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domingo, 19 de março de 2023

O desfecho da trilogia sobre o ‘império do mal’ - Ana Paula Henkel

Revista Oeste

Desde que Lenin derrubou a nascente democracia parlamentar da Rússia para estabelecer uma ditadura brutal, muitas outras nações caíram nas iscas travestidas de “igualdade para todos” 

O selo com Stalin e Mao Zedong | Foto: Baka Sobaka/Shutterstock

  O selo com Stalin e Mao Zedong | Foto: Baka Sobaka/Shutterstock 

 E chegamos à parte final de nossa trilogia sobre o comunismo. É claro que um assunto tão complexo, tão enraizado em detalhes e ações contadas em diferentes eventos históricos não poderia ser explorado na sua totalidade em apenas três artigos. Mas precisamos de um (re)começo — precisamos levantar esse tapete da barbárie e expor aos nossos herdeiros que o atual fascínio pelo “novo” socialismo/comunismo é nocivo, enganoso, vil e perigoso. Lembro que, em novembro do ano passado, em virtude do aniversário da queda do Muro de Berlim, postei algumas fotos sem legenda da queda do muro, em 1989, em meu Instagram. Para a minha grande surpresa, fiquei espantada com a quantidade de mensagens de jovens que não faziam a menor ideia do que eram aquelas imagens. Não conhecer a história é perigoso demais.
Há muitas razões além da história para refletirmos sobre o legado do comunismo. Desde que Vladimir Lenin derrubou a nascente democracia parlamentar da Rússia, em 1917, para estabelecer uma ditadura brutal, muitas outras nações caíram nas iscas travestidas de “igualdade para todos” chamadas de comunismo — muitas vezes, dissimuladas e maquiavelicamente empacotadas de apenas “socialismo”.
 
O comunismo promete igualdade, mas oferece escassez para todos, exceto para as elites em seu aparato
Ele lança a justiça social e oferece escravização em massa, miséria generalizada, desconfiança social e punição severa para todos os que discordam do sistema. 
Vimos esses fenômenos acontecerem em todo o mundo, na China, na Coreia do Norte, no Sudeste Asiático, na Europa Oriental pós-Segunda Guerra Mundial, Cuba, América Central e, talvez mais notavelmente visível para nós, brasileiros, hoje com a fome e o caos da Venezuela.
A queda do Muro de Berlim, 1989 | Foto: Wikimedia Commons
O comunismo toma conta da China e além
Antes de a China se tornar um país comunista, houve um período de 37 anos, começando em 1912, com um governo provisório, depois a Primeira República da China, a Segunda República Nacionalista da China e depois a República Constitucional da China. Antes desse período, a China era governada por dinastias imperiais.

Em julho de 1921, o Partido Comunista da China é formado pelos revolucionários Chen Duxiu e Li Dazhao, que se tornaram marxistas após a vitória bolchevique na Revolução Russa. Em 1927, o PCC fica sob o controle de Mao Zedong, e, em 1947, Mao lidera uma revolução para que, em 1º de outubro de 1949, seja declarado o estabelecimento da República Popular da China, sob o regime do Partido Comunista.

Na divisão sino-soviética da década de 1950, Mao rompeu com o marxismo-leninismo tradicional e desenvolveu o maoismo, a interpretação chinesa do comunismo. Os maoistas iniciaram uma forte tradição comunista, instituindo o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural.  
Em 1958, o Grande Salto é colocado em prática, com o objetivo de desviar a economia da China da agricultura para a indústria — em apenas cinco anos. O resultado foi uma das maiores barbáries contra a vida humana da história
Pelo menos 30 milhões de pessoas morreram de fome em apenas quatro anos. 
Além disso, as reformas agrárias de Mao levaram milhões à morte em execuções públicas em campos de trabalho. Na revolução cultural, Mao derrubou seus inimigos, perseguiu quase 300 mil intelectuais e dissidentes do comunismo na Campanha Antidireitista, e milhões de pessoas foram mortas ou perseguidas por apenas discordarem do regime.

