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segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Cenas de uma distopia - Revista Oeste

Gabriel de Arruda Castro

Durante uma semana, o tenista número 1 do mundo foi detido, exposto à execração pública e impedido de exercer sua profissão 

Quando os primeiros casos de covid-19 surgiram, na China, há dois anos, o mundo assistiu espantado às medidas radicais adotadas pelo regime comunista, herdeiro de um longo histórico de coletivismo e abuso estatal: em nome da saúde pública, as autoridades chinesas não hesitaram em trancar as pessoas em casa, fechar indústrias e escolas e restringir severamente as viagens internas. 
Pareciam cenas de uma distopia. Mas, com uma velocidade estonteante, medidas semelhantes passaram a ser adotadas por países que, até então, eram tidos como exemplos de respeito às liberdades individuais. E, como o caso do tenista sérvio Novak Djokovic deixou claro na última semana, a Austrália talvez seja um dos exemplos mais extremos dessa mudança.

Em uma escala de 0 a 100, o índice da Freedom House mais respeitado termômetro da democracia no mundo dá uma nota 97 à Austrália (a da Suíça é 96 e a dos Estados Unidos, 84). O Brasil aparece com 74 e a China, com 9). É de esperar que, em uma democracia praticamente perfeita como a australiana, direitos individuais básicos sejam respeitados. Mas esta não é a realidade em 2022. Durante uma semana, o tenista número 1 do mundo foi detido, exposto à execração pública e impedido de exercer sua profissão. Tudo porque, plenamente saudável e aos 34 anos de idade, optou por não tomar (ainda) a vacina contra a covid-19.

Djokovic nasceu na Iugoslávia comunista. No livro em que conta sua trajetória, ele descreve como, desde cedo, desenvolveu um ceticismo em relação às autoridades — de qualquer tipo. A lógica, na visão dele, se aplica às grandes indústrias farmacêuticas. Adepto de uma dieta com zero glúten e de métodos pouco convencionais para a manutenção da saúde, o sérvio costuma rejeitar medicamentos e tratamentos que enxerga como não naturais. A postura dele pode ser debatível do ponto de vista da medicina, mas não é um crime. Ou não deveria ser.

O calvário de Djokovic começou logo após ele desembarcar na Austrália, no dia 6 de janeiro. Àquela altura, havia obtido uma autorização dos organizadores do Aberto da Austrália, um dos torneios mais importantes do mundo. O documento garantia a ele o direito de participar do torneio, apesar da falta de um comprovante de vacinação. O sérvio tinha exames mostrando ter contraído a covid-19 (duas vezes), o que lhe assegurava uma imunidade natural ao vírus.

O Aberto da Austrália é o torneio mais importante do ano para Djokovic. Dos quatro principais campeonatos de tênis do planeta (chamados de Grand Slam), a competição australiana é aquela em que o sérvio tem mais conquistas: nove, inclusive os troféus de 2019, 2020 e 2021. Ninguém possui mais títulos do torneio do que ele. Esta edição seria ainda mais especial para o atleta. Uma vitória em 2022 tornaria Djokovic o recordista mundial em títulos de Grand Slam, à frente de Rafael Nadal e Roger Federer. Hoje, os três possuem 20 troféus do tipo.

Ao chegar ao aeroporto, na madrugada de 6 de janeiro, entretanto, Djokovic teve uma surpresa: sua entrada no país fora negada por causa da ausência do comprovante de vacinação. Como a chegada aconteceu pouco depois das 5 horas, ele pediu mais tempo para consultar sua equipe e entrar em contato com os organizadores do torneio. Em princípio, os oficiais australianos concordaram em esperar até as 8h30. Entretanto, as autoridades australianas mudaram de ideia rapidamente. Por volta das 6h15, Djokovic foi informado de que uma decisão final já havia sido tomada. Ele insistiu em apelar. E, enquanto aguardava o recurso, foi obrigado a ficar em um hotel usado pelo governo para manter imigrantes ilegais sob vigilância enquanto decide se concede a eles o direito de permanecer no país. O tenista passou quatro noites no Park Hotel, em Melbourne — uma espécie de centro de detenção que já vinha sendo alvo de queixas por causa das más condições. No fim de dezembro, um imigrante iraquiano publicou uma foto que mostra larvas de insetos na comida servida no hotel.

