Morreu nesta sexta o bebê britânico
Charlie Gard, de apenas 11 meses. Ele era portador de uma doença rara e
incurável chamada “síndrome de miopatia mitocondrial”. Leva à perda da
força muscular progressiva e a danos cerebrais irreparáveis. A criança
estava internada no Hospital Great Ormond Street, em Londres, onde era
mantida viva coma a ajuda de aparelhos.
Estamos diante de um caso bárbaro,
absurdo, estupefaciente mesmo, de assoberbamento do Estado no confronto
com os direitos individuais, com o pátrio poder e com o direito das
famílias de fazer suas próprias escolhas. Por que afirmo isso? Os país de Charlie, Chris Gard e Connie
Yates, haviam conseguido apoio internacional, com o suporte do Vaticano e
do próprio governo americano, para transferi-lo para os EUA, onde seria
submetido a um tratamento experimental. Mas a corte suprema do Reino
Unido não permitiu. Atendeu, outrossim, à argumentação dos
especialistas, que atestavam a irreversibilidade das condições de saúde
de Charlie.
“E daí?”, pergunto eu. Sim, em certa
medida, Charlie se tornou uma questão pública. Não é desarrazoado que o
ente estatal se pergunte se é uma escolha certa investir recursos
públicos na manutenção de uma vida considerada vegetativa. E olhem que
mesmo essa indagação tem de ser encarada com o devido desconforto. É da
vida humana que falamos.
Mas não era o caso. Os pais de Charlie
haviam encontrado apoio para custear eles mesmos, por intermédio dessa
rede de solidariedade, a tentativa de salvar o filho. Por mais que não
se visse possibilidade de sucesso, o que posso dizer? O Estado não pode
ter o direito, que entendo natural, dos pais de tentar salvar um filho. A
ciência que se põe em defesa da morte é, por si mesma, um saber
pervertido. O aparato científico que reivindica o direito de matar
reivindica também o direito de decretar a morte de Deus, pondo-se ele
próprio como o ente supremo.
Repete-se, de forma ainda mais
degradante, o mesmo que se deu, nos EUA, em 2005, com Terri Schiavo, que
passou 15 anos numa cama de hospital, mantida viva com o auxílio de
aparelhos. O ex-marido, já com nova família constituída, recorreu à
Justiça reivindicando o desligamento dos instrumentos artificiais que a
mantinha viva. Os pais de Terri não queriam. Dispunham-se, às próprias
expensas, a manter aquilo que se chamava vida vegetativa.
A Justiça americana deu ganho de causa
ao marido. Para todos os efeitos, o casamento de ambos ainda estava em
vigência, e era ele o primeiro responsável. Pareceu-me já uma decisão
bárbara, mas, reconheça-se, havia ali ao menos uma questão que precedia a
simples escolha entre a morte e, ao menos, o direito de tentar a vida. Desta feita, não! Ninguém reivindicava
poderes legais sobre Charlie além dos país. Ou melhor: reivindicava,
sim! O Estado exigiu exercitar passo a chamar, então, de direito de
matar. O Estado resolveu ser Deus.
À época, escrevi um texto que ganhou
versão em várias línguas. Vocês sabem que não sou exatamente amado por
todo mundo, o que me conforta bastante. É quase um dever do jornalista
despertar alguns rancores. Nessa minha determinação de não ser um doce
de coco, já apanhei muito por isso e aquilo. E costumo apanhar mais, por
incrível que pareça, quando defendo a inviolabilidade da vida humana.
DE QUALQUER VIDA E EM QUALQUER ESTADO.
Relembro alguns trechos:
Vivemos os novos tempos
bárbaros, impostos, curiosamente, pelo triunfo da ciência e da razão. O
caso Terri Schiavo mobiliza e choca o mundo, dividindo radicalmente
opiniões, porque, de fato, estamos lidando com a única questão
filosófica verdadeiramente relevante – e não é o suicídio, como
pontificou Albert Camus, um bom literato disfarçado de filósofo do
pessimismo. A única questão filosófica relevante é a vida, ponto inicial
de qualquer outra consideração.
Tudo o mais que sabemos ou é
conhecimento (ou ignorância) de fenômenos da natureza ou é linguagem,
uma construção, portanto, tornada uma outra natureza. Sem a vida,
ficamos privados até da oportunidade de não saber. Do mundo natural
surgem os fatos, que se impõem; da linguagem, crenças, valores,
ideologias, religiões, novos mistérios. Cientistas, desde o Iluminismo,
querem-se também eles manifestação da natureza, quando, de fato,
integram o grupo da linguagem. Não são o fenômeno, mas apenas uma
interpretação dele. A ciência é um código, um conjunto organizado de
sinais. Quando muito, oferece uma leitura da realidade, jamais a
realidade ela-mesma.
