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quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Não é sobre a Constituição - Carlos Alberto Sardenberg

Coluna publicada em O Globo - Economia 24 de outubro de 2019

As prisões sempre se deram em primeira instância no Brasil. A  segunda instância passou a ocorrer a partir de 1973, com a Lei Fleury, da ditadura, imposta para livrar da cadeia o delegado e torturador Sérgio Paranhos Fleury. Mas era uma norma bastante limitada.

A regra geral da prisão após condenação em segunda instância acabou sendo uma construção do Supremo. Essa regra foi suspensa em 2009, pelo mesmo STF, em cima do mensalão, quando figurões passaram a ser condenados. Mais recentemente, em 2016, em clima de Lava Jato, o STF voltou à prisão em segunda instância, com um placar de 6 a 5.

No momento em que a norma volta a ser discutida, a divisão, digamos, doutrinária no STF permanece a mesma de três anos atrás. Há ministros que sustentam a constitucionalidade da prisão em segunda instância e os que a consideram inconstitucional. Com uma novidade, a tese Toffoli: a prisão seria constitucional após condenação em terceira instância, no caso, o Superior Tribunal de Justiça.
Esta última posição é um óbvio puxadinho. Não faz qualquer sentido jurídico. Para os garantistas, o sujeito só pode cumprir pena depois da condenação transitada em julgado em última instância (no STF) e  ainda assim depois de esgotados todos os recursos. Prevalecendo esse ponto de vista, são inconstitucionais as prisões em todas as instâncias inferiores.

Logo, a tese Toffoli é uma tentativa de arranjo político. Na dificuldade de formar maioria clara contra ou a favor da prisão só em última instância ou em segunda, fica-se com a terceira instância.  Portanto, esqueçam isso de respeito sagrado à Constituição. Se juízes da mesma corte, supostamente, portanto, do mesmo nível de conhecimento jurídico, podem chegar a interpretações completamente diferentes, a questão passa a ser política. E, óbvio, tem a ver com a Lava Jato. Quem pretende procrastinar a cana? A turma ilustre formada por apanhados da Lava Jato, os que estão para ser apanhados, os que temem entrar na dança e seus associados.

Por isso, é também uma questão prática. Quanto mais  instâncias o processo precisar percorrer, maior o espaço de trabalho dos advogados. Melhor, portanto, para os réus ricos e/ou poderosos politicamente, que podem contratar advogados do primeiro escalão, com trânsito nas cortes da corte. Por trás de tudo, temos um grande embate não apenas político e jurídico, mas também moral e econômico. A Lava Jato desvendou não um episódio de corrupção, mas um completo sistema, estruturado nos setores público e privado, para roubar dinheiro do contribuinte. Beneficiaram-se partidos, empresas e pessoas.

Construiu-se, assim, um capitalismo de amigos amigos ladrões – que corrompeu a eficiência da economia brasileira. Não adiantava ser eficiente na produção. Era preciso ter relações eficazes nos governos. O avanço da Lava Jato provocou a reação, em diversas frentes. Nos tribunais, nos parlamentos, em parte da imprensa. E essa tentativa de desmoralizar a operação e o juiz Moro com base nas conversas capturadas de promotores da Lava Jato.  As conversas, se comprovadas, não são propriamente educadas. Mas é preciso separar as conversas sobre os processos dos próprios processos. A tentativa de usar as conversas para pedir a nulidade da Lava Jato mostra o contrário: a absoluta regularidade e legitimidade dos processos. Reparem: precisaram procurar algo fora do processo para tentar desmontá-lo.

Não se argumenta que o juiz Moro rejeitou testemunhas ou provas das defesas. Não se argumenta que não ouviu regularmente os réus.  Reclama-se que o promotor Dallagnol comemorou, lá pelas tantas: “O Fachin é nosso”. E esculhambou o ministro Gilmar. Ora, isso não desqualifica a acusação feita pelo promotor nem a decisão de Fachin. E por falar nisso, se xingamentos fora dos autos desqualificassem os autos, seria preciso anular todas as decisões do ministro Gilmar em casos da Lava Jato. Ele não poupa, como diz, “essa gente como Moro” ou “como Dallagnol”. De todo modo, essa história não termina aqui. A Lava Jato continua nas ruas.

