Em 70 dos últimos 77 anos, direito penal determinava que condenado seria preso após primeira ou segunda instância
Resumindo
a história: de 1941 a 1973, a regra no Brasil era a prisão após a condenação em
primeira instância; de 73 a 2009, vigorou a prisão em segunda instância; de
2009 a 2016, o condenado só poderia ser preso depois da sentença transitada em
julgado, ou seja, após a última das últimas instâncias; de 2016 até hoje,
voltou-se à norma da execução da pena após a segunda instância.
Portanto,
em 70 dos últimos 77 anos, o direito penal brasileiro determinava que o
condenado seria preso após a primeira ou segunda instância. Essa é a tradição
que, aliás, se alinha com o sistema vigente nas democracias. Já viram no
noticiário ou nos filmes americanos: o condenado sai do tribunal já algemado,
condenado pelo juiz de primeiro grau. A exceção
foi o curto período de sete anos em que prevaleceu a prisão só em última
instância — situação que favoreceu um sem-número de condenados ricos e bem
posicionados no mundo político, que podiam pagar a advogados e recorrer até o
Supremo Tribunal Federal, passando antes pelo Superior Tribunal de Justiça. Um
processo longo, que permitia a prescrição e, pois, a garantia de que
especialmente os crimes do colarinho branco jamais seriam punidos.
Voltar a
essa norma de exceção não beneficiaria apenas o ex-presidente Lula, mas o amplo
número de empresários, executivos, altos funcionários e políticos que já foram
apanhados pela Lava-Jato ou que estão na sua mira. Mas não
seria o primeiro casuísmo nessa história. A
primeira virada de mesa se deu em novembro de 1973. O delegado Sérgio Paranhos
Fleury, do Dops, conhecido chefe da repressão, torturador, estava para ir a júri.
Pronunciado ou condenado em primeira instância, iria para a cadeia. Aí o regime
militar determinou, e o Congresso aprovou a Lei 5.941, que manteve a prisão
após a condenação ou pronúncia para o júri, mas abriu a possibilidade de
concessão de fiança com a qual a pessoa apelava em liberdade. [tratou-se de uma legislação e extremamente necessária naquela ocasião, visto que buscava manter em liberdade um dos mais valorosos combatentes dos porcos guerrilheiros daquela época e que tinham como objetivo principal fazer do Brasil uma nova Cuba.
Diante da necessidade de continuar dispondo da valiosa colaboração do delegado Fleury, aquela legislação se fez necessária.
Entre os porcos que Fleury combatia estavam Marighella, Lamarca e outros vermes da mesma estirpe.]
Não por
acaso, ficou conhecida como Lei Fleury.
Em 1988,
veio a nova Constituição, dizendo que a presunção de inocência vale até o
trânsito em julgado da sentença. Claro que
se estabeleceu uma questão: se há a presunção de inocência, a pessoa pode ser
presa antes de se esgotarem todos os recursos? Pois o STJ respondeu que pode,
com a Súmula 09. Ali a Corte disse, em resumo, que a prisão do condenado em
segunda instância não ofende a presunção de inocência. A regra, portanto, era
clara: para apelar, a pessoa precisava iniciar o cumprimento provisório da
pena.
E assim
foi até 2009, quando o STF mudou o entendimento e estabeleceu o direito do
condenado em segunda instância de recorrer em liberdade. Mudou por
quê? Doutrina ou casuísmo? Era a
época do mensalão, esse julgamento extraordinário, que começou a punir e
colocar em cana o pessoal do colarinho branco. Quem liderou a mudança no STF
foi o então ministro Eros Grau, que hoje se arrepende. Conforme registramos em
nossa coluna de 1º de março, ele comentou em debate recente: “Agora, neste
exato momento, eu até fico pensando se não seria bom prender já na primeira
instância esses bandidos que andam por aí”.
Foi em
2016, na era da Lava-Jato, quando se expôs o tamanho da corrupção e o grau de
envolvimento da política e dos negócios, que o STF, pressionado pela
conjuntura, voltou à regra pela qual a prisão pode ser decretada após a
condenação em segundo grau. Foi um placar apertado, 6 a 5. Pois a
Lava-Jato avançou, prendeu um monte de gente. Agora, quando chega a vez de
Lula, cresce o movimento para o STF mudar de novo e voltar à norma de exceção
que vigorou entre 2009 e 2016. Mas não é só por Lula, claro.
A mudança
na regra tiraria muita gente da cadeia e impediria que outros tantos fossem
levados a ela no futuro. Isso inclui, por exemplo, o presidente Temer, atuais
ministros e parlamentares, hoje protegidos pelo foro privilegiado mas que
estarão na chuva quando terminarem seus mandatos. Proteger
esse pessoal, com uma mudança de interpretação no STF, isso seria a exceção,
uma outra Lei Fleury.
No mundo
democrático, civilizado, a norma dominante determina a prisão após condenação
em primeira ou segunda instância, como foi no Brasil durante 70 dos últimos 77
anos. É sustentada pela boa doutrina.
Carlos Alberto Sardenberg, jornalista
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