Na quarta-feira (12), o tenista finalmente obteve uma vitória na Justiça. O juiz responsável pelo caso considerou que o tenista não teve direito a defesa e ordenou que ele fosse liberado. “Apesar de tudo que aconteceu, quero permanecer e tentar competir no Aberto da Austrália. Continuo focado nisso”, afirmou o tenista. Ainda assim, o governo cogita revogar (novamente) o visto de Djokovic, expulsá-lo do país e impedi-lo de voltar à Austrália por três anos. Tudo em nome da saúde pública. Se isso acontecer, Djokovic terá 38 anos na próxima vez em que poderá jogar o Aberto da Austrália.

Durante sua batalha contra o governo australiano, o tenista recebeu apoio de autoridades sérvias e de fãs — alguns dos quais protestaram na porta do hotel-prisão. O tenista também obteve a solidariedade de um ídolo australiano: Kelly Slater, o maior campeão da história do surfe. “Talvez a síndrome de Estocolmo agora possa mudar seu nome para síndrome de Melbourne/Austrália”, escreveu Slater, ao criticar o tratamento dado ao sérvio.

A Austrália ganhou as manchetes por causa da queda de braço com Djokovic, mas os exemplos de abusos do poder têm se multiplicado

Para o infectologista Francisco Cardoso, as regras do governo australiano não fazem sentido. “A vacina que eles estão exigindo para o cidadão entrar no país não bloqueia a transmissão”, disse. “Se ele já teve covid e apresentou um teste negativo, isso dá muito mais do que fidedignidade de que esse paciente não está carregando o vírus do que um mero passaporte de vacina. Claramente, há o uso do pretexto vacinal para implantar uma política de controle muito restrita.”

Se há algo de positivo a ser dito sobre a postura do governo australiano, é o fato de que não há discriminação: tanto estrangeiros quanto nativos são tratados com o mesmo rigor exagerado e descabido. Cidadãos da Austrália que não estejam vacinados estão impedidos de deixar o país livremente. Caso planejem viajar para o exterior, precisam solicitar uma autorização especial. E nada garante que vão obtê-la: viagens a turismo, por exemplo, não são permitidas.

Abusos cada vez mais comuns
A Austrália ganhou as manchetes por causa da queda de braço com Djokovic, mas os exemplos de abusos do poder estatal têm se multiplicado. Países com um longo histórico de respeito às liberdades individuais se tornaram mais parecidos com a China, onde um sistema de “crédito social” pune cidadãos que não seguem à risca as diretrizes do Partido Comunista.

Na cidade de Nova Iorque, por exemplo, não é preciso mostrar nenhum documento ao votar, mas crianças de 5 anos de idade não podem entrar em restaurantes nem em cinemas se não tiverem comprovante de vacinação. Na cidade, hospitais públicos e privados demitiram centenas de médicos e enfermeiras que não tomaram a vacina, justamente no momento em que os hospitais precisam de reforço no atendimento.

Em Quebec, no Canadá, não vacinados estão proibidos de comprar álcool (e maconha, que é legal na Província canadense). Agora, o governo também estuda impor uma taxa sobre não vacinados. A África do Sul, por sua vez, construiu campos de internação para os quais são levados não apenas pacientes detectados com o vírus, mas aqueles que tiveram contato com algum infectado pela covid-19.

Outro direito considerado intocável nas democracias ocidentais tem sido ignorado: a liberdade religiosa. No Canadá, o pastor Artur Pawlowski foi preso porque sua igreja não cumpriu as draconianas regras de distanciamento social. Em Louisville, no Estado americano de Kentucky, o prefeito chegou a proibir não apenas a realização de cultos e missas dentro das igrejas, mas também a realização de cerimônias religiosas do tipo drive-in, em que as pessoas ficam dentro de seus carros.

O Brasil não é exceção. O governador da Bahia, Rui Costa (PT), afirmou que pretende tornar a vacinação obrigatória para a inscrição em concursos públicos do Estado. No Tocantins, um projeto de lei em tramitação também propõe a obrigatoriedade em concursos estaduais. 
A liberdade de culto também foi colocada em xeque. 
E nem mesmo as igrejas que cancelaram as celebrações presenciais estão a salvo. No ano passado, uma missa transmitida pela internet em uma igreja de Duartina (SP) foi interrompida por fiscais da prefeitura, apesar do templo vazio. O mesmo havia acontecido em Poços de Caldas (MG) meses antes.

