O Estado de S.Paulo
O que produzem a Apple, a Amazon, o Google ou o Facebook para valerem tanto?
Em janeiro foi noticiado que as empresas Apple, Amazon, Alphabet (dona
do Google), Microsoft e Facebook valiam, juntas, cinco trilhões de
dólares. Em junho, quando a Apple sozinha atingiu o valor de US$ 1,5
trilhão, apenas quatro delas dariam conta de bater a marca dos US$ 5
trilhões (o Facebook ficava um pouquinho para trás).
Cinco trilhões de dólares!
Essa cifra é três vezes maior que o PIB brasileiro. Três vezes. Quer
dizer: se nós, os 210 milhões de habitantes destas terras convertidas em
jazigos, quiséssemos comprar a Apple, a Amazon, a Alphabet e a
Microsoft, pelos preços de junho, teríamos de trabalhar por três anos
sem descanso e não nos sobraria troco para o pão, para o aluguel e para
os impostos. E mesmo assim poderíamos chegar no fim da jornada sem caixa
para saldar a fatura, pois, enquanto as ações dessas companhias sobem
sem parar, o PIB brasileiro afunda, junto com o PIB mundial. Lá de cima,
incólumes e luminescentes, as big techs contemplam a peste, a fome, a
violência, a miséria e a ruína.
Só o PIB da China e dos Estados Unidos superam a casa dos US$ 5
trilhões. Pense bem: o que produzem a Apple, a Amazon, o Google ou o
Facebook para valerem tanto?
Se formos contentar-nos com as respostas oficiais, acreditaremos que o
segredo de tamanha fortuna está na inovação tecnológica dessas marcas,
na genialidade dos seus criadores e na pertinácia de seus CEOs.
Acreditaremos que, graças a chips, bits e bytes, as big techs dominaram o
e-mail, o e-commerce, o e-government e o e-scambau, deixando seus donos
biliardários. Acreditaremos, enfim, que dinheiro não nasce em árvore,
mas bem que brota em máquina.
Agora, se quisermos ir além das quimeras da carochinha, buscaremos
explicações em teorias menos rasas, como aquela da “economia da
atenção”. A tal “economia da atenção” consiste em mercadejar com os
olhos dos consumidores. Primeiro, o negociante atrai a “atenção” alheia
e, ato contínuo, vai vendê-la por aí – mas vai vendê-la (detalhe
crucial) com zilhões de dados individualizados sobre cada um e cada uma
que, no meio da massa, deposita seu olhar ansioso sobre as telas
eletrônicas. Em resumo, os conglomerados da era digital elevaram o velho
negócio do database marketing à enésima potência, com informações
ultraprecisas sobre as pessoas, e desenvolveram técnicas neuronais que
magnetizam os sentidos da plateia. O negócio deles é o extrativismo dos
dados pessoais.
Isso aí: extrativismo virtual.
Na primeira semana de maio de 2017, a capa da revista The Economist
anunciou que os dados pessoais eram o novo petróleo. Em plena era do Big
Data, algoritmos e fórmulas insondáveis cruzam os dados e antecipam as
partículas infinitesimais do humor e do destino dos bilhões de
fregueses. Os dados não mentem jamais. Sabem se o cidadão vai
desenvolver Alzheimer, e quando, sabem que ele relaxa com a voz de
Morgan Freeman, sabem que massageia o lóbulo da orelha direita quando
pensa em queijo do tipo Pont l’Évêque.
O “novo petróleo” teria sido o responsável pelos cinco trilhões e pela
enorme reviravolta do mercado global, que fez o dinheiro mudar de mãos
em duas décadas. Em 1998 as cinco empresas mais caras do mundo eram a
GE, a Microsoft, a Shell, a Glaxo e a Coca-Cola. No grupo, quatro
companhias eram fabricantes de coisas palpáveis (motores,
eletrodomésticos, gasolina, fármacos, bebidas gasosas); só uma era uma
empresa “de tecnologia”. Hoje, no pelotão dos conglomerados mais caros
do mundo, todos se valem da tecnologia (um notebook ou um site de busca)
para extrair e comercializar nossos dados pessoais.
Isto posto, e com todo o respeito à Economist, é preciso dizer que
também essa explicação é insuficiente. Para entender de fato por que o
valor de mercado das big techs subiu tanto é preciso levar em conta algo
que as teorias correntes não costumam registrar. De meados do século 20
para cá, o capitalismo passa por uma estonteante mutação: as
mercadorias corpóreas (coisas úteis) ficaram em segundo plano, enquanto a
fabricação industrial de signos assumiu o centro da geração de valor. O
capital virou um narrador, um contador de histórias, tanto que uma
famosa marca de produtos esportivos pode muito bem terceirizar a
fabricação de tênis de maratona, mas não pode abrir mão de controlar
obsessivamente a gestão da marca e a publicidade.
Em sua mutação, o capitalismo aprendeu a confeccionar e a entregar, com
imagens e palavras sintetizadas industrialmente, os dispositivos
imaginários de que o sujeito precisa para aplacar o desejo. Isso é uma
novidade. Por trás do negócio da extração dos dados existe outro
negócio, mais determinante, que é a industrialização da linguagem. Hoje o
capital trabalha para o desejo, não mais para a necessidade. Os
conglomerados digitais dominaram a industrialização da linguagem
(voltada para o desejo), monopolizaram o olhar do planeta e puseram o
olhar do planeta para trabalhar a seu favor.
Nesse meio tempo, o mundo distanciou-se da razão e do espírito. Mas essa é outra conversa.
Eugênio Bucci, jornalista, professor - O Estado de S.Paulo
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