe crucial) com zilhões de dados individualizados sobre cada um e cada uma que, no meio da massa, deposita seu olhar ansioso sobre as telas eletrônicas. Em resumo, os conglomerados da era digital elevaram o velho negócio do database marketing à enésima potência, com informações ultraprecisas sobre as pessoas, e desenvolveram técnicas neuronais que magnetizam os sentidos da plateia. O negócio deles é o extrativismo dos dados pessoais.

Isso aí: extrativismo virtual.
Na primeira semana de maio de 2017, a capa da revista The Economist anunciou que os dados pessoais eram o novo petróleo. Em plena era do Big Data, algoritmos e fórmulas insondáveis cruzam os dados e antecipam as partículas infinitesimais do humor e do destino dos bilhões de fregueses. Os dados não mentem jamais. Sabem se o cidadão vai desenvolver Alzheimer, e quando, sabem que ele relaxa com a voz de Morgan Freeman, sabem que massageia o lóbulo da orelha direita quando pensa em queijo do tipo Pont l’Évêque.

O “novo petróleo” teria sido o responsável pelos cinco trilhões e pela enorme reviravolta do mercado global, que fez o dinheiro mudar de mãos em duas décadas. Em 1998 as cinco empresas mais caras do mundo eram a GE, a Microsoft, a Shell, a Glaxo e a Coca-Cola. No grupo, quatro companhias eram fabricantes de coisas palpáveis (motores, eletrodomésticos, gasolina, fármacos, bebidas gasosas); só uma era uma empresa “de tecnologia”. Hoje, no pelotão dos conglomerados mais caros do mundo, todos se valem da tecnologia (um notebook ou um site de busca) para extrair e comercializar nossos dados pessoais.

Isto posto, e com todo o respeito à Economist, é preciso dizer que também essa explicação é insuficiente. Para entender de fato por que o valor de mercado das big techs subiu tanto é preciso levar em conta algo que as teorias correntes não costumam registrar. De meados do século 20 para cá, o capitalismo passa por uma estonteante mutação: as mercadorias corpóreas (coisas úteis) ficaram em segundo plano, enquanto a fabricação industrial de signos assumiu o centro da geração de valor. O capital virou um narrador, um contador de histórias, tanto que uma famosa marca de produtos esportivos pode muito bem terceirizar a fabricação de tênis de maratona, mas não pode abrir mão de controlar obsessivamente a gestão da marca e a publicidade.

Em sua mutação, o capitalismo aprendeu a confeccionar e a entregar, com imagens e palavras sintetizadas industrialmente, os dispositivos imaginários de que o sujeito precisa para aplacar o desejo. Isso é uma novidade. Por trás do negócio da extração dos dados existe outro negócio, mais determinante, que é a industrialização da linguagem. Hoje o capital trabalha para o desejo, não mais para a necessidade. Os conglomerados digitais dominaram a industrialização da linguagem (voltada para o desejo), monopolizaram o olhar do planeta e puseram o olhar do planeta para trabalhar a seu favor.

Nesse meio tempo, o mundo distanciou-se da razão e do espírito. Mas essa é outra conversa.

 Eugênio Bucci, jornalista, professor - O Estado de S.Paulo

domingo, 24 de novembro de 2019

Chegada do Google ao setor bancário assusta instituições tradicionais - VEJA

Por Lucas Cunha

Gigante da tecnologia anuncia a criação de uma conta-corrente; diferentemente das fintechs, a empresa já tem dinheiro e bilhões de usuários



