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domingo, 25 de junho de 2023

Censurado por “subversão”: lei da ditadura serve de inspiração para STF - Gazeta do Povo

Por Hugo Freitas Reis, especial para a Gazeta do Povo

STF - Artigo

O apresentador de podcasts Bruno Monteiro Aiub, o Monark, foi alvo de nova ordem de bloqueio de redes sociais, divulgada nesta quarta-feira (14), proferida pelo ministro do STF Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito 4.923, desdobramento do Inquérito das Fake News, também chamado por alguns de "Inquérito do Fim do Mundo".  
O episódio suscitou controvérsia, levantando as mesmas duas perguntas que periodicamente retornam ao noticiário em se tratando do mencionado inquérito:  
1) isso é crime?; 
2) um ministro do Supremo Tribunal Federal tem poderes para fazer isso?

No mais das vezes, a resposta para as duas perguntas tem sido não. Ao menos, segundo a lei brasileira atual. Mas uma leitura de leis antigas, já revogadas, de períodos menos democráticos da nossa história, pode produzir conclusões surpreendentes.

O nascimento do "Inquérito do Fim do Mundo"
O episódio mais polêmico do Inquérito do Fim do Mundo foi a sua instauração, promovida, recorde-se, em reação a cidadãos privados que, por meios diversos, tinham proferido palavras críticas ou danosas à reputação de ministros do STF. Até onde se saiba, nenhum destes cidadãos fazia parte do seleto rol de autoridades cujos crimes, pela Constituição, devem ser julgados pelo tribunal.

 

Assim, desde o início, já se tinha um óbvio problema de incompetência de juízo (o mesmo fundamento, por exemplo, que, dois anos depois, seria invocado pelo próprio tribunal para anular as condenações do ex-presidente Lula). 
Se os ministros do STF já não tinham autoridade legal para julgar os supostos crimes, atrair os casos para a sua alçada se tornava ainda mais temerário pelo fato de os próprios ministros figurarem como vítimas, dando margem a um potencial problema processual ainda mais grave, o impedimento ou suspeição do juízo.

Como se não bastassem estes problemas, a forma de determinação da relatoria do inquérito, dentro do tribunal, foi em si mesma controversa.

No nosso sistema jurídico, a atribuição de juiz à causa é feita por sorteio. As razões disto são óbvias
- a regra se destina a fornecer uma camada a mais de garantia de imparcialidade, evitando tanto o forum shopping (a escolha estratégica, por uma das partes, de um juiz ou órgão judicial específico, tendo razões para escolher um que considere mais favorável para si) 
- quanto a ação voluntariosa de juízes, que, de outra forma, poderiam tomar a iniciativa de se adiantar aos outros na assunção de casos, o que sugeriria um ânimo incompatível com a imparcialidade.

No entanto, o então presidente do tribunal, Dias Toffoli (ele próprio vítima dos primeiros supostos crimes a serem alvos de medida cautelar), ao instaurar o inquérito de ofício, deixou de aplicar a regra do sorteio, escolhendo a dedo o ministro Alexandre de Moraes para conduzir o inquérito.

O que dava ao presidente do STF poderes para proceder desta forma? Toffoli invocou o art. 43 do Regimento Interno do STF: Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.”

Ocorre que é evidente a olho nu que o artigo não se aplicava ao caso, seja porque não se cogitava que qualquer (suposta) infração à lei tivesse ocorrido dentro do tribunal (mas sim, por exemplo, na distante redação d’O Antagonista), seja porque, independentemente disto, nem sequer se cogitava que as supostas infrações envolvessem pessoa sujeita à jurisdição do STF.  
Como já foi dito, tratavam-se de cidadãos privados, com foro na Justiça comum ­— alguns dos quais já tinham, inclusive, sido julgados e inocentados por esta, tornando o Inquérito 4.781, além de tudo, eivado de ofensa à autoridade da coisa julgada dos demais juízes.

Portanto, o art. 43 do Regimento Interno não era capaz de fornecer a resposta.

A resposta estava no Brasil colônia
Esta situação, naturalmente, provocou perplexidade na comunidade jurídica, que, por mais que se esforçasse em procurar, não conseguia encontrar em todo o ordenamento brasileiro qualquer dispositivo que autorizasse os procedimentos adotados pelo STF.

O problema, o tempo todo, foi que se limitaram a consultar as leis que ainda eram vigentes.

Por acaso, certa vez consultei as antigas Ordenações Filipinas, promulgadas pela monarquia absolutista portuguesa em 1603 e vigentes no Brasil durante séculos
Sua aplicação mais famosa, certamente, foi o esquartejamento de Tiradentes, com cada um de seus pedaços (cabeça, braços) sendo exibido em uma cidade diferente, para advertir a população do que acontecia com o súdito que fosse insubordinado ao seu soberano.  
O aspecto brutal da lei às sensibilidades atuais se deve ao seu contexto pré-iluminista, em que pouco zelo havia em limitar os poderes das autoridades de Estado.

Um dos dispositivos das Ordenações tem surpreendente semelhança com a situação narrada. Trata-se da seção intitulada “Dos que dizem mal del-Rey”, com o seguinte tipo penal: “O que disser mal de seu Rey, não será julgado per outro Juiz, senão per elle mesmo, ou per as pessoas, a quem o elle em special commeter. E ser-lhe-ha dada a pena confórme a qualidade das palavras, pessoa, tempo, modo e tenção, com que forem ditas. A qual pena, se poderá estender até morte inclusive, tendo as palavras taes qualidades, porque a mereça.”

O caso Monark
Quem leu a decisão determinando nova censura aos canais de Monark se surpreendeu pela ausência de referência a qualquer crime que o apresentador pudesse ter cometido. 
Talvez seja útil repetir a técnica da pesquisa histórica, para desvanecer também aqui a perplexidade.