Carlos Alberto Sardenberg, jornalista 

quinta-feira, 4 de abril de 2019

O mito da presunção de inocência - Prisão em segunda instância se justifica no Direito e na política


Há uma clara campanha nos meios jurídicos – inclusive nos dois  tribunais superiores, o STJ e o STF – para barrar a Lava-Jato

Coluna publicada em O Globo - Economia 4 de abril de 2019

O Supremo Tribunal Federal está dividido entre os ministros que sustentam a constitucionalidade da prisão em segunda instância e os que a consideram inconstitucional. Como são todos juízes de alta sabedoria, se presume, ao menos, pode-se dizer que as duas teses, embora contrárias, são defensáveis.  Logo, essa questão, que está na pauta do STF para a próxima semana, não depende mais de uma estrita argumentação jurídica. Vai além, devendo levar em conta o momento por que passa o país. E neste caso, está claro que o STF deveria confirmar a prisão em segunda instância.

Está em curso no país um forte processo de combate à corrupção, desfechado pela Lava Jato há apenas cinco anos. Está longe de ter terminado.  Mas há uma clara campanha nos meios políticos e jurídicos inclusive nos dois tribunais superiores, o STJ e o STF – para barrar a Lava Jato.  A campanha trata de livrar a cara de muita gente, mas há dois personagens principais. O primeiro, sem dúvida, é o ex-presidente Lula, preso há um ano em Curitiba, depois de ter sido condenado em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal de Porto Alegre. O segundo é outro ex-presidente, Temer, cujos processos estão no início. Mas o pessoal da campanha achou um absurdo a prisão temporária de Temer. E entendeu que era hora de atacar.

Assim, o que começa como uma questão geral de interpretação das leis acaba em manobras práticas para tentar tirar Lula da cadeia e evitar que Temer vá pelo mesmo caminho.  Tanto é assim que o julgamento do STF pode ser adiado para, digamos, dar um tempo para que o STJ vote um habeas corpus a favor de Lula ou decida mandá-lo para a prisão domiciliar. Esta última alternativa parece ser a aposta principal do momento. O ex-presidente tem mais de 70 anos, já amargou um regime fechado, de modo que seria um gesto humanitário deixá-lo ir para casa. E se o STJ resolvesse isso, o debate no STF perderia muito de sua temperatura atual. [comentário 1: sempre bom ter presente que apesar de ser um criminoso comum, condenado por crime comum = devendo cumprir pena em prisão destinada a presos comuns = o presidiário petista vive em uma sala cela que está mais para suite do que para cela e com uma série de regalias.
Aliás, as comodidades e espaço que o preso desfruta superam em muito o que está disponível para as PESSOAS DE BEM, das classes menos favorecidas - digamos, que menos da metade dos brasileiros desfrutas do conforto oferecido ao condenado petista.
O menos injusto seria que alternativa prisão domiciliar só fosse concedida após ele cumprir mais de um sexto da pena e com o uso obrigatório de tornozeleira eletrônica.]

Mas seria um golpe na Lava Jato. Se os julgamentos de Curitiba e Porto Alegre estão corretos, então Lula é o chefe de uma quadrilha que assaltou o Brasil de uma maneira assombrosa. E ainda deixou criar um ambiente no qual até prefeitos, vereadores e empresários das menores cidades do interior sentiram-se confortáveis para praticar suas “pequenas corrupções”.  Vamos falar francamente: a oposição à Lava Jato é essencialmente uma ação dos alvos, dos possíveis alvos da força tarefa e de seus aliados.  Mas não se trata apenas de política. Tem o necessário lado jurídico. E dentre os argumentos a favor da prisão em segunda instância, selecionei algumas ideias do advogado e jurista José Paulo Cavalcanti Filho.
Ele começa provocando ao introduzir o tema assim: “o mito da presunção de inocência”. Para os defensores da prisão em quarta instância, só depois do último recurso no STF, essa garantia está expressa na Constituição, quando diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença pena condenatória”.
Mas como as coisas acontecem no mundo real? – pergunta José Paulo.