“Se alguém me perguntar se temo as fintechs, eu digo que não. Tenho medo é das big techs” O alerta foi dado por Octavio de Lazari, presidente do Bradesco, durante o Fórum de Investimentos Brasil 2019, realizado em outubro. As startups do mercado financeiro podem até tirar o sono de banqueiros, como o próprio ex-CEO do Itaú Unibanco Roberto Setubal já admitiu, mas, na maioria das vezes, representam ameaças contornáveis pelos grandes bancos. Para compensar essas noites maldormidas, bastou o Itaú desembolsar 5,7 bilhões de reais uma fração dos 7,1 bilhões de reais que obteve de lucro líquido no último trimestre — para adquirir metade das ações da XP, a mais bem-sucedida fintech brasileira. Dinheiro, afinal, não é um problema para essas instituições. É a solução para incorporar inovações e clientes de concorrentes que possam sinalizar algum perigo a seu negócio. A situação muda de figura, porém, quando o entrante em seu mercado é um gigante da tecnologia que vale quase 1 trilhão de dólares. Bancos do mundo inteiro tremeram na semana passada, portanto, quando a Alphabet, empresa controladora do Google, anunciou o projeto Cache: uma conta-corrente que será acessada por meio do celular e vai oferecer a realização de transferências bancárias e a concessão de crédito a seus usuários.

E o Google não está sozinho. Amazon e Apple, ambas no seletíssimo clube do trilhão de dólares, e também o Facebook (“só” 560 bilhões de dólares em valor) têm à disposição ferramentas únicas para conquistar seu espaço no mercado financeiro. Todos possuem informações valiosíssimas sobre o comportamento e os hábitos financeiros de seus usuários, e uma capacidade técnica inigualável em inteligência artificial para aprimorar a efetividade do modelo de negócio e conectar centenas de milhões de pessoas em escala global — muitas delas fora do alcance dos bancos. E, como já fazem parte da vida dos usuários, tornam-se uma opção cômoda para quem tem aversão ao ambiente bancário, mesmo que on-line. “Em muitos mercados, a população está acostumada a usar o Google ou o Facebook regularmente, mas não tem nenhum relacionamento com as instituições tradicionais”, afirma Thad Peterson, analista sênior da consultoria americana Aite Group.

As armas das big techs proporcionam uma boa briga, mas, por enquanto, não garantem a vitória. O Facebook, por exemplo, já sofreu um revés e tanto recentemente, antes mesmo de lançar seu produto financeiro. A empresa anunciou uma parceria com mais de vinte companhias, entre elas MasterCard, Visa, PayPal e Mercado Pago, para lançar a própria criptomoeda: a libra. A reação dos bancos centrais de todo o mundo, inclusive o de seu país natal, os Estados Unidos, foi tão agressiva que os principais sócios no projeto abandonaram o barco. O público também se mostrou receoso, afinal a rede social já teve notórios problemas com vazamento de dados, sempre seguidos de desastradas tentativas de jogar a culpa em terceiros. “Há o temor de que a libra substitua as moedas emitidas pelos Estados, ameaçando, assim, a soberania monetária das nações com a privação do controle dos sistemas de pagamento vinculados ao dólar e da aplicação de sanções”, explica Katharina Pistor, professora de direito comparado na Universidade Columbia.

Em menor escala, a Apple encarou uma crise de imagem ao ter seu cartão de crédito, lançado em parceria com o banco Goldman Sachs, acusado de usar um algoritmo sexista por oferecer mais crédito a homens do que a mulheres com o mesmo perfil financeiro e agora está sob investigação do Departamento de Serviços Financeiros de Nova York. O próprio Google teve revelado um plano secreto denominado Project Nightingale, cujo objetivo era recolher e analisar dados de saúde sobre milhões de americanos. A coleta dessas informações teria sido feita sem o conhecimento dos pacientes.   A verdade é que se trata de um caminho sem volta. Mesmo que especialistas tenham suas desconfianças, todas as empresas citadas acalentam projetos para invadir o setor financeiro. Por outro lado, elas não são infalíveis. O Google, por exemplo, tentou inúmeras vezes lançar sua rede social e fracassou em todas elas. 

A Amazon ainda não conseguiu emplacar marcas próprias de produtos, mesmo dando um empurrãozinho e tanto a elas em seu algoritmo de vendas. “O fator-chave de sucesso para entrar no jogo as big techs já têm: grande quantidade de usuários. Mas isso não é garantia de que os empreendimentos serão bem-sucedidos”, afirma Paulo Furquim de Azevedo, coordenador do Centro de Estudos em Negócios do Insper.  

O barulho causado pelas big techs no setor financeiro ainda não é motivo para insônia, mas é bom os bancos ficarem de olhos abertos.