Mas um exemplo ainda mais significativo, e mais recente, veio do Supremo Tribunal Federal. Em uma medida inédita, o STF decidiu no mês passado que brasileiros sem vacinação não podem voltar ao país, a não ser que passem por um período de quarentena. O direito de retorno à terra natal, assegurado pela Constituição e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi relativizado.

Conforme a variante Ômicron se espalha, o padrão de abusos aos direitos individuais dá poucas demonstrações de que vai arrefecer. A distopia chinesa se tornou o cotidiano de muitos países que, até pouco tempo atrás, se orgulhavam de respeitar os direitos humanos fundamentais. Anos atrás, o canal de TV da National Geographic produziu uma série que, em português, ganhou o título de Férias na Prisão. Cada episódio contava uma história — e muitos deles podem ser resumidos desta forma: estrangeiros incautos viajam para um país de Terceiro Mundo e acabam em apuros por causa de uma acusação falsa ou de uma lei absurda que eles não faziam ideia de que pudesse existir. [um dos ministros do STF, nos parece que o Barroso, pretendeu criar no Brasil a categoria de brasileiros exilados em aeroportos brasileiros. Recuou, já que certamente um dos seus assessores alertou para a mancada.]  O caso de Djokovic talvez inspire os produtores a filmar uma nova temporada, agora em novas locações.

Leia também “Um basta na pandemia” 

Gabriel de Arruda Castro, colunista - Revista Oeste


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Golpe em Myanmar alerta para declínio da democracia no mundo - O Globo

Opinião

O golpe de Estado que depôs o governo de Myanmar há uma semana e levou de volta à prisão a ativista e Prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi devolveu o país à lista dos regimes autoritários depois de apenas uma década de democracia (e duas eleições livres). Myanmar só é exceção pela forma do retrocesso: um golpe militar clássico, não o encolhimento gradual de instituições se curvando a autocratas, como na Venezuela, Rússia ou Hungria. O resultado é idêntico, uma democracia a menos, tendência resumida pelo cientista político Larry Diamond na feliz expressão “recessão democrática”.

[Perguntas que precisam de respostas:
- Será que o declínio da democracia - no mundo; em 167 países  avaliados houve queda em 116 e apenas 8,4% da população global vivem na democracia plena - não decorre, digamos, da 'fadiga' do sistema?
A prodigalidade na distribuição de Prêmio Nobel da Paz - qualquer um recebe (até o presidiário Lula foi cotado, e outros com a mesma insignificância e falta de méritos  receberam ou foram indicados) basta se dizer ativista de alguma coisa - não aponta as falhas na avaliação de quem deve ser indicado? ]

Os últimos dois relatórios que diagnosticam o estado da democracia no planeta constatam que a pandemia deu oportunidade para ataques aos direitos civis e liberdades individuais. É o caso da Bielorrússia, onde Alexander Lukashenko ainda mantém controle absoluto, apesar dos protestos desde as eleições contestadas de agosto. Ou da China, que endureceu a vigilância sobre os cidadãos e a perseguição aos uigures em Xinjiang. Ou ainda do Sri Lanka, onde o premiê Mahinda Rajapaksa endureceu a agenda autoritária nos últimos seis meses.

“A pandemia de Covid-19 está exacerbando os 14 anos consecutivos de declínio na liberdade”, afirma o relatório da Freedom House lançado em janeiro. Dos 192 países avaliados pela organização, houve declínio da democracia e dos direitos humanos em 80. O índice de democracia global da Economist Intelligence Unit (EIU), publicado na última quarta-feira, corrobora a conclusão. A nota média atingiu o nível mais baixo desde que a avaliação foi criada, em 2006: 5,37. Dos 167 países avaliados pela EIU, a nota caiu em 116. Apenas 23, correspondentes a 8,4% da população global, podem ser considerados democracias plenas.

