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segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Atos institucionais - Denis Lerrer Rosenfield

O Estado de S.Paulo

Questões centrais são trazidas à discussão, sem medo das patrulhas ideológicas da esquerda

A polêmica suscitada pelo deputado Eduardo Bolsonaro a propósito do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), respaldada depois pelo próprio ministro da Fazenda, é da maior gravidade por expor um pendor autoritário. Atos institucionais, como os que caracterizaram a ditadura militar de 1964, são derivados de uma ruptura institucional, a partir da qual um novo regime é estabelecido. Não são atos constitucionais, mas resultam da violência instaurada por um “golpe”, por uma “revolução”, ou qualquer outro nome que se queira dar. A questão reside em que são instrumentos jurídicos provenientes do uso da força, que rompe a ordem constitucional vigente. Dá para brincar com declarações desse tipo?
[Com a devida vênia ao ilustre Articulista, merecedor de todo o apreço deste escriba, peço permissão para esclarecer, através deste comentário - um modesto complemento ao exposto na continuidade da matéria aqui transcrita, - que o Movimento Revolucionário de 31 de março, foi, em linguagem mais sucinta, uma REVOLUÇÃO.

O  Movimento Revolucionário de 31 de março de 1964, chamado por alguns de golpe, por outros de contragolpe, outros chamam de ditadura, tem a denominação oficial de REVOLUÇÃO, o que realmente foi, resultando do MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO DE 31 DE MARÇO DE 1964, conforme de conclui, de forma indubitável, da leitura do Ato Institucional n° 1, de 9 de abril de 1964, especialmente o seu Preâmbulo,  editado pelo COMANDO SUPREMO DA REVOLUÇÃO, representado pela Junta Militar, composta pelos  Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, como segue:

Gen. Ex. ARTHUR DA COSTA E SILVA 
Tem. Brig. FRANCISCO DE ASSIS CORREIA DE MELLO 
Vice-Alm. AUGUSTO HAMANN RADEMAKER GRUNEWALD 

Além de explicitar toda a fundamentação das decisões tomadas por aquela Junta, deixa claro em um dos seus parágrafos,quem legitima quem, quando estabelece:
"...   Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação. ..."

Hoje tais documentos estão revogados, podem ser execrados, desautorizados, mas existiram e constam como documentos oficiais de livre acesso do público.]

Não dá para compreender o AI-5 sem remontarmos aos atos anteriores, em particular o AI-1. A perspectiva histórica é importante. O primeiro ato do regime militar foi resultado de uma tomada de poder por via da ruptura institucional e constitucional. A quebra da ordem jurídica situa-se fora da Constituição, que se torna subordinada ao ato de força e à sua nova legalidade, que passa então a vigorar.

Em 1964, primeiro foi produzida a ruptura, depois a nova legalidade, sob a forma do AI-1. Consumada a tomada do poder, o jurista Francisco Campos, homem culto e competente, com longa ficha de serviços prestados ao presidente Getúlio Vargas, tendo redigido a Constituição de 1937, foi chamado pelo ministro da Guerra, Costa e Silva, para dar forma jurídica ao novo regime. Após uma conversa entre ambos, Francisco Campos sugeriu que não era necessário seguir a Constituição de então, pela singela razão de que ela não estava mais sendo cumprida, de qualquer maneira; uma alternativa legal seria mais condizente com a conquista do poder.

Segundo ele, o Brasil estava sendo conduzido por um novo governo de tipo revolucionário, que, como tal, seria fonte originária de uma nova legalidade. O novo poder era a origem mesma de uma nova legislação, não se subordinando a qualquer outra força ou posição constitucional. Ele se justificaria por si mesmo, bastando tão somente conferir-lhe um novo ordenamento jurídico. O jurista tirou seu paletó, ocupa uma escrivaninha e ao amanhecer do outro dia o Ato Institucional n.º 1 estava redigido, com a colaboração de outro jurista, Carlos Medeiros Silva. O governo revolucionário passou a guiar-se por esse ato institucional e pelos outros atos que se seguiram.

