Questões centrais são trazidas à discussão, sem medo das patrulhas ideológicas da esquerda
A polêmica suscitada pelo deputado Eduardo Bolsonaro a propósito do Ato
Institucional n.º 5 (AI-5), respaldada depois pelo próprio ministro da
Fazenda, é da maior gravidade por expor um pendor autoritário. Atos
institucionais, como os que caracterizaram a ditadura militar de 1964,
são derivados de uma ruptura institucional, a partir da qual um novo
regime é estabelecido. Não são atos constitucionais, mas resultam da
violência instaurada por um “golpe”, por uma “revolução”, ou qualquer
outro nome que se queira dar. A questão reside em que são instrumentos jurídicos provenientes do uso
da força, que rompe a ordem constitucional vigente. Dá para brincar com
declarações desse tipo?
[Com a devida vênia ao ilustre Articulista, merecedor de todo o apreço deste escriba, peço permissão para esclarecer, através deste comentário - um modesto complemento ao exposto na continuidade da matéria aqui transcrita, - que o Movimento Revolucionário de 31 de março, foi, em linguagem mais sucinta, uma REVOLUÇÃO.
O Movimento Revolucionário de 31 de março de 1964, chamado por alguns de golpe, por outros de contragolpe, outros chamam de ditadura, tem a denominação oficial de REVOLUÇÃO, o que realmente foi, resultando do MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO DE 31 DE MARÇO DE 1964, conforme de conclui, de forma indubitável, da leitura do Ato Institucional n° 1, de 9 de abril de 1964, especialmente o seu Preâmbulo, editado pelo COMANDO SUPREMO DA REVOLUÇÃO, representado pela Junta Militar, composta pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, como segue:
Gen. Ex. ARTHUR DA COSTA E SILVA
Tem. Brig. FRANCISCO DE ASSIS CORREIA DE MELLO
Vice-Alm. AUGUSTO HAMANN RADEMAKER GRUNEWALD
Além de explicitar toda a fundamentação das decisões tomadas por aquela Junta, deixa claro em um dos seus parágrafos,quem legitima quem, quando estabelece:
"... Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação. ..."
Hoje tais documentos estão revogados, podem ser execrados, desautorizados, mas existiram e constam como documentos oficiais de livre acesso do público.]
Não dá para compreender o AI-5 sem remontarmos aos atos anteriores, em
particular o AI-1. A perspectiva histórica é importante. O primeiro ato
do regime militar foi resultado de uma tomada de poder por via da
ruptura institucional e constitucional. A quebra da ordem jurídica
situa-se fora da Constituição, que se torna subordinada ao ato de força e
à sua nova legalidade, que passa então a vigorar.
Em 1964, primeiro foi produzida a ruptura, depois a nova legalidade, sob
a forma do AI-1. Consumada a tomada do poder, o jurista Francisco
Campos, homem culto e competente, com longa ficha de serviços prestados
ao presidente Getúlio Vargas, tendo redigido a Constituição de 1937, foi
chamado pelo ministro da Guerra, Costa e Silva, para dar forma jurídica
ao novo regime. Após uma conversa entre ambos, Francisco Campos sugeriu
que não era necessário seguir a Constituição de então, pela singela
razão de que ela não estava mais sendo cumprida, de qualquer maneira;
uma alternativa legal seria mais condizente com a conquista do poder.
Segundo ele, o Brasil estava sendo conduzido por um novo governo de tipo
revolucionário, que, como tal, seria fonte originária de uma nova
legalidade. O novo poder era a origem mesma de uma nova legislação, não
se subordinando a qualquer outra força ou posição constitucional. Ele se
justificaria por si mesmo, bastando tão somente conferir-lhe um novo
ordenamento jurídico. O jurista tirou seu paletó, ocupa uma escrivaninha e ao amanhecer do
outro dia o Ato Institucional n.º 1 estava redigido, com a colaboração
de outro jurista, Carlos Medeiros Silva. O governo revolucionário passou
a guiar-se por esse ato institucional e pelos outros atos que se
seguiram.
O AI-5 foi ordenado e promulgado pelo mesmo general Costa e Silva, que
nesse meio tempo se havia tornado presidente. O seu caráter
“revolucionário”, de fonte geradora de uma nova legalidade, foi
marcante. O habeas corpus foi suspenso para crimes considerados
políticos, o presidente podia suspender o Congresso, o que logo foi
feito, passando a legislar ele mesmo por decretos-leis, a censura prévia
foi instaurada em jornais, revistas e outros meios de comunicação, o
presidente podia intervir em Estados e municípios, entre outras medidas.
Logo, quando autoridades propõem um ato institucional para conter uma
eventual – e imaginária – sublevação popular à maneira das manifestações
de rua no Chile, eles estão “brincando” com uma ruptura institucional.
Note-se que eles não defendem a manutenção da ordem por via
constitucional, dado que nossa Carta Magna contempla instrumentos desse
tipo, como a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o estado de sítio e o
estado de defesa nacional. O primeiro, aliás, amplamente utilizado pelos
governos anteriores na manutenção da ordem pública para combater a
criminalidade, sendo o exemplo do Estado do Rio de Janeiro o mais
conhecido. Observe-se ainda que todos eles, sobretudo os dois últimos,
exigem trâmites constitucionais que pressupõem sua aprovação pelo
Legislativo.
Consequentemente, a pergunta que se coloca é quem assumiria o poder
gerador de novas leis, o da nova legalidade. As Forças Armadas têm
mantido rigorosa postura constitucional, defendendo a democracia em
nosso país. Não há nenhuma sinalização anunciando uma nova atitude. O seu desempenho é estritamente profissional, elas têm sido exemplares
na defesa das instituições republicanas. Se não são elas candidatas a
artífices da nova “revolução”, só sobrariam os que defendem a tal de
“revolução cultural”, o círculo mais próximo do presidente. Isto é, o
País passaria a ser governado pela ala ideológica do governo, fazendo
tábula rasa do Congresso, das oposições, da liberdade de imprensa,
concentrando todo o poder no Executivo e em seu grupo dominante.
A reação a tais declarações foi de tal monta que um recuo imediatamente
se fez necessário. Não por virtude, mas pela pequena adesão suscitada,
confinada aos núcleos digitais do bolsonarismo. Sem apoio,
evidentemente, nenhum “ato institucional” seria possível, nem na opinião
pública, nem na ação dos militares. Na verdade, foi um tiro no pé,
expondo o vigor das instituições democráticas em nosso país. O problema, porém, persiste. O mesmo governo que alberga posições
radicais e antidemocráticas desse tipo é o que apresenta um arrojado
programa de reforma do Estado mediante várias propostas de emenda
constitucional e projetos de lei, trazendo à tona uma agenda liberal.
Questões centrais são trazidas à discussão, sem medo das patrulhas
ideológicas da esquerda. Se tudo o que está sendo proposto for aprovado
pelo Congresso, estaríamos diante de uma verdadeira “revolução”, ao
reconfigurar as relações entre a intervenção estatal e a economia
baseada em relações concorrenciais, e não de “compadrio”.
O risco, porém, consiste em que a “revolução cultural” pode terminar por
contaminar as transformações liberais. Em muito ajudaria o País o
presidente Bolsonaro tomar uma decisão, posicionando-se firmemente pelas
transformações econômicas e pelo redesenho do Estado, imprescindíveis
para todos os cidadãos. A permanência da tensão entre ambas só ajuda os
que pretendem manter o status quo.