Por Hugo Freitas Reis, especial para a Gazeta do Povo
STF - Artigo
O apresentador de podcasts Bruno Monteiro Aiub, o
Monark, foi alvo de
nova ordem de bloqueio de redes sociais,
divulgada nesta quarta-feira (14),
proferida pelo ministro do STF
Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito 4.923, desdobramento do
Inquérito das Fake News, também chamado por alguns de "Inquérito do Fim
do Mundo". O episódio suscitou controvérsia, levantando as mesmas duas
perguntas que periodicamente retornam ao noticiário em se tratando do
mencionado inquérito:
1) isso é crime?;
2) um ministro do Supremo
Tribunal Federal tem poderes para fazer isso?
No mais
das vezes, a resposta para as duas perguntas tem sido não. Ao menos,
segundo a lei brasileira atual. Mas uma leitura de leis antigas, já
revogadas, de períodos menos democráticos da nossa história, pode
produzir conclusões surpreendentes.
O nascimento do "Inquérito do Fim do Mundo"
O episódio mais polêmico do Inquérito do Fim do Mundo foi a sua instauração, promovida, recorde-se, em reação a cidadãos privados que, por meios diversos, tinham proferido palavras críticas ou danosas à reputação de ministros do STF. Até onde se saiba, nenhum destes cidadãos fazia parte do seleto rol de autoridades cujos crimes, pela Constituição, devem ser julgados pelo tribunal.
Assim,
desde o início, já se tinha um óbvio problema de incompetência de juízo
(o mesmo fundamento, por exemplo, que, dois anos depois, seria invocado
pelo próprio tribunal para anular as condenações do ex-presidente
Lula).
Se os ministros do STF já não tinham autoridade legal para julgar
os supostos crimes, atrair os casos para a sua alçada se tornava ainda
mais temerário pelo fato de os próprios ministros figurarem como
vítimas, dando margem a um potencial problema processual ainda mais
grave, o impedimento ou suspeição do juízo.
Como se não
bastassem estes problemas, a forma de determinação da relatoria do inquérito,
dentro do tribunal, foi em si mesma controversa.
No nosso
sistema jurídico, a atribuição de juiz à causa é feita por sorteio. As razões
disto são óbvias:
- a regra se destina a fornecer uma camada a mais de garantia
de imparcialidade, evitando tanto o forum shopping (a escolha
estratégica, por uma das partes, de um juiz ou órgão judicial específico, tendo
razões para escolher um que considere mais favorável para si)
- quanto a ação
voluntariosa de juízes, que, de outra forma, poderiam tomar a iniciativa de se
adiantar aos outros na assunção de casos, o que sugeriria um ânimo incompatível
com a imparcialidade.
No entanto, o então presidente
do tribunal, Dias Toffoli (ele próprio vítima dos primeiros supostos
crimes a serem alvos de medida cautelar), ao instaurar o inquérito de
ofício, deixou de aplicar a regra do sorteio, escolhendo a dedo o
ministro Alexandre de Moraes para conduzir o inquérito.
O que dava
ao presidente do STF poderes para proceder desta forma? Toffoli invocou o art.
43 do Regimento Interno do STF: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou
dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver
autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a
outro Ministro.”
Ocorre que é evidente a olho nu
que o artigo não se aplicava ao caso, seja porque não se cogitava que
qualquer (suposta) infração à lei tivesse ocorrido dentro do tribunal
(mas sim, por exemplo, na distante redação d’O Antagonista),
seja porque, independentemente disto, nem sequer se cogitava que as
supostas infrações envolvessem pessoa sujeita à jurisdição do STF.
Como
já foi dito,
tratavam-se de cidadãos privados, com foro na Justiça comum
—
alguns dos quais já tinham, inclusive,
sido julgados e inocentados por esta, tornando o Inquérito 4.781, além de tudo,
eivado de ofensa à autoridade da coisa julgada dos demais juízes.Portanto, o
art. 43 do Regimento Interno não era capaz de fornecer a resposta.
