O inimigo é o fanatismo
Ontem, o protagonismo da barbárie era da
al-Qaeda. Hoje, é do Estado Islâmico do Iraque e da Síria.
Confortada
pela solidariedade global, a França reage com o sentimento de união
contra o terror
Foi tudo preparado, organizado e planejado além fronteiras,
com cumplicidade dentro do país, disse na madrugada de ontem o
presidente François Hollande, quando já se contavam mais de cem vítimas
fatais e ainda era incerto o número de feridos — entre eles dois
brasileiros. “Vamos combatê-los, e seremos implacáveis", complementou,
“porque quando os terroristas são capazes de cometer essas atrocidades,
devem estar seguros de que terão de enfrentar uma França decidida,
unida, em bloco, e uma França que não se deixará atemorizar".
O chefe de Estado francês cumpriu o papel de líder em meio à
tempestade, ao clima de estupefação com os atos de barbárie na
sexta-feira à noite em Paris. Como todo político, Hollande costuma ser
mais lembrado pelos defeitos, mas o tom firme e sereno nas suas
intervenções, desde as primeiras horas, estimulou uma reflexão
preliminar sobre a gênese dos ataques a uma nação, cuja história é
identificada com os valores universais da democracia, do pluralismo, da
tolerância, da transigência, da aceitação do contrário. Isso é essencial
para a compreensão do que está em jogo hoje e do que é possível
vislumbrar neste início de século.
O inimigo é o fanatismo, como está claro desde a tragédia
americana no 11 de setembro de 2001. Aparentemente, o objetivo nefasto
dos terroristas é, aos poucos, conduzir o mundo a uma Terceira Guerra
Mundial, como vem advertindo o Papa Francisco, a partir do acirramento
da animosidade entre religiões e culturas. Entre a derrubada das torres gêmeas, na Nova York de 2001, e o
massacre de sexta-feira em Paris, passaram-se 14 anos. A novidade
pós-Osama bin Laden é a emergência de uma nova geração do terror. Hoje,
múltiplas facções disputam, em sucessivos banhos de sangue, a liderança
na condução da bandeira da luta comum, por um novo Califado muçulmano
sob a interpretação mais rígida e obscura da Sharia, a lei islâmica.
Compõem absoluta minoria extremista do Islã.
Não se pode confundir a jihad no sentido da luta irracional,
caracterizada pela violência e intolerância, com o Islã. Assim como os
rugidos do terror não podem nem devem ser confundidos com as vozes
amplamente majoritárias do bilhão de pessoas que vivem no pacifismo da
cultura e da religião monoteísta baseada no Alcorão. Ontem, o protagonismo da barbárie era da al-Qaeda. Hoje, é do Estado
Islâmico do Iraque e da Síria (Isis, na sigla em inglês, Daesh no
acrônimo em árabe usado por Hollande em discurso).
Esse grupo nasceu por volta de 2004, no antigo Iraque de Saddam
Hussein, pela capacidade articuladora do terrorista Abu Musab
al-Zarqawi, que seguia um manual escrito por um ideólogo da selvageria,
Muhammad Khalil al-Hakaymah, para quem os estados inimigos do Califado
deveriam ser derrotados pelo “poder do vexame e da exaustão”. A
autoproclamada al-Qaeda iraquiana quase feneceu depois de fundada, mas
por trapaças da história conseguiu se revigorar ao fim da guerra
empreendida pelo presidente americano George W. Bush. Evoluiu para um
exército de jihadistas internacionais que, agora sob o distintivo do
Isis, dedica-se a fomentar o caos em cultos de morte às liberdades, na
defesa de fidelidade absoluta à uma interpretação literal, à sua
maneira, dos textos religiosos.
Eles não suportam a vida em liberdade, como lembrou a chanceler alemã
Angela Merkel, referindo-se às vítimas em Paris: “Elas queriam viver a
vida de pessoas livres em uma cidade que celebra a vida. Os assassinos
odeiam essa vida de liberdade”. A tragédia parisiense, como observou o presidente americano Barack
Obama, resgata à memória coletiva o fato de que liberdade, igualdade e
fraternidade não são apenas valores que o povo francês se importa tão
profundamente, “são valores que todos partilhamos”, e, a resiliência
moldada nesses valores vai “muito além de qualquer ato de terrorismo ou a
visão de ódio daqueles que perpetraram os crimes”.
Confortada pela solidariedade global, a França reage indicando a
dimensão interna e externa da tragédia: Paris amanheceu ontem com o
Exército nas ruas e o país de fronteiras fechadas, sob o decreto de
estado de emergência, o que não acontecia desde 2005, com suspensão até
do direito constitucional de manifestação. Os franceses demonstraram sentimento de união contra o terror.
Notável o gesto espontâneo dos parisienses, difundido pelas redes
sociais durante a madrugada, de abrir suas casas para abrigar pessoas
impedidas de retornar aos próprios lares em consequência da abrupta
paralisação do sistema de transporte coletivo. Ainda mais simbólica,
talvez, tenha sido a cena da multidão que deixou a arena de futebol
Stade de France — um dos alvos dos ataques—, entoando La Marseillaise,
hino nacional, marcha de impulso ao ânimo patriótico ao qual o general
Napoleão Bonaparte atribuía o valor de “muitos canhões”.
Foi o pior ato terrorista na Europa em 11 anos, desde os atentados
coordenados em Madri, quando morreram 191 pessoas e 1.800 ficaram
feridas. Sete terroristas suicidaram-se nas explosões, um oitavo foi
morto pela polícia e, tudo indica, ainda há uma rede doméstica a ser
desvendada — sem ela seria inviável a logística na preparação e
determinação dos alvos. Tudo às vésperas da Conferência Mundial do
Clima, em Paris, com participação prevista de 130 chefes de Estado e de
governos.
Provas preliminares sugerem não ter sido coincidência eventos como de
quinta-feira em Beirute, no Líbano, quando mais de 40 pessoas foram
mortas num ataque bomba que tinha como alvo o Hezbollah, aliado xiita do
Irã, em guerra contra o Estado Islâmico. E, também, no início do mês,
quando um avião russo com mais de 200 passageiros foi derrubado, por
explosão, em sobrevoo pelo Egito. O Estado Islâmico assumiu os dois
atentados e, ontem, o de Paris.
É possível que a contundência na resposta “sem piedade”, anunciada
por Hollande, venha a ser dada em breve por uma coalizão de França,
Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha — sob renovados protestos da Rússia
e a pragmática desconfiança do Irã. Esboça-se uma ação militar
coordenada e de grande escala contra a insurgência jihadista que ocupa
grandes áreas da Síria e do Iraque, incluindo Mosul, a segunda maior
cidade iraquiana. [nunca é demais lembrar que nas áreas eleitas para alvos dos ataques da coalizão, residem milhões de civis inocentes e que estão sob o jugo do Estado Islâmico. Deverão ser abatidos? A vida de um cada um dos terroristas que morrerão nos nos ataques vale a de dezenas de inocentes?]
É o cenário de maior probabilidade, na sequência do massacre de
Paris. As consequências são imprevisíveis, a começar para o horizonte
econômico de curto e médio prazo — o reflexo nos preços do petróleo, por
exemplo. A questão é se essa seria uma empreitada sábia. O êxito na luta
contra o terror não pode e não deve depender apenas da eficácia militar.
Será preciso um esforço multilateral, maior do que já se fez, muito
mais consistente, para sufocar o financiamento dos grupos terroristas e
criar condições efetivas de paz no Oriente Médio.
Fonte: Editorial - O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário