Maria Cristina Fernandes
[esperamos que os que comprarem o livro 'O Cadete e o
Capitão', obtenham um esclarecimento válido sobre o que motivou oficiais superiores do Exército Brasileiro, inocentarem um Capitão.
Os oito ministros militares que participaram do julgamento no STM, são oficiais generais, quatro estrelas, portanto, sem nenhum motivo para facilitarem a vida de um oficial intermediário, caso a acusação procedesse.
Inisistimos que um capitão, ao fazer um curso de paraquedismo da Aman, não volta a ter o status de cadete.
Nos corredores do estúdio onde seria gravada a entrevista para o "Jornal
Nacional", durante a campanha presidencial, o então candidato do PSL
contou ter encontrado, num aeroporto, Cássia Maria Rodrigues. A
jornalista escrevera a reportagem da "Veja" sobre os planos do capitão
Jair Bolsonaro de explodir bombas na adutora do Guandu, responsável pelo
abastecimento do Rio de Janeiro, na Academia Militar das Agulhas Negras
e em vários quartéis. "Deputado, sou a Cassia, aquela repórter de
'Veja' que denunciou o senhor'. Eu disse para ela: 'Que denunciou que
nada! Você me catapultou para a política!'"
Semanas antes do encontro com a jornalista, Bolsonaro ficara 15 dias em
prisão disciplinar por ter assinado artigo, também na "Veja", sob o
título "O salário está baixo". Como fora insuficiente para arrancar do
então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, e do presidente
José Sarney um reajuste mais robusto, o capitão radicalizou a estratégia
e decidiu e revelá-la à repórter. A conversa tivera o compromisso de
sigilo da fonte, mas ante a gravidade dos planos anunciados, a
publicação resolvera dar à reportagem o tom de denúncia.
A história, contada no livro de Luiz Maklouf Carvalho, "O Cadete