Embora a decisão não cite nenhum artigo de lei, nela, o ministro Alexandre de Moraes faz abundantes referências a “notícias falsas” e descreve os discursos de Monark como tendo conteúdo de “subversão”. Esta palavra soou antiquada ao meu ouvido, remetendo a contextos ditatoriais. Realizei então uma pesquisa da palavra na base de dados da legislação brasileira.

Algumas poucas leis usam “subversão” para se referir a motins de detentos em estabelecimentos prisionais, a serem reprimidos pelos agentes penitenciários.  Quase todas as outras são leis da ditadura militar, hoje revogadas ou não-recepcionadas, voltadas, presumivelmente, à repressão dos subversivos comunistas. 
 As leis restantes eram as primeiras versões da Lei de Segurança Nacional, promulgadas por Getúlio Vargas, antes de serem substituídas pela Lei de Segurança Nacional da ditadura militar, em 1983. Esta versão chegou a ser usada pelo STF no Inquérito do Fim do Mundo, antes de ser revogada em 2021, por uma lei que já não mais usa o termo “subversão”, retirando-o da lei criminal brasileira.

De todas essas leis abolidas, a melhor candidata para fundamentar as medidas hodiernas do STF é a Lei de Imprensa, de 1967 — paradoxalmente, declarada pelo próprio tribunal como não-recepcionada pela Constituição de 1988 —, que, além de reprimir a subversão, também criminalizava, ora vejam, “notícias falsas” (“ou fatos verdadeiros truncados ou deturpados”, donde se vê que, à frente do seu tempo, a lei já previa o moderníssimo conceito de “desordem informacional”) e proibia conteúdo que atentasse contra a “moral” (evocando os termos da acusação feita pelo ministro Alexandre para criminalizar a manifestação do Telegram contra o PL da Censura).

 

Os insatisfeitos com a derrota do PL da Censura no Congresso têm feito apelo para que o STF imponha as novas regras de censura mesmo assim, na marra. 
O ministro Alexandre de Moraes já fez insinuação neste sentido
Fica, então, a sugestão para uma forma inteligente de fazê-lo, dadas as limitações de um Poder que, teoricamente, não poderia criar leis: se o tribunal já disse que certas leis são incompatíveis com a Constituição, basta desdizer. Ressuscitem as leis da ditadura.

Hugo Freitas é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais

 


domingo, 29 de agosto de 2021

O DIA EM QUE COMEÇOU A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL - Percival Puggina

Há exatos 199 anos, no dia 28 de agosto de 1822, chegou ao porto do Rio de Janeiro um navio português. Chamava-se Três Corações, nome sugestivo quando faz pensar no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, que se romperia com as determinações que vinham a bordo. Eram ordens alarmantes expedidas pelas Cortes Extraordinárias da Nação Portuguesa.

O príncipe D. Pedro, regente, que desatendera exigência anterior de voltar a Lisboa, teria suas atribuições limitadas ao Rio de Janeiro e perdia a condição de regente. Seus ministros seriam nomeados em Portugal. Seus anteriores “Cumpra-se”, cancelados. As demais províncias se reportariam diretamente a Lisboa. O Brasil perderia seu status e se converteria, na prática, em colônia portuguesa. Entendiam os constituintes lusitanos que nossa economia deveria suprir urgências da nascente monarquia constitucional portuguesa cujas dificuldades fiscais e pobreza eram atribuídas aos “privilégios” a nós concedidos pela família real.

Até então, o Brasil nunca fora, uma “colônia”. Os documentos oficiais sempre se referiam ao Brasil como Estado do Brasil (e, desde 1645, como Principado do Brasil). Vigoravam aqui as mesmas Ordenações Filipinas vigentes em Portugal, utilizadas até a promulgação do nosso próprio Código Civil, em plena República, no ano de 1921. O Brasil era tão membro do reino que nossas províncias tinham direito a 70 representantes nas Cortes Extraordinárias. Quarenta e nove foram para Lisboa, mas chegaram tarde e não conseguiam ser ouvidos.

As Cortes, instituídas em 1821 como desdobramento da Revolução do Porto (1820), haviam sido saudadas, em todo o reino, como adequação portuguesa ao modelo das monarquias constitucionais em generalizado processo de adoção pelas dinastias europeias. No entanto, seus membros, entre os quais os portugueses eram amplamente majoritários, não olhavam para o Brasil com olhos fraternos. Precisavam de soluções econômicas brasileiras para as dificuldades de Portugal.

As determinações desembarcadas no dia 28 de agosto surtiram efeito contrário. Acionaram o gatilho da nossa independência como nação soberana.

Os cinco dias seguintes foram de nervosos entendimentos no Conselho de Ministros, sob a liderança de D. Leopoldina, que estava no exercício das funções de regência,  e José Bonifácio. No dia 2 de setembro, D. Leopoldina assinou o decreto de Independência. Após estafante cavalgada em que 500 quilômetros foram vencidos em cinco dias, chegaram a D. Pedro as notícias e o apelo de José Bonifácio. O resto todos sabem.

Escrevo estas linhas em homenagem a duas figuras Bonifácio e Leopoldina que deixaram de ser exaltadas pelos nossos contadores de História, mais preocupados com buscar o pouco que nos divide do que em apreciar o muito que nos une como nação. Estamos colhendo os frutos desse maligno trabalho.

Os portugueses defendendo o território; D. João VI trazendo a sede do reino para o Brasil; D. Pedro, D. Leopoldina e José Bonifácio fazendo nossa Independência, mantiveram o Brasil territorialmente unido. 

Juntos pelo Brasil no 7 de setembro!

Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.