E responde: no Brasil, prisões sempre se deram em primeira instância; a segunda instância passou a ocorrer a partir de 1973, com a Lei Fleury, da ditadura, imposta para livrar da cadeia o delegado e torturador Sérgio Paranhos Fleury; essa norma era bastante limitada; a regra geral da segunda instância acabou sendo uma construção do Supremo; a regra foi suspensa em 2009, pelo STF, em cima do mensalão, quando figurões passaram a ser condenados; em 2016, o STF voltou à prisão em segunda instância, com um placar de 6 a 5 (decisão que o Supremo está pautado para rever na próxima semana).

Portanto, a presunção de inocência não pode ser um valor absoluto. Se for, observa José Paulo, os assassinos de Marielle e Anderson devem ficar soltos porque ainda não foram condenados pelo Supremo. [comentário 2: salvo algum engano da nossa parte, os suspeitos de serem os assassinos da vereadora e seu motorista, não foram condenados - no máximo foram denunciados;
sendo sempre oportuno lembrar que ocorre com frequência razoável do cidadão ser condenado pela 'justiça das ruas', presos, muitas vezes até demitidos e quando são julgados pela JUSTIÇA são absolvidos - o exemplo mais recente é que vários PMs da PMERJ, lotados na UPP da Rocinha  foram acusados, presos, pelo assassinato do servente Amarildo, e absolvidos pela Justiça.]  

Traficantes também, soltos. Argumentam os defensores da quarta instância que a prisão preventiva ou provisória resolve estas situações. Mas quer dizer, então, que uma prisão provisória decidida por um juiz de primeira instância não viola o princípio da presunção de inocência? E a prisão decretada por um colegiado de segunda instância viola o princípio? – argumenta José Paulo, de maneira final.
Resumindo: a prisão em segunda instância, de quem quer que seja, vale em termos jurídicos e políticos, em nome do interesse coletivo. [comentário 3: do alto da nossa imensa e notória ignorância jurídica - uma fossa abissal quando comparada com o 'Everest' de  juízes de alta sabedoria, integrantes das cortes superiores brasileiras  - ousamos sugerir:
- prisão  sem julgamento só no caso de flagrante delito e/ou motivada pela necessidade (fundamentada) do interesse da investigação; 
- condenado em primeira instância já DEVE ser preso e solto só por determinação da instância superior e com base em falha processual e/ou ausência de provas.
Recursos contra prisão confirmada em segunda instância só em casos excepcionais e com ampla fundamentação.] 

Carlos Alberto Sardenberg, jornalista 


quinta-feira, 22 de março de 2018

Querem uma outra Lei Fleury



Em 70 dos últimos 77 anos, direito penal determinava que condenado seria preso após primeira ou segunda instância

Resumindo a história: de 1941 a 1973, a regra no Brasil era a prisão após a condenação em primeira instância; de 73 a 2009, vigorou a prisão em segunda instância; de 2009 a 2016, o condenado só poderia ser preso depois da sentença transitada em julgado, ou seja, após a última das últimas instâncias; de 2016 até hoje, voltou-se à norma da execução da pena após a segunda instância.

Portanto, em 70 dos últimos 77 anos, o direito penal brasileiro determinava que o condenado seria preso após a primeira ou segunda instância. Essa é a tradição que, aliás, se alinha com o sistema vigente nas democracias. Já viram no noticiário ou nos filmes americanos: o condenado sai do tribunal já algemado, condenado pelo juiz de primeiro grau. A exceção foi o curto período de sete anos em que prevaleceu a prisão só em última instância — situação que favoreceu um sem-número de condenados ricos e bem posicionados no mundo político, que podiam pagar a advogados e recorrer até o Supremo Tribunal Federal, passando antes pelo Superior Tribunal de Justiça. Um processo longo, que permitia a prescrição e, pois, a garantia de que especialmente os crimes do colarinho branco jamais seriam punidos.

