O golpe de Estado que depôs o governo de Myanmar há uma semana e levou de volta à prisão a ativista e Prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi devolveu o país à lista dos regimes autoritários depois de apenas uma década de democracia (e duas eleições livres). Myanmar só é exceção pela forma do retrocesso: um golpe militar clássico, não o encolhimento gradual de instituições se curvando a autocratas, como na Venezuela, Rússia ou Hungria. O resultado é idêntico, uma democracia a menos, tendência resumida pelo cientista político Larry Diamond na feliz expressão “recessão democrática”.
Os últimos dois relatórios que diagnosticam o estado da democracia no planeta constatam que a pandemia deu oportunidade para ataques aos direitos civis e liberdades individuais. É o caso da Bielorrússia, onde Alexander Lukashenko ainda mantém controle absoluto, apesar dos protestos desde as eleições contestadas de agosto. Ou da China, que endureceu a vigilância sobre os cidadãos e a perseguição aos uigures em Xinjiang. Ou ainda do Sri Lanka, onde o premiê Mahinda Rajapaksa endureceu a agenda autoritária nos últimos seis meses.
“A pandemia de Covid-19 está exacerbando os 14 anos consecutivos de declínio na liberdade”, afirma o relatório da Freedom House lançado em janeiro. Dos 192 países avaliados pela organização, houve declínio da democracia e dos direitos humanos em 80. O índice de democracia global da Economist Intelligence Unit (EIU), publicado na última quarta-feira, corrobora a conclusão. A nota média atingiu o nível mais baixo desde que a avaliação foi criada, em 2006: 5,37. Dos 167 países avaliados pela EIU, a nota caiu em 116. Apenas 23, correspondentes a 8,4% da população global, podem ser considerados democracias plenas.
“O resultado de 2020 ocorreu em boa medida — embora não apenas — por causa das restrições impostas por governos às liberdades individuais como resposta à pandemia do coronavírus”, afirma a EIU. “A crise da governança democrática, tendo começado muito antes da pandemia, deverá continuar depois que a crise sanitária arrefecer, pois as leis e normas que têm sido implantadas serão difíceis de revogar”, diz a Freedom House.
O avanço do autoritarismo não se restringe mais a casos contumazes como Rússia, China, Irã ou Venezuela. A invasão do Capitólio em Washington mostra que nem a democracia mais longeva do planeta está a salvo. E nem tudo é declínio lento e gradual, como mostra o golpe em Myanmar. Nesses dois casos, o pretexto para a violência foi idêntico: acusações fajutas de fraude eleitoral. Só não deu certo nos Estados Unidos, porque as instituições americanas são mais robustas.
No Brasil, os militares têm tradição de apoiar rupturas ao longo da história. O presidente Jair Bolsonaro vive fazendo acusações falsas sobre o sistema eleitoral e já insinuou que aqui poderá ser “pior” que nos Estados Unidos se ele perder em 2022. Para preservar nossa democracia, será preciso ficar de olho.
Opinião - O Globo