O AI-5 foi ordenado e promulgado pelo mesmo general Costa e Silva, que nesse meio tempo se havia tornado presidente. O seu caráter “revolucionário”, de fonte geradora de uma nova legalidade, foi marcante. O habeas corpus foi suspenso para crimes considerados políticos, o presidente podia suspender o Congresso, o que logo foi feito, passando a legislar ele mesmo por decretos-leis, a censura prévia foi instaurada em jornais, revistas e outros meios de comunicação, o presidente podia intervir em Estados e municípios, entre outras medidas.

Logo, quando autoridades propõem um ato institucional para conter uma eventual – e imaginária sublevação popular à maneira das manifestações de rua no Chile, eles estão “brincando” com uma ruptura institucional. Note-se que eles não defendem a manutenção da ordem por via constitucional, dado que nossa Carta Magna contempla instrumentos desse tipo, como a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o estado de sítio e o estado de defesa nacional. O primeiro, aliás, amplamente utilizado pelos governos anteriores na manutenção da ordem pública para combater a criminalidade, sendo o exemplo do Estado do Rio de Janeiro o mais conhecido. Observe-se ainda que todos eles, sobretudo os dois últimos, exigem trâmites constitucionais que pressupõem sua aprovação pelo Legislativo.

Consequentemente, a pergunta que se coloca é quem assumiria o poder gerador de novas leis, o da nova legalidade. As Forças Armadas têm mantido rigorosa postura constitucional, defendendo a democracia em nosso país. Não há nenhuma sinalização anunciando uma nova atitude.  O seu desempenho é estritamente profissional, elas têm sido exemplares na defesa das instituições republicanas. Se não são elas candidatas a artífices da nova “revolução”, só sobrariam os que defendem a tal de “revolução cultural”, o círculo mais próximo do presidente. Isto é, o País passaria a ser governado pela ala ideológica do governo, fazendo tábula rasa do Congresso, das oposições, da liberdade de imprensa, concentrando todo o poder no Executivo e em seu grupo dominante.

A reação a tais declarações foi de tal monta que um recuo imediatamente se fez necessário. Não por virtude, mas pela pequena adesão suscitada, confinada aos núcleos digitais do bolsonarismo. Sem apoio, evidentemente, nenhum “ato institucional” seria possível, nem na opinião pública, nem na ação dos militares. Na verdade, foi um tiro no pé, expondo o vigor das instituições democráticas em nosso país.  O problema, porém, persiste. O mesmo governo que alberga posições radicais e antidemocráticas desse tipo é o que apresenta um arrojado programa de reforma do Estado mediante várias propostas de emenda constitucional e projetos de lei, trazendo à tona uma agenda liberal. Questões centrais são trazidas à discussão, sem medo das patrulhas ideológicas da esquerda. Se tudo o que está sendo proposto for aprovado pelo Congresso, estaríamos diante de uma verdadeira “revolução”, ao reconfigurar as relações entre a intervenção estatal e a economia baseada em relações concorrenciais, e não de “compadrio”.

O risco, porém, consiste em que a “revolução cultural” pode terminar por contaminar as transformações liberais. Em muito ajudaria o País o presidente Bolsonaro tomar uma decisão, posicionando-se firmemente pelas transformações econômicas e pelo redesenho do Estado, imprescindíveis para todos os cidadãos. A permanência da tensão entre ambas só ajuda os que pretendem manter o status quo.

Denis Lerrer RosenfieldProfessor de filosofia - O Estado de S. Paulo


sexta-feira, 8 de março de 2019

Bolsonaro reforça compromisso com militares em hora difícil

Alvo de críticas em início de governo tumultuado, presidente reacende controvérsia sobre Forças Armadas