Voltar a essa norma de exceção não beneficiaria apenas o ex-presidente Lula, mas o amplo número de empresários, executivos, altos funcionários e políticos que já foram apanhados pela Lava-Jato ou que estão na sua mira.  Mas não seria o primeiro casuísmo nessa história.  A primeira virada de mesa se deu em novembro de 1973. O delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops, conhecido chefe da repressão, torturador, estava para ir a júri. Pronunciado ou condenado em primeira instância, iria para a cadeia. Aí o regime militar determinou, e o Congresso aprovou a Lei 5.941, que manteve a prisão após a condenação ou pronúncia para o júri, mas abriu a possibilidade de concessão de fiança com a qual a pessoa apelava em liberdade. [tratou-se de uma legislação e extremamente necessária naquela ocasião, visto que buscava manter em liberdade um dos mais valorosos combatentes dos porcos guerrilheiros daquela época e que tinham como objetivo principal fazer do Brasil uma nova Cuba.
Diante da necessidade de continuar dispondo da valiosa colaboração do delegado Fleury, aquela legislação se fez necessária.
Entre os porcos que Fleury combatia estavam Marighella, Lamarca e outros vermes da mesma estirpe.]
Não por acaso, ficou conhecida como Lei Fleury.

Em 1988, veio a nova Constituição, dizendo que a presunção de inocência vale até o trânsito em julgado da sentença.  Claro que se estabeleceu uma questão: se há a presunção de inocência, a pessoa pode ser presa antes de se esgotarem todos os recursos? Pois o STJ respondeu que pode, com a Súmula 09. Ali a Corte disse, em resumo, que a prisão do condenado em segunda instância não ofende a presunção de inocência. A regra, portanto, era clara: para apelar, a pessoa precisava iniciar o cumprimento provisório da pena.

E assim foi até 2009, quando o STF mudou o entendimento e estabeleceu o direito do condenado em segunda instância de recorrer em liberdade.  Mudou por quê? Doutrina ou casuísmo?  Era a época do mensalão, esse julgamento extraordinário, que começou a punir e colocar em cana o pessoal do colarinho branco. Quem liderou a mudança no STF foi o então ministro Eros Grau, que hoje se arrepende. Conforme registramos em nossa coluna de 1º de março, ele comentou em debate recente: “Agora, neste exato momento, eu até fico pensando se não seria bom prender já na primeira instância esses bandidos que andam por aí”.

Foi em 2016, na era da Lava-Jato, quando se expôs o tamanho da corrupção e o grau de envolvimento da política e dos negócios, que o STF, pressionado pela conjuntura, voltou à regra pela qual a prisão pode ser decretada após a condenação em segundo grau. Foi um placar apertado, 6 a 5.  Pois a Lava-Jato avançou, prendeu um monte de gente. Agora, quando chega a vez de Lula, cresce o movimento para o STF mudar de novo e voltar à norma de exceção que vigorou entre 2009 e 2016. Mas não é só por Lula, claro.

A mudança na regra tiraria muita gente da cadeia e impediria que outros tantos fossem levados a ela no futuro. Isso inclui, por exemplo, o presidente Temer, atuais ministros e parlamentares, hoje protegidos pelo foro privilegiado mas que estarão na chuva quando terminarem seus mandatos. Proteger esse pessoal, com uma mudança de interpretação no STF, isso seria a exceção, uma outra Lei Fleury.
No mundo democrático, civilizado, a norma dominante determina a prisão após condenação em primeira ou segunda instância, como foi no Brasil durante 70 dos últimos 77 anos. É sustentada pela boa doutrina.

Carlos Alberto Sardenberg, jornalista