“O resultado de 2020 ocorreu em boa medida — embora não apenas — por causa das restrições impostas por governos às liberdades individuais como resposta à pandemia do coronavírus”, afirma a EIU. “A crise da governança democrática, tendo começado muito antes da pandemia, deverá continuar depois que a crise sanitária arrefecer, pois as leis e normas que têm sido implantadas serão difíceis de revogar”, diz a Freedom House.

O avanço do autoritarismo não se restringe mais a casos contumazes como Rússia, China, Irã ou Venezuela. A invasão do Capitólio em Washington mostra que nem a democracia mais longeva do planeta está a salvo. E nem tudo é declínio lento e gradual, como mostra o golpe em Myanmar. Nesses dois casos, o pretexto para a violência foi idêntico: acusações fajutas de fraude eleitoral. Só não deu certo nos Estados Unidos, porque as instituições americanas são mais robustas.

No Brasil, os militares têm tradição de apoiar rupturas ao longo da história. O presidente Jair Bolsonaro vive fazendo acusações falsas sobre o sistema eleitoral e já insinuou que aqui poderá ser “pior” que nos Estados Unidos se ele perder em 2022. Para preservar nossa democracia, será preciso ficar de olho.

Opinião - O Globo


quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Uma sombra sobre a internet – O Estado de S. Paulo

Opinião

Na pandemia o uso da rede se expandiu, mas as liberdades se deterioram.

A internet, como apoteose de um processo iniciado com o telégrafo e o telefone, materializou a utopia de um mundo sem distâncias onde cada ser humano o “animal que fala”, na definição de Aristóteles – pode, em tese, se comunicar instantaneamente com todos os outros ao toque de um botão. Mas na prática, segundo o monitoramento Freedom on the Net, do instituto Freedom House, a liberdade global na rede se deteriorou pelo 10.º ano consecutivo.

Na pandemia as atividades humanas – comércio, educação, saúde, política, socialização – se expandiram digitalmente. Mas agentes autoritários (governamentais ou não) também aproveitaram a oportunidade para manipular narrativas, censurar críticas e ampliar tecnologias de controle social, despertando os temores mais sombrios de um futuro distópico.

A pandemia serviu amplamente de pretexto para limitar o acesso à informação. “As autoridades frequentemente bloquearam sites independentes de notícias e aprisionaram indivíduos sob acusações espúrias de disseminar fake news”, aponta o estudo. “Em muitos lugares, os próprios agentes do governo e seus zelotas disseminaram informações falsas e enganosas.” Alguns Estados desligaram a conectividade para grupos marginalizados, alargando e aprofundando divisões digitais.

Sob o mesmo pretexto, muitas autoridades também capilarizaram seus aparatos de patrulha. Por meio da Inteligência Artificial, vigilância biométrica e ferramentas de big data, agências de segurança, mas também empresas e mesmo criminosos digitais ampliaram seu acesso a informações sensíveis, como históricos médicos, padrões faciais e vocais e até códigos genéticos.

A crise ainda acelerou a fragmentação da internet, com cada governo impondo suas próprias regulamentações de modo a restringir o fluxo de informações entre as fronteiras. Muitos manobraram mais ou menos incisivamente na direção de sua própria “internet nacional”, outrora uma ambição restrita a autocracias como Irã, Rússia e China.

A China figurou pelo 6.º ano consecutivo como o ambiente digital menos livre do mundo. Com a pandemia e a crise em Hong Kong, o Partido Comunista intensificou sua parafernália de controle, como censura automatizada, vigilância high-tech e detenções em massa. “Os agentes e a mídia governamental, apoiados por robôs e trolls, promoveram a desinformação domesticamente e em campanhas ao redor do mundo.”

A Índia está entre os cinco países que mais retrocederam em 2020. A maior democracia do mundo é líder em desativações da rede. No ano passado, pela primeira vez, o governo derrubou a conexão em grandes cidades, em retaliação aos protestos de minorias muçulmanas contra uma lei discriminatória. As autoridades aumentaram as pressões sobre as mídias sociais pela remoção de conteúdos críticos ao regime nacionalista hindu, e as evidências indicam um aumento da espionagem contra ativistas, jornalistas e advogados de grupos marginalizados.