Em apenas alguns anos, o Grande Salto também causou enormes danos ambientais na China. O plano de produção de aço resultou em florestas inteiras sendo derrubadas e queimadas para abastecer as fundições, o que deixou a terra aberta à erosão. O cultivo denso e a lavoura profunda despojaram as terras agrícolas de nutrientes e também deixaram o solo agrícola vulnerável à erosão. Líderes comunitários ansiosos exageraram em suas colheitas, na esperança de agradar à liderança comunista, mas este plano saiu pela culatra de forma trágica. Como resultado da superprodução, os funcionários do partido levaram a maior parte da colheita para as cidades, deixando os fazendeiros sem nada para comer. As pessoas no campo começaram a passar fome.

Em 1960, uma seca generalizada aumentou a miséria do país, e as pessoas no campo não conseguiam mais plantar sequer para sobreviver. No final, por meio de uma combinação de políticas econômicas desastrosas e condições climáticas adversas, cerca de 20 a 48 milhões de pessoas morreram na China. A maioria das vítimas morreu de fome no campo. O número oficial de mortos do Grande Salto é de 14 milhões, mas a maioria dos estudiosos concorda que esta é uma subestimação substancial, já que todos os dados vindos dos comunistas não são confiáveis.

(...)

Umas das páginas mais sangrentas da comunista China foi escrita recentemente, em 1989: o Massacre de Tiananmen Square. Protestos liderados por estudantes que pediam democracia, liberdade de expressão e liberdade de imprensa tomaram as ruas de algumas cidades da China.

Quando a presença inicial dos militares não conseguiu conter os protestos, as autoridades chinesas decidiram aumentar sua agressão, e os protestos foram interrompidos em uma repressão mortal.  
Em 4 de junho, soldados e policiais chineses invadiram a Praça da Paz Celestial, disparando balas reais contra a multidão. 
Repórteres e diplomatas ocidentais em Pequim naquele dia estimaram que milhares de manifestantes foram mortos no Massacre da Praça da Paz Celestial e até 10 mil pessoas foram presas. 
 
 Mais de três décadas depois que as tropas usaram força assassina para expulsar os manifestantes da Praça da Paz Celestial e do centro de Pequim, encobrir esse crime tornou-se uma tarefa árdua. 
Mesmo assim, a máquina de segurança da China está pronta para censurar e prender aqueles que falam abertamente sobre os eventos de 1989. Todos os rastros de imagens desse trágico dia foram excluídos dos cachês da vida cibernética chinesa. A história foi simplesmente apagada.
Tanques chineses em Pequim, julho de 1989 - 
 Foto: Wikimedia Commons

Isto é apenas uma pontinha do iceberg de terror de um país que é regido por quem respira o comunismo, por quem usa a foice e o martelo como símbolos de orgulho. A mesma foice e martelo usados pelo atual ministro da Justiça no Brasil, Flávio Dino, e que recentemente declarou que “era comunista, sim, graças a Deus”.

(...) CLIQUE E LEIA MATÉRIA COMPLETA

Recomendações de alguns livros, filmes e séries sobre o comunismo:

Livros: Fome na Ucrânia (Gareth Jones); Lenin, um Retrato Íntimo (Victor Sebestyen); A Grande Fome de Mao (Frank Dikotter); Fome Vermelha, a Guerra de Stalin na Ucrânia (Anne Applebaum); Stalin, a Biografia de um Ditador (Oleg V. Khlevniuk); O Livro Negro do Comunismo, Em Busca de Sentido (Viktor Frankl)

Filmes: A Sombra de Stalin; Colheita Amarga; Goobdye Lenin

Séries: Trostky; Como se Tornar um Tirano; Chernobyl

Documentários: The Killing Fields; Segunda Guerra em Cores; O Colapso da União Soviética

