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terça-feira, 19 de julho de 2016

O terror é apenas o horror



Alá deve estar mais envergonhado da ação assassina de seus soldados da jihad do que toda a cristandade

Em 1890, o marinheiro polonês naturalizado britânico Jósef Konrad subiu o Rio Congo e testemunhou uma carnificina na qual metade da população local sucumbiu. Tornado o escritor que sempre justifica uma releitura prazerosa por outro gênio, Jorge Luís Borges, Joseph Conrad registrou seu testemunho no romance No Coração das Trevas. E deu voz ao ódio ao colonialismo. Do livro o gênio do cinema Francis Ford Coppola extraiu o enredo de Apocalypse Now, expressando o ódio ao imperialismo invasor. Antes disso, finda a Segunda Guerra Mundial, em Paris, dois gênios da literatura francesa, ambos ganhadores do Prêmio Nobel da Literatura, injustamente nunca concedido ao autor de Lord Jim, transformaram numa rixa uma boa amizade mantida nas mesas do café Deux Magots, em Saint Germain-des-Près.

O  caolho Sartre defendia o terrorismo como arma na luta da Argélia contra o colonialismo francês. O argelino Camus cunhou a máxima de que ele não perdoaria o terrorista cuja bomba matasse aleatoriamente sua mãe numa estação de metrô em Oran, onde ele nasceu. E assim o terrorismo – amor ou ódio? – , dilema crucial do século 20, invadiu e dilacera o século 21.

Sartre, o pai do existencialismo, tornou-se um dos maiores ídolos do social-comunismo da História. Mas em seu enterro gigantesco também foi enterrada a reputação de um intelectual brilhante que tinha tudo para imortalizar-se como o filósofo de O Ser e o Nada. E terminou permanecendo vivo como o escritor de As Palavras. Edição recente de textos esparsos de galã Camus mostra como o amigo que virou rival dele não é mais apenas o genial romancista de O Estrangeiro, como era conhecido antes, pois ele, não Sartre, é que tinha razão nesta questão capital: não há razão nenhuma para a execução aleatória de cidadãos inocentes e alheios às questões que acionam os explosivos de um terrorista suicida.

O atentado contra a redação do Charlie Hebdo, a sequência de chacinas de 13 de novembro em casas noturnas da capital francesa e o caminhão-bomba que atropelou e matou 84 na comemoração do aniversário da queda da Bastilha, em 14 de julho de 2016, expõem mais do que nunca a completa razão lógica de Camus. O colonialismo não foi derrotado nas execuções aleatórias da Casbah, em Argel. O imperialismo não sucumbiu à explosão das Torres Gêmeas em Nova York. O terrorismo não tem causa, contém apenas ódio, preconceito, irracionalidade e uma brutalidade do qual o único animal capaz é o soi-disant racional. Um leão na floresta não promove chacinas como a do aeroporto de Istambul.

“O inferno são os outros”, definiu subliminarmente Sartre na peça Huis Clos (Entre Quatro Paredes), na boca do protagonista Garcin a essência do terror como arma. É uma ironia que Sartre não tenha entendido o próprio conceito e que Camus não tenha conseguido como ele resumir tudo o que pensava sobre o assunto numa síntese absoluta como esta.  O atentado de 14 de julho em Nice, à margem do “mare nostrum”, o Mediterrâneo, em cujo azul deslumbrante circularam as antigas civilizações grega e romana, ilustra à perfeição essa síntese. Não representa a vingança dos sarracenos contra os cruzados e os israelitas na luta milenar pela Terra Sagrada de Jerusalém. Alá deve estar mais envergonhado da ação assassina de seus soldados da jihad do que toda a cristandade. Maomé pode até ter tornado mais difíceis de aturar seus períodos de jejum, pois não entende como em seu ainda nome se derrama tanto sangue inocente. Marx, o jornalista que bradava contra a censura na Gazeta Renana, também não concebeu nem conceberia tanta crueldade. Não há fé nem ideal que justifiquem o ataque à liberdade dos outros de pensarem como quiserem e de rezarem para em que acreditem. Não há motivo, razão nem lógica.

A polícia francesa procura por algo inútil para dizer ao bobalhão do Hollande se o atentado foi planejado ou sequer autorizado pelo Estado Islâmico. Esta é uma manifestação da tonteira generalizada compartilhada pelos turcos que gastam bilhões para garantir a segurança em seu território e não conseguem evitar atentados em seu aeroporto que homenageia o grande estadista Ataturk. Ou da completa burrice dos responsáveis pela segurança do Rio de Janeiro durante a Olimpíada para a qual virão os principais alvos do “ódio do novo califado”, todos representados pela elite de seus ídolos esportivos: EUA, Reino Unido, Alemanha, França, etc.

Se o 14 de julho do sanguinário Robespierre e do corrupto Danton foi violado por um caminhoneiro lunático, não importa o mínimo se este foi treinado pelo Estado Islâmico ou se apenas inspirou-se no ódio que move hoje todos os psicopatas que se recusam a conviver com os diferentes e, por isso, os liquidam. O Brasil não é inimigo do Islã. E nossa presidente afastada, no auge de escassez de sua parca inteligente, chegou a propor na Nova York das Torres Gêmeas negociações com o califado da intolerância.

O que importa é que os imbecis continuam acreditando nas mesmas sandices escritas, não por Maomé, mas por Sartre. Os franceses desconfiam que um terrorista brasileiro pretende atacar a delegação francesa. Ninguém deu bola. Todo mundo acredita que a irrelevância de nosso país na geopolítica global nos torna imunes à fúria terrorista. Falta-nos a consciência que Camus tinha de que a desumanidade do extermínio do outro, seja quem for, desde que não seja o próprio combatente, nunca tem justificativa e logo não pode ser perdoada.

A única lógica do atentado de Nice é disseminar o medo. Não adiantam as lamúrias de Hollande, a tristeza de Merkel, o estupor de miss May, a diplomática solidariedade de Obama nem a patética ignorância de madama Rousseff. O medo está disseminado. Que o medo seja, então, a nossa arma. A única capaz de mostrar que ninguém é invulnerável, nem os esquimós no Alaska nem os visitantes da bela El Calafate, na Patagônia argentina. Os peles-vermelhas das reservas americanas, os caçadores mongóis e os monges do Tibete são todos alvos eventuais do terror desumano. Enquanto todos estes, inclusive nós, não tivermos essa consciência, continuaremos sem ter nenhuma chance de defesa contra o homofóbico de Orlando, os irmãos que infernizaram a maratona de Boston para ganhar a pior das notoriedades ou os separatistas de origem russa da Ucrânia que se dão ao luxo de abater aviões comerciais em pleno voo. Ninguém é seguro em lugar nenhum deste planeta. 

E o inimigo não é só o terrorista em potencial, mas todo babaca que ainda prega a tolerância com o terror por motivos ideológicos, políticos ou religiosos. Não pense a vítima que eles são inocentes porque não têm armas. Eles têm algo pior do que a bomba de Hidrogênio: eles têm a crença de que só eles salvarão a Terra

O terror é apenas e tão somente, aprendamos todos, por favor, o que exprime a fala de Mc Duff na cena 3 do segundo ato de Macbeth, de Shakespeare, usada por Conrad como epígrafe em No Coração das Trevas: o horror, horror, horror


Publicado no Blog do Nêumanne



domingo, 15 de novembro de 2015

O inimigo é o fanatismo

Ontem, o protagonismo da barbárie era da al-Qaeda. Hoje, é do Estado Islâmico do Iraque e da Síria. 

Confortada pela solidariedade global, a França reage com o sentimento de união contra o terror

Foi tudo preparado, organizado e planejado além fronteiras, com cumplicidade dentro do país, disse na madrugada de ontem o presidente François Hollande, quando já se contavam mais de cem vítimas fatais e ainda era incerto o número de feridos — entre eles dois brasileiros. “Vamos combatê-los, e seremos implacáveis", complementou, “porque quando os terroristas são capazes de cometer essas atrocidades, devem estar seguros de que terão de enfrentar uma França decidida, unida, em bloco, e uma França que não se deixará atemorizar".

O chefe de Estado francês cumpriu o papel de líder em meio à tempestade, ao clima de estupefação com os atos de barbárie na sexta-feira à noite em Paris. Como todo político, Hollande costuma ser mais lembrado pelos defeitos, mas o tom firme e sereno nas suas intervenções, desde as primeiras horas, estimulou uma reflexão preliminar sobre a gênese dos ataques a uma nação, cuja história é identificada com os valores universais da democracia, do pluralismo, da tolerância, da transigência, da aceitação do contrário. Isso é essencial para a compreensão do que está em jogo hoje e do que é possível vislumbrar neste início de século.

O inimigo é o fanatismo, como está claro desde a tragédia americana no 11 de setembro de 2001. Aparentemente, o objetivo nefasto dos terroristas é, aos poucos, conduzir o mundo a uma Terceira Guerra Mundial, como vem advertindo o Papa Francisco, a partir do acirramento da animosidade entre religiões e culturas. Entre a derrubada das torres gêmeas, na Nova York de 2001, e o massacre de sexta-feira em Paris, passaram-se 14 anos. A novidade pós-Osama bin Laden é a emergência de uma nova geração do terror. Hoje, múltiplas facções disputam, em sucessivos banhos de sangue, a liderança na condução da bandeira da luta comum, por um novo Califado muçulmano sob a interpretação mais rígida e obscura da Sharia, a lei islâmica. Compõem absoluta minoria extremista do Islã.

Não se pode confundir a jihad no sentido da luta irracional, caracterizada pela violência e intolerância, com o Islã. Assim como os rugidos do terror não podem nem devem ser confundidos com as vozes amplamente majoritárias do bilhão de pessoas que vivem no pacifismo da cultura e da religião monoteísta baseada no Alcorão.  Ontem, o protagonismo da barbárie era da al-Qaeda. Hoje, é do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (Isis, na sigla em inglês, Daesh no acrônimo em árabe usado por Hollande em discurso).

Esse grupo nasceu por volta de 2004, no antigo Iraque de Saddam Hussein, pela capacidade articuladora do terrorista Abu Musab al-Zarqawi, que seguia um manual escrito por um ideólogo da selvageria, Muhammad Khalil al-Hakaymah, para quem os estados inimigos do Califado deveriam ser derrotados pelo “poder do vexame e da exaustão”. A autoproclamada al-Qaeda iraquiana quase feneceu depois de fundada, mas por trapaças da história conseguiu se revigorar ao fim da guerra empreendida pelo presidente americano George W. Bush. Evoluiu para um exército de jihadistas internacionais que, agora sob o distintivo do Isis, dedica-se a fomentar o caos em cultos de morte às liberdades, na defesa de fidelidade absoluta à uma interpretação literal, à sua maneira, dos textos religiosos.

Eles não suportam a vida em liberdade, como lembrou a chanceler alemã Angela Merkel, referindo-se às vítimas em Paris: “Elas queriam viver a vida de pessoas livres em uma cidade que celebra a vida. Os assassinos odeiam essa vida de liberdade”.  A tragédia parisiense, como observou o presidente americano Barack Obama, resgata à memória coletiva o fato de que liberdade, igualdade e fraternidade não são apenas valores que o povo francês se importa tão profundamente, “são valores que todos partilhamos”, e, a resiliência moldada nesses valores vai “muito além de qualquer ato de terrorismo ou a visão de ódio daqueles que perpetraram os crimes”.

Confortada pela solidariedade global, a França reage indicando a dimensão interna e externa da tragédia: Paris amanheceu ontem com o Exército nas ruas e o país de fronteiras fechadas, sob o decreto de estado de emergência, o que não acontecia desde 2005, com suspensão até do direito constitucional de manifestação. Os franceses demonstraram sentimento de união contra o terror. Notável o gesto espontâneo dos parisienses, difundido pelas redes sociais durante a madrugada, de abrir suas casas para abrigar pessoas impedidas de retornar aos próprios lares em consequência da abrupta paralisação do sistema de transporte coletivo. Ainda mais simbólica, talvez, tenha sido a cena da multidão que deixou a arena de futebol Stade de France — um dos alvos dos ataques—, entoando La Marseillaise, hino nacional, marcha de impulso ao ânimo patriótico ao qual o general Napoleão Bonaparte atribuía o valor de “muitos canhões”.

Foi o pior ato terrorista na Europa em 11 anos, desde os atentados coordenados em Madri, quando morreram 191 pessoas e 1.800 ficaram feridas. Sete terroristas suicidaram-se nas explosões, um oitavo foi morto pela polícia e, tudo indica, ainda há uma rede doméstica a ser desvendada — sem ela seria inviável a logística na preparação e determinação dos alvos. Tudo às vésperas da Conferência Mundial do Clima, em Paris, com participação prevista de 130 chefes de Estado e de governos.

Provas preliminares sugerem não ter sido coincidência eventos como de quinta-feira em Beirute, no Líbano, quando mais de 40 pessoas foram mortas num ataque bomba que tinha como alvo o Hezbollah, aliado xiita do Irã, em guerra contra o Estado Islâmico. E, também, no início do mês, quando um avião russo com mais de 200 passageiros foi derrubado, por explosão, em sobrevoo pelo Egito. O Estado Islâmico assumiu os dois atentados e, ontem, o de Paris.

É possível que a contundência na resposta “sem piedade”, anunciada por Hollande, venha a ser dada em breve por uma coalizão de França, Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha sob renovados protestos da Rússia e a pragmática desconfiança do Irã. Esboça-se uma ação militar coordenada e de grande escala contra a insurgência jihadista que ocupa grandes áreas da Síria e do Iraque, incluindo Mosul, a segunda maior cidade iraquiana. [nunca é demais lembrar que nas áreas eleitas para alvos dos ataques da coalizão, residem milhões de civis inocentes e que estão sob o jugo do Estado Islâmico. Deverão ser abatidos? A vida de um cada um dos terroristas que morrerão nos nos ataques  vale a de dezenas de inocentes?]

É o cenário de maior probabilidade, na sequência do massacre de Paris. As consequências são imprevisíveis, a começar para o horizonte econômico de curto e médio prazo — o reflexo nos preços do petróleo, por exemplo. A questão é se essa seria uma empreitada sábia. O êxito na luta contra o terror não pode e não deve depender apenas da eficácia militar. Será preciso um esforço multilateral, maior do que já se fez, muito mais consistente, para sufocar o financiamento dos grupos terroristas e criar condições efetivas de paz no Oriente Médio.


Fonte: Editorial - O Globo