Os EUA são o sétimo ambiente mais livre, mas regrediram pelo quarto ano consecutivo, seja por respostas desproporcionais a riscos genuínos apresentados por aplicativos nacionais e estrangeiros, seja pela sua evasão, quando não sabotagem, da cooperação internacional. “Como a covid-19 demonstrou, enfrentar os desafios de um mundo interconectado exige uma coordenação efetiva entre a esfera política e a sociedade civil”, alerta a Freedom House. Dada a natureza global da internet, “para questões relacionadas à competição, tributação e fluxo de informações transfonteiriço, a coordenação intergovernamental é plausivelmente mais eficaz do que a regulação ad hoc pelos Estados”.

A internet é um ativo inestimável para a democracia. Mas para que possa servir com todo o seu potencial à liberdade de expressão, ao engajamento comunitário e ao desenvolvimento econômico, Estados, corporações e sociedades civis precisam robustecer sua agenda para prover informação confiável e diversificada, proteger os direitos humanos da vigilância intrusiva e garantir o livre fluxo de informações contra a escalada do nacionalismo digital. 

Opinião - O Estado de S. Paulo


sábado, 11 de abril de 2020

A democracia em quarentena - Revista Época

Guilherme Amado

Há justificativa neste momento para vetar aglomerações, fechar igrejas e limitar o direito de ir e vir. Mas a vigilância é fundamental

Direito de livre assembleia proibido, ir e vir restrito, liberdade de culto com limitações. O coronavírus parece também ter obrigado a democracia a entrar em quarentena, com o mundo afundado em um misto de medidas necessárias para vencer a pandemia, mas também tentativas de líderes autoritários de se aproveitarem dela para ganhar mais poder e populistas que, usando a recorrente tática de vender soluções fáceis para problemas complexos, mais atrapalham do que ajudam seus países no combate à doença.

Scholars especializados no tema têm acompanhado com preocupação o impacto que o enfrentamento ao vírus pode ter na democracia de diversos países, muitos já convivendo com retrocessos nos últimos anos. Desde 2006, mais países veem suas democracias erodindo do que outros as têm fortalecido. De acordo com a Freedom House, organização sem fins lucrativos baseada nos Estados Unidos e que monitora os avanços e recuos das democracias de todo o mundo, 64 países se tornaram menos democráticos e somente 37 se fortaleceram em 2019. A perspectiva para este ano é que esse número seja ainda maior, por causa da pandemia.

Mas, onde muitos só veem janelas para o autoritarismo ganhar espaço, há quem aposte também na oportunidade que a Covid-19 está dando para as populações perceberem quão perigoso é entregar o comando do país a um populista.  Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán agora pode governar por decretos
Em Israel, o Parlamento e tribunais foram fechados, e Benjamin Netanyahu conseguiu adiar seu julgamento por corrupção por dois meses. 
Na Sérvia e na Turquia, veículos pró-regime deram voz a falsos especialistas que defenderam que suas populações são geneticamente protegidas do vírus. 
No México, López Obrador abriu mão da máscara e do álcool em gel e se apegou a imagens religiosas, sugerindo que os governados fizessem o mesmo, e demorou a admitir a gravidade do problema. No vizinho Estados Unidos, enquanto a governista Fox News culpava o Partido Democrata por espalhar medo, Donald Trump também passou por diversas fases, da banalização da doença à tentativa de criar o rótulo de “vírus chinês”, desaguando agora numa guerra à Organização Mundial da Saúde (OMS).

Por aqui, Jair Bolsonaro embarcou forte na onda negacionista. Perdeu três semanas batendo na tecla da “gripezinha”, pregando contra o isolamento, enquanto um de seus filhos e sua tropa digital escolhiam a China como bode expiatório. Não deu certo. O Datafolha apontou que 76% da população concorda com a quarentena como está sendo feita hoje, e houve um esforço diplomático de diferentes instituições para apaziguar as relações com a China. Diante do fracasso das duas tentativas iniciais, Bolsonaro apostou em badalar a cloroquina e a hidroxicloroquina como as soluções para a Covid-19, novamente à revelia da comunidade científica mundial e de seu próprio ministro da Saúde. E, ao menos para sua popularidade, deu certo.