(…)
Podemos e devemos contar com
o concurso da ciência para erguer edifícios, mudar o curso dos rios,
conter o avanço do mar, estudar a vida dos micro-organismos, desenvolver
a engenharia de materiais, recomendar que não consumamos bacon em
excesso para que as coronárias não entupam, mergulhar nos meandros na
nanotecnologia para encurtar o tempo das operações matemáticas,
transformar em vida abundante as potencialidades das células-tronco.
Tudo isso torna a vida mais fácil, mais longa, mais prazerosa, mais
decente. E, de fato, o conjunto desses conhecimentos diz-nos o quê? Só
expõe a nossa formidável ignorância pregressa e faz supor, quando menos
por analogia, o que nos falta saber de agora até um ponto qualquer,
aleatório, no futuro. À diferença do que supõe o racionalismo de
propaganda, cada novo avanço da ciência NÃO expõe a fraude da teologia
ou das religiões. Cada novo avanço da ciência o que expõe são os erros
pregressos da própria ciência.
(…)
Os argumentos que justificam
a interrupção do fornecimento de alimento à moça evidenciam uma
fantasmagoria verdadeiramente totalitária na mais importante democracia
do mundo. O Estado, com o concurso dos cientistas, arroga-se o direito
de decidir qual vida merece ser vivida, estabelecendo, pois, a partir
desse caso, quais seriam as condições mínimas aceitáveis. Até o Deus do
Velho Testamento aceitava recurso. Quem foi que deu a cientistas e
juízes tais direitos?
(…)
Proponho aqui uma questão
aos meus leitores: ainda que Terri fosse mesmo um vegetal, porque seus
pais e seu irmão não teriam direito de “cultivá-lo”? Por que os juízes
decidiram lhes arrancar do jardim da vida – sim, que, então, segundo
eles próprios, é vida, mesmo que vegetal – a rosa, a begônia ou o
jacinto de sua dor e de seu amor, de seu afeto e de sua tristeza, de seu
cuidado e de seu sofrimento? Esse caso me provoca mal-estar. A maioria
das pessoas com as quais converso acha tudo muito normal e prefere
malhar Bush. Já escrevi aqui algumas vezes que escolheria o catolicismo
como religião se ele tivesse me escolhido. Eu prefiro o mundo em que
toda a ciência seja considerada divina, desdobramento natural da Graça
para elevar a vida humana. O homem, criado à imagem e semelhança de Deus
– e, por isso, com a vida inviolável por qualquer outra força -, é uma
idéia que nos protege como espécie.
Mas alguns bárbaros do
direito e da ciência preferem ser, eles próprios, o Deus que renegam. A
morte de Terri Schiavo, nas condições em que se dá, nos expõe ao risco
do terror científico. Todo americano deve ter o direito, suponho, de
cultivar, se quiser, gerânios na janela. Seus pais deveriam pedir aos
juízes americanos que a filha fosse declarada, então, um gerânio, que
nenhuma lei impede que seja regado. Os que defendem a medida adotada,
mesmo entre nós, podem me mandar e-mails dizendo por que proibir os pais
de Terri de cultivar gerânios, podem me dizer por que ela deve morrer
seca, esturricada, como uma erva daninha.
Meu pai padeceu longamente de
um câncer, que depois se generalizou em metástases várias. Todo o meu
entendimento com a excelente equipe médica que o atendeu era para usar
as drogas disponíveis para amenizar-lhe a dor. A anestesia, esta, sim,
traz em si o sopro da divindade, vem nas asas dos anjos. A eutanásia é
só a voz suave do demônio. Falo por metáfora. Chamo aqui “demônio” a
tentação dos que pretendem assumir o lugar do absoluto por um golpe da
vontade, como se os assistisse “o” saber absoluto.
Meu pai já não podia mais se
comunicar, mas estava vivo. E, me garantiu o médico, Paulo Zago, não
sentia mais dor. Não sofria mais. Até seu último suspiro, que eu não
olvidaria esforços para retardar, construí e reconstruí teias de afetos e
de lembranças, caminhei pelos desvãos da memória, tentei entendê-lo
melhor e a mim mesmo. Queria me fazer, e talvez tenha conseguido, a
partir dali, um homem melhor. Meu pai estava vivo porque sua vida, mesmo
naquelas condições, vivia em mim, na minha irmã, na minha mãe, nos seus
netos, na generosa rede familiar que se criou, incluindo sobrinhos,
irmãos, cunhados, amigos, para protegê-lo e dignificá-lo.
Seu corpo ainda morno,
embora já não mais emitisse qualquer sinal de consciência, me acolhia e
me amparava, cobrava de mim entendimento. Até que não se dê o último
suspiro, não tem início o luto, e quem o determina é o inelutável, não
um togado arrogante ou um aprendiz desastrado de Deus. Uma vida, nem que
seja a de um aspargo, senhores juízes, não vive apenas em si mesma.
Existe na circunstância, no mistério dos sentimentos que mobiliza, numa
construção que não se esgota nas ciências biológicas ou jurídicas. O
assassinato de Terri Schiavo deveria nos ofender gravemente.
*
E assim deveria ser com Charlie Gard.
Devemos lutar por nosso direito de cultivar gerânios.