Leia também “O nascimento do ‘império do mal'”

Revista Oeste 

 

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Como Se Tornar um Tirano - Revista OESTE

 Ana Paula Henkel

Para começar, você deve ser, ou pelo menos apresentar-se, como uma das pessoas “comuns” da vida. Um professor ou sindicalista, por exemplo, serviriam muito bem 

Cartaz da série "Como Se Tornar Um Tirano", da Netflix | Foto: Divulgação/Netflix

Cartaz da série "Como Se Tornar Um Tirano", da Netflix | Foto: Divulgação/Netflix 

Não, o título deste artigo não tem nada a ver com o atual cenário no Brasil. Como Se Tornar um Tirano é uma série da Netflix para a TV que apresenta um, digamos, “manual para o poder absoluto”. Muito da série é pura ironia, mas ela é tragicamente baseada nas táticas e estratégias reais usadas por Josef Stalin, Mao Zedong, Adolf Hitler, Muammar Gaddafi, Kim Il-sung e Saddam Hussein. (Não, eu não pensei em ninguém no Brasil, mas se você pensou, cuidado com a polícia do pensamento!) De acordo com a série, se você tem a ambição de ser o “dono de algum país”, a história te dá todas as dicas. Não fiquem chocados se, estranhamente, tudo parecer familiar demais com o que vivemos e a política a que estamos sujeitos.

Bem, vamos lá. De acordo com Como Se Tornar um Tirano, se você quer ser um ditador, primeiro você precisa ser um tipo específico de pessoa. 
 
Para começar, você deve ser, ou pelo menos apresentar-se, como uma das pessoas “comuns” da vida. 
Hitler foi soldado, Mussolini era filho de ferreiro, Saddam Hussein foi criado por um tio depois da morte do pai e abandono pela mãe, e Muammar Gaddafi veio de uma família humilde e seu pai ganhava uma escassa subsistência como pastor de cabras e camelos. 
Você precisa ser uma pessoa “comum” que retrate o velho ditado “Um homem que compartilha seus sonhos pode realizá-los”. Portanto, um professor ou sindicalista, por exemplo, serviriam muito bem.
 
A partir desse ponto, a série revela outras páginas do “manual” para se tornar um tirano de sucesso e cada episódio escolhe um princípio-chave de um ditador da história para ilustrar as regras despóticas de engajamento. 
Por exemplo: como tomar o poder (Hitler), como esmagar seus rivais (Saddam Hussein), como reinar através do medo (Idi Amin, de Uganda) e assim por diante. A série é sombriamente sarcástica, aliás, define tirania não como “governo de um governante cruel e opressor”, mas como um “governo para pessoas que querem resultados” e que não necessariamente se importam com a forma como esses resultados são obtidos. Mas, repito, para deixar claro para o novo Ministério da Verdade no Brasil: fatos parecidos com o atual cenário político são mera coincidência.

O aspirante a tirano deve acreditar em si mesmo com uma autoestima inabalável. A série afirma que “uma crença megalomaníaca em suas habilidades convence os outros delas”. Portanto, seja o poder místico de usar sal grosso para lavar áreas antes habitadas pelo inimigo, ou o poder de acabar com a democracia para salvar a democracia, se você estiver convencido disso, pode ter certeza de que muitos outros também concordarão com você se você souber persuadi-los.

 No entanto, nosso suposto ditador precisa de mais uma qualidade de caráter: o dom da fala, ou, na verdade, a capacidade mais importante de atrair a atenção. O bigode de Hitler era sua característica definidora, aquilo era inequivocamente “o cara”. Mas uma barba branca também pode servir. Ou uma careca lustrosa, por exemplo. Nada tão específico. Há boas variedades por aí. A série revela que os ditadores têm em comum a habilidade de serem publicitários natos para encontrar o que completará a identidade visual marcante. A imagem detalhadamente pensada sob o manto da falsa naturalidade é o pontapé para o início da descrição das táticas que os tiranos normalmente usam para chegar ao poder e consolidar seu domínio sobre ele.

Bem, a primeira delas é: aumentar a indignação. Mostre às pessoas que os inimigos delas são seus inimigos! A genialidade do tirano está em entender e explorar a natureza do ressentimento que existe no coração das pessoas — verdadeiro ou não —, e, então, se apresentar como o meio de se vingar das pessoas de que elas ressentem. Desumanizar oponentes ajuda bastante. Afinal, para ser um tirano que se preze, você precisa acusar outros de serem tiranos.

Doutrine a juventude. Os ditadores não querem jovens educados e estudiosos. Eles querem que os jovens sejam educados apenas o suficiente para produzir — seja dinheiro, agitação civil ou caos

Compre lealdade. Já se estabeleça no poder com isso em prática desde o início. O futuro pode ser incerto, mas a maneira mais eficiente de permanecer no poder é comprar a lealdade de seus aliados políticos e de seus rivais políticos também. E de onde vem o dinheiro para isso? Da cleptocracia, é claro. Roubar os recursos da nação roubos sempre disfarçados de bondade — é questão sine qua non. 
 Afinal, não é barato manter luxos, esmagar dissidentes e inimigos, comprar a imprensa, ajudar companheiros e aspirantes a ditadores, comprar juízes, políticos etc. Toda a bondade de uma tirania pelo povo e para o povo custa caro.

Alguns tiranos, de acordo com a série, têm a fama de ritualmente humilhar todos em seu gabinete, conselho de ministros e pessoas próximas. Isso os mantém com medo e subjugados. Mas, se houver brigas públicas, escolha um bode expiatório: ganhe a confiança e o apoio das massas culpando um grupo pelos males do país e diga que sem você eles não podem revidar ou se proteger. Por exemplo, no início dos anos 1970, Idi Amin acusou 100 mil asiáticos (principalmente indianos que possuíam a maioria das grandes lojas e negócios) de “traição econômica e cultural” e os expulsou de Uganda. Atualmente, os novos tiranos usam a tática de acusar os adversários daquilo que os verdadeiros tiranos da história eram. Certo grupo é “fascista” costuma funcionar para as bases covardes que repetem como papagaios o que o tirano profana.

O passado e o futuro
Reescreva a história
. Esse ponto é crucial! Orwell disse: “Aquele que controla o passado controla o futuro”. Hitler ordenou que o alto comando nazista destruísse os memoriais da Primeira Guerra Mundial na Europa ocupada, em uma tentativa de apagar as memórias da derrota da Alemanha. Stalin modificou uma foto sua com Lenin, e a foto adulterada mostra Stalin sentado mais perto de Lenin do que realmente era, parecendo maior do que na foto original e sem as marcas que a varíola infantil deixou em seu rosto. 
 
Estátuas de homens corajosos? Livros inspiradores? História? Deus me livre. Aliás, use “Deus” sempre que necessário e sem moderação, mesmo você achando religião um porre de chatice. Eu sei, o deus é você, mas eles não precisam saber disso, só te obedecer.
Corrompa tudo, até a ciência: o Terceiro Reich controlava rigidamente quais áreas da ciência poderiam ser estudadas e debatidas, rejeitando a física quântica e encorajando a ‘física ariana’. Na verdade, Francisco Franco dissolveu o conselho de pesquisa científica da Espanha, e Stalin apoiou Trofim Lysenko, um biólogo agrícola que fez coisas como expor grãos de alimentos ao frio extremo, acreditando que isso ajudaria as futuras gerações de grãos a se tornarem resistentes ao frio. 
 
Aliado a isso, censure tudo. Gente chata e perigosa que questiona tudo, que tem perguntas demais. Se até Sherlock Holmes foi banido da União Soviética, talvez porque o Estado não quisesse arriscar que seus cidadãos olhassem para alguém que pensasse criticamente, o que são contas de cientistas e jornalistas em redes sociais derrubadas? Nada. Perturbou? Arranca o passaporte e bloqueia as contas bancárias. Como você acha que os Reichs se sustentam? Com dinheiro dado em árvores?

Nós contra eles
A série mostra para você, aspirante a ditador, outro ponto importante em sua caminhada à glória tirânica. Elimine a confiança do ser humano e entre eles. Quebrar os laços de confiança dentro da sociedade em geral é uma ótima maneira de unificar a própria base de apoio. 
Os ditadores entendem que as pessoas se entregam voluntariamente ao poder do Estado, porque tudo e todos são suspeitos. Se Stalin pudesse rotular até mesmo os heróis da revolução russa como traidores no Grande Terror (1936-1938), no qual 750 mil pessoas foram mortas, que confiança sobreviveria no restante da população? A lógica do líder soviético era: “Se você matar cem pessoas e apenas cinco delas forem inimigas do povo, não é uma proporção ruim”. O “nós contra eles” é outra preciosidade, se agarre nisso. Negros contra brancos, mulheres contra homens, filhos contra pais. Divida para conquistar e mostre a todos que só você pode salvar as pessoas do mal, inclusive, delas mesmas.

E, por falar em filhos, doutrine a juventude. Os ditadores não querem jovens educados e estudiosos. Eles querem que os jovens sejam educados apenas o suficiente para produzir — seja dinheiro, agitação civil ou caos — para os propósitos do ditador e seus comparsas. É por isso que toda ditadura trabalha horas extras para destruir instituições de ensino de dentro para fora. Essa semente é minuciosamente levada para o seio familiar e ali germinará mais divisão. Pais e filhos, então, encontrarão a resposta para os problemas em… você! Bingo!

As ditaduras se modificam ao longo do tempo, mas as táticas apenas se travestem sem perder a sua essência. E essa é básica, mas eficiente. Deixe as pessoas com fome. A fome e a pobreza são talvez as ferramentas mais cruéis no arsenal de um ditador, mas a lógica é simples. Pessoas famintas e ignorantes não serão capazes de lutar contra você.    A China e a União Soviética testemunharam fomes terríveis nos regimes de Mao e Stalin. 
Kim Jong Il também presidiu a fome na Coreia do Norte, enquanto vivia em um luxo fantástico. 
Sem água e sem comida, o povo sofrido vai mendigar e aceitar qualquer esmola que você ofereça. Assim, eles não perturbarão suas viagens de jatinhos, suas compras de relógios caros, seus vinhos portugueses premiados e seus passeios para fora do seu caótico país.
Agora, se essas são as qualidades que podem definir um tirano em potencial, existem algumas que são mais importantes que outras para atrair seguidores firmes e leais. 
Depois de estabelecer a promessa de que você pode criar um mundo melhor para todos, não se preocupe se isso jamais acontecer, não é necessário ter sucesso. Essa coisa de “mundo melhor” é historinha pra boi dormir, mas a promessa deve permanecer perene e a crença de que você está cada vez mais perto da entrega deve ser inquestionável. Mas atente-se: esta promessa por si só não é suficiente. O bom tirano também deve ser visto como o único homem que pode cumprir essa missão. Ele deve, portanto, ser reconhecido não apenas como a fonte de toda sabedoria, mas também como a fonte de toda virtude. Um culto à personalidade bondosa e sem defeitos é essencial, e, para isso, não esqueça jamais de plantar inúmeras $emente$ na imprensa para que suas mentiras sejam repetidas com a roupa da verdade até que elas virem verdade. Depois ajoelhe (coloque uma toalhinha para não ficar desconfortável) e agradeça a Joseph Goebbels pela graça concedida.

De vez em quando, um inimigo externo também ajuda. Saddam Hussein escolheu o Irã; Kim Il-sung, a Coreia do Sul; Hitler, a França e a Alemanha; e Stalin, a maior parte do resto do mundo.  

Mas ficou na dúvida ou não tem ninguém por perto? Seus problemas acabaram. Mire o “imperialismo estadunidense”, a “CIA”, os “ianques” e está tudo certo. Afinal, essa coisa de Land of free, home of the brave” (Terra da liberdade, lar dos bravos) pode ser um problemão pra você se criar asas no seu quintal.

Medo útil
Finalmente, os tiranos precisam estar preparados para o pior. Não tanto o seu desfecho, mas o fato de que sempre haverá críticos e até rebeldes. Gente chata, eu sei. Então, você precisa garantir que não saiam do controle. É aqui que o uso do medo é útil. Como dizem os livros concisamente, assim como a série da Netflix, “o melhor amigo de todo ditador é uma polícia secreta implacável”.  
Use o poder do Estado para silenciar seus oponentes e aqueles que estão preocupados com a liberdade e essa bobagem de “império das leis”. 
O que manteve a América unida desde a Guerra Civil não foi a Constituição ou a Declaração de Direitos (Bill of Rights). “Leis”Relaxa, isso não vai te ameaçar. A União Soviética também possuía “leis de direitos” que garantiam a “liberdade de expressão e direitos iguais”. Esqueça isso. 
Os bolcheviques assassinaram seus adversários políticos, enviaram seus dissidentes aos gulags, e Lavrentiy Beria, o chefe da polícia secreta mais implacável no reinado de terror de Joseph Stalin na Rússia e na Europa Oriental, se gabava de poder provar uma conduta criminosa contra qualquer pessoa, até mesmo um inocente: “Mostre-me o homem e eu lhe mostrarei o crime”. Aprendeu?

Eu não poderia encerrar esse artigo sobre essa boa série da Netflix sem algumas frases e conclusões da própria série sobre os pontos que ligam ditadores de todas as cores às páginas da história:

“Não basta ser um líder, é preciso também ter uma iconografia”;

“Mostre que seus inimigos também são inimigos do povo”;

“Os ditadores em potencial costumam ser extremamente narcisistas. Eles se mostram como pessoas comuns, mas são muito diferentes das pessoas comuns”;

“O ser humano adora ser governado”;

“Uma boa maneira de permanecer no poder é dar propinas e oportunidades à sua colisão, fazendo com que ela se torne corrupta”;

“O melhor amigo de um ditador é um agente corrupto, eficaz e implacável”.

Bem, segundo a série, se você já fez tudo isso, você está pronto para ser um ditador. Mas o sucesso cria suas próprias demandas. Quando você alcança o topo da árvore, pode ser chato ficar sozinho
Os tiranos nunca estão sozinhos, mas precisam se divertir, e, para isso, há o ritual de humilhação daqueles ao seu redor. Lance pérolas!  
Isso geralmente é o suficiente para transformar as pessoas em porcos! 
Dê a seus aliados e apoiadores oportunidades de serem corruptos. Primeiro, é divertido vê-los lutando pelas migalhas que você jogou em sua direção, mas o mais importante é que, quando mordiscarem, eles permanecerão leais. Dali em diante você poderá fazer gestos de degolar pescoço e até dar tapinhas na cara das pessoas. Tudo em público, lógico! Que graça teria se não fosse na frente de todo mundo?
 
A série Como Se Tornar um Tirano vem cheia de ironia, mas não deixa de ser um material informativo para aqueles que se perguntam como os déspotas conseguiram obter o controle dos países, mesmo em um século em que a democracia se consolidou. 
 Série muito interessante para ser vista, mas mais interessante ainda é perceber o quanto os espectadores se encontram ali, diante de si mesmos, de seus governantes e de seu país.

E, o mais importante, o que eles fazem ou farão diante da fina ironia que mostra duras verdades.

Leia também “As lições de 1940 para 2023”

Ana Paula Henkel, colunista  - Revista Oeste