Depois de dias enfraquecido nas redes sociais, começou uma reação. Segundo medição da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas, antes de o presidente e seus apoiadores concentrarem esforços na promoção da cloroquina e na associação da imagem de Bolsonaro a ela, a base bolsonarista representava apenas 12,3% das interações em torno do coronavírus no Twitter. A oposição tinha 59,6%. Ainda que possa ser uma vantagem momentânea, colou o discurso do “remédio de Bolsonaro”, maneira pela qual a militância passou a chamar os dois medicamentos. De acordo com medição da consultoria Bites, também na análise do sentimento dos internautas nas redes sociais, até às 21 horas da quarta-feira 8, eram 249 mil menções associando a cloroquina a Bolsonaro, pouco menos da metade de todos os tuítes de brasileiros sobre o coronavírus naquele dia. Os bolsonaristas saíram-se bem na ação para criar a percepção de que o presidente estava certo desde o começo, quando defendeu a cloroquina no combate à Covid-19 — o que, ressalte-se, ainda não é comprovado pela ciência.

Medidas severas para combater a pandemia, ainda que infrinjam temporariamente liberdades e direitos, não são por si só antidemocráticas. Na Áustria, o ministro da Saúde tentou editar um decreto de Páscoa que autorizaria a polícia a entrar nas casas para checar se as famílias estavam se reunindo em almoços do feriado religioso. Uma medida como essa, um recurso extremo, não faria sentido sem o consentimento do Parlamento. Não à toa, o Ministério da Saúde austríaco desistiu após protestos da oposição e da sociedade civil.

No Brasil, algo desse tipo foi a tentativa de Bolsonaro de mudar a Lei de Acesso à Informação, praticamente suspendendo-a durante a pandemia, o que não só dificultaria a capacidade da sociedade de fiscalizar o poder público, como restringiria o direito à informação, fundamental para que a população esteja preparada para se prevenir e enfrentar a doença. O contrapeso dos outros Poderes se fez necessário. O Supremo Tribunal Federal suspendeu o efeito imediato da Medida Provisória que mudara a lei e o Congresso provavelmente alterará seu teor nas próximas semanas.

Autor de O povo contra a democracia, uma das bíblias para entender a ascensão do populismo autocrata, o alemão Yascha Mounk, professor em Harvard, é o âncora semanal de um dos mais interessantes podcasts para quem gosta de debates aprofundados sobre política. Em The good fight, disponível gratuitamente no site de Mounk, ele conversa com professores, jornalistas, diplomatas e outros profissionais envolvidos no debate sobre os rumos da democracia mundo afora. No último episódio, Mounk recebeu Daniel Ziblatt, também professor de Harvard, coautor de outro livro essencial para entender o populismo de direita atual, Como as democracias morrem. Os dois avaliam na conversa que a pandemia poderá atrapalhar os autocratas populistas que já estão no poder, quando táticas de usar bodes expiatórios falharem e os cidadãos perceberem a falta que fazem instituições fortes e sérias funcionando. “Essa situação (a pandemia) favorecerá a oposição aos governos. Vai prejudicar os populistas que já estão no cargo. Acho que na verdade reduz as chances de reeleição. Pode enfraquecer alguém como Jair Bolsonaro, no Brasil”, analisa Mounk.

Blatt lembra que a crise econômica poderá enfraquecer quem já está no poder. “Essa crise de saúde torna-se uma crise econômica. Isso é bem provável. Isso vai enfraquecer dramaticamente tanto Bolsonaro quanto Trump”, afirma, lembrando que os populistas que estão na oposição, a exemplo da França, podem sair fortalecidos, se forem enxergados como alternativa.  As próximas semanas mostrarão quanto tempo vai durar o sucesso do discurso salvacionista da cloroquina. E se saberá se o Brasil está no grupo de países em que a pandemia fortaleceu o populismo ou naquele em que mais pessoas perceberam que não existem remédios milagrosos para problemas complexos.

Guilherme Amado, jornalista - Época


terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Ameaças à democracia

Freedom House alerta para a 'alarmante' degradação das condições democráticas no mundo, especialmente em razão da ascensão da direita populista

[na ótica de alguns alarmistas tudo ameaça à democracia;

talvez caiba a tese de que até o excesso de democracia complica o exercício da obrigação de governar.

Para a tal 'freedom house' até manter bandido preso é uma violação à democracia. No conceito deles, tem coisa mais absurda que prender alguém por ter assassinado alguém.

A democracia está sendo desvirtuada da intenção original dos que a criaram e sendo utilizada como justificativa para qualquer desrespeito a tudo que tente restabelecer um mundo ordeiro.] 

O mais recente relatório da instituição americana Freedom House sobre o estado da democracia no mundo coloca o Brasil entre os dez países em que houve “importantes acontecimentos em 2018 que afetaram sua trajetória democrática”, demandando, assim, “um especial escrutínio” em 2019. “O candidato de direita Jair Bolsonaro capturou a Presidência com uma retórica baseada no desdém pelos princípios democráticos”, diz o texto, para justificar a atenção especial dada ao Brasil. 

No estudo, intitulado Liberdade no Mundo - 2019, que classifica os países como “livres”, “parcialmente livres” e “não livres”, o Brasil aparece no grupo dos “livres”, mas com degradação dos direitos civis e políticos. O relatório comenta que a campanha eleitoral brasileira foi tomada de “desinformação e violência política” e que a retórica de Bolsonaro se assentou em “promessas agressivas de acabar com a corrupção e a criminalidade, o que teve ressonância em um eleitorado profundamente desalentado”. 

O triunfo de Bolsonaro, segundo a Freedom House, enquadra-se num movimento de caráter global. “As vitórias eleitorais de movimentos antiliberais na Europa e nos Estados Unidos em anos recentes deram impulso a grupos semelhantes ao redor do mundo, como se observou na recente eleição de Jair Bolsonaro.” Essa onda está no centro das preocupações relatadas pela Freedom House, pois “esses movimentos danificam as democracias por dentro, por meio de sua atitude de menosprezo pelos direitos políticos e civis, e enfraquecem a causa da democracia ao redor do mundo”.
 
Assim, o estudo, ao salientar que 2018 foi o 13.º ano seguido de degradação das condições democráticas no mundo, nota que está em curso um “alarmante” declínio dessas condições, especialmente em razão da ascensão da direita populista. O símbolo dessa tendência no ano passado, diz o relatório, foi o governo do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban, que “provocou a mais acentuada queda já experimentada por um país da União Europeia” no índice da Freedom House. A Hungria passou de país “livre” a país “parcialmente livre”. Orban foi um dos poucos chefes de Estado presentes à posse de Bolsonaro e recebe do presidente brasileiro especial deferência. 

Como estratégia comum, diz o relatório, os expoentes desse movimento antiliberal atacam a imprensa e fomentam a polarização, mobilizando seus seguidores nas redes sociais contra o que chamam de “fake news”, isto é, qualquer notícia que os desabone.  A Freedom House adverte que o autoritarismo aparenta ter se tornado um empreendimento transnacional. A Rússia e o Irã são citados como exemplos de regimes que exercem seu poder contra dissidentes mesmo fora de suas fronteiras, promovendo inclusive sequestros e assassinatos. Mas o relatório nota também que mesmo democracias sólidas vêm sofrendo degradação de suas instituições. “Uma crise de confiança nessas sociedades se intensificou, com muitos cidadãos expressando dúvidas sobre se a democracia ainda serve a seus interesses”, afirma o estudo. 

A Freedom House explica que essa mudança foi causada por uma “nova fase da globalização”, que, ao mesmo tempo que “liberou uma enorme quantidade de riqueza ao redor do mundo”, acentuou a desigualdade em escala global. Assim, “trabalhadores pouco qualificados em democracias industrializadas ganharam relativamente muito pouco com essa expansão da riqueza, ao mesmo tempo que empregos antes bem remunerados foram perdidos graças a uma combinação de competição estrangeira e mudanças tecnológicas”. 

Diante desse cenário, abriu-se o caminho para os extremistas, pois “o centro político foi incapaz de dar soluções para a disrupção que esse processo causou”. O discurso que vem cativando o eleitor frustrado é o que atribuiu às elites e à sua “velha política” - leia-se, a democracia representativa liberal - a “erosão do padrão de vida dos cidadãos e das tradições nacionais”.
Como disse o presidente da Freedom House, Michael Abramowitz, “raramente a necessidade de defender as regras da democracia foi tão urgente”.

 Editorial - O Estado de S. Paulo