Esta não foi a primeira vez que Jair Bolsonaro procurou valorizar as Forças Armadas como um dos pilares da democracia no Brasil, mas foi a primeira desde que se tornaram evidentes os sinais de desconforto entre os militares com o tumulto dos seus primeiros meses no poder. As declarações do presidente, durante cerimônia do Corpo de Fuzileiros Navais, causaram controvérsia por causa das três palavras que ele escolheu para encerrar uma frase. "Isso, democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Força Armada assim o quer", afirmou Bolsonaro.
Dito assim, foi como se ele sugerisse que a continuidade do regime democrático no país dependesse da tutela dos militares, e não da vontade popular ou do funcionamento das instituições cujo papel é definido pela Constituição. [saber mais, clique aqui.]
No fim do dia, numa tentativa de esclarecer o significado da declaração durante pronunciamento ao vivo nas redes sociais, o presidente disse que os brasileiros devem a democracia e a liberdade às Forças Armadas e acrescentou que elas "sempre estiveram ao lado" desses dois valores. Bolsonaro apareceu na internet ladeado por dois militares, o general Otávio Santana do Rêgo Barros, seu porta-voz, e o ministro que chefia o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, que é general da reserva. Ambos tiveram a chance de falar durante o pronunciamento do chefe. Heleno afirmou que os críticos do governo distorceram as declarações do presidente, como se ele tivesse caracterizado a democracia como "um presente dos militares para os civis". Mas era exatamente o que Bolsonaro tinha feito segundos antes, à sua direita, ao dizer que o Brasil deve sua democracia e sua liberdade aos militares.
Heleno lembrou então que a Constituição inclui entre as atribuições das Forças Armadas a manutenção da lei e da ordem interna, disse que elas são um "fator fundamental" em qualquer regime político e citou Cuba e Venezuela como exemplos de países em que ditadores sobreviveram por contar com apoio militar. De acordo com o artigo 142 da Constituição, as Forças Armadas brasileiras tem como atribuições a defesa do país, a "garantia dos poderes constitucionais" e, se convocadas por um dos três Poderes, a garantia "da lei e da ordem". [alguns comentaristas estão 'criando'  na CF, a suposta necessidade da concordância dos três poderes, o que não representa a verdade;
o texto é claro: "...
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."
Com um detalhe: As FF AA são organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República.] É com base nesse dispositivo que os militares foram chamados a participar de atividades de natureza policial em diversos momentos nos últimos anos, como durante a intervenção decretada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) na segurança do Rio.
Mas muitos seguidores de Bolsonaro acreditam que o artigo 142 também poderia ser usado para justificar uma intervenção militar na política, e até o vice de Bolsonaro, o general Hamilton Mourão, admitiu essa possibilidade numa entrevista durante a campanha eleitoral do ano passado. Segundo Mourão, que hoje é visto em toda parte como uma força de moderação dos excessos bolsonaristas, o texto constitucional permitiria que o próprio presidente desse um autogolpe, convocando as Forças Armadas para garantir os Poderes numa situação extrema que definiu simplesmente como anarquia. "Os militares supõem que a Constituição lhes dá esse papel de guardião da democracia, mas é um equívoco", diz o historiador Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "Bolsonaro expressou esse sentimento com suas declarações." [mais um especialista dizendo o que os adversários do governo Bolsonaro gostam de ouvir.
O Comando Supremo é do presidente da República e a hierarquia e disciplina sempre estarão presente nas Forças Armadas.
Se o artigo 142 foi, segundo o especialista, uma imposição dos militares, o fato é que, imposto ou não,  ele está em plena vigência.]
Ele aponta a redação do artigo 142 como uma imposição dos militares aos parlamentares que escreveram a Constituição de 1988, uma das concessões feitas pelos políticos para garantir a suavidade da transição para a democracia após o fim da ditadura inaugurada pelo golpe de 1964. Capitão reformado do Exército, que se afastou da corporação para entrar na política após um episódio de indisciplina, Bolsonaro sempre foi visto com desconfiança pela cúpula das Forças Armadas, mas conquistou seu apoio na reta final da campanha e tem feito de tudo para preservá-lo.
Para Daniel Aarão Reis Filho, da Universidade Federal Fluminense, as dificuldades encontradas pelo presidente no início do governo e a clareza com que militares como Mourão têm exposto suas diferenças com ele levaram o presidente a procurar reforçar seus laços com os antigos companheiros de farda."Suas declarações têm o sentido de reafirmar os compromissos que ele firmou com a cúpula das Forças Armadas, numa hora difícil em que ele se vê alvo de críticas e precisa manter uma base de apoio que tem muito prestígio na sociedade", diz Aarão. "Isso não quer dizer que esses laços vão durar a vida inteira, porque vai depender do que ele conseguirá realizar no governo."
 

Ricardo Baltasar - Folha de S. Paulo