A resposta estava no Brasil colôniaEsta situação, naturalmente,
provocou perplexidade na comunidade jurídica, que, por mais que se esforçasse em procurar,
não conseguia encontrar em todo o ordenamento brasileiro qualquer dispositivo que autorizasse os procedimentos adotados pelo STF.O problema,
o tempo todo, foi que se limitaram a consultar as leis que ainda eram vigentes.
Por acaso, certa
vez consultei as antigas Ordenações Filipinas, promulgadas pela monarquia
absolutista portuguesa em 1603 e vigentes no Brasil durante séculos.
Sua
aplicação mais famosa, certamente, foi o esquartejamento de Tiradentes, com
cada um de seus pedaços (cabeça, braços) sendo exibido em uma cidade diferente,
para advertir a população do que acontecia com o súdito que fosse insubordinado
ao seu soberano.
O aspecto brutal da lei às sensibilidades atuais se deve ao
seu contexto pré-iluminista, em que pouco zelo havia em limitar os poderes das
autoridades de Estado.
Um dos
dispositivos das Ordenações tem surpreendente semelhança com a situação narrada.
Trata-se da seção intitulada “Dos que dizem mal del-Rey”, com o seguinte tipo
penal: “O que disser mal de seu Rey, não será julgado per outro Juiz, senão per
elle mesmo, ou per as pessoas, a quem o elle em special commeter. E ser-lhe-ha dada
a pena confórme a qualidade das palavras, pessoa, tempo, modo e tenção, com que
forem ditas. A qual pena, se poderá estender até morte inclusive, tendo
as palavras taes qualidades, porque a mereça.”
O caso Monark
Quem leu a decisão determinando nova censura aos canais de Monark se surpreendeu pela ausência de referência a qualquer crime que o apresentador pudesse ter cometido.
Talvez seja útil repetir a técnica da pesquisa histórica, para desvanecer também aqui a perplexidade.
Embora a
decisão não cite nenhum artigo de lei, nela, o ministro Alexandre de Moraes faz
abundantes referências a “notícias falsas” e descreve os discursos de Monark
como tendo conteúdo de “subversão”. Esta palavra soou antiquada ao meu ouvido,
remetendo a contextos ditatoriais. Realizei então uma pesquisa da palavra na
base de dados da legislação brasileira.
Algumas
poucas leis usam “subversão” para se referir a motins de detentos em
estabelecimentos prisionais, a serem reprimidos pelos agentes
penitenciários. Quase
todas as outras são leis da ditadura militar, hoje revogadas ou
não-recepcionadas, voltadas, presumivelmente, à repressão dos
subversivos comunistas.
As leis restantes eram as primeiras versões da
Lei de Segurança Nacional, promulgadas por Getúlio Vargas, antes de
serem substituídas pela Lei de Segurança Nacional da ditadura militar,
em 1983. Esta versão chegou a ser usada pelo STF no Inquérito do Fim do
Mundo, antes de ser revogada em 2021, por uma lei que já não mais usa o
termo “subversão”, retirando-o da lei criminal brasileira.
De
todas essas leis abolidas, a melhor candidata para fundamentar as
medidas hodiernas do STF é a Lei de Imprensa, de 1967 — paradoxalmente,
declarada pelo próprio tribunal como não-recepcionada pela Constituição
de 1988 —, que, além de reprimir a subversão, também criminalizava, ora
vejam, “notícias falsas” (“ou fatos verdadeiros truncados ou
deturpados”, donde se vê que, à frente do seu tempo, a lei já previa o
moderníssimo conceito de “desordem informacional”)
e proibia conteúdo que atentasse contra a “moral” (evocando os termos
da acusação feita pelo ministro Alexandre para criminalizar a
manifestação do Telegram contra o PL da Censura).
Os
insatisfeitos com a derrota do PL da Censura no Congresso têm feito
apelo para que o STF imponha as novas regras de censura mesmo assim, na
marra.
O ministro Alexandre de Moraes já fez insinuação neste sentido.
Fica, então, a sugestão para uma forma inteligente de fazê-lo, dadas as
limitações de um Poder que, teoricamente, não poderia criar leis: se o
tribunal já disse que certas leis são incompatíveis com a Constituição,
basta desdizer. Ressuscitem as leis da ditadura.
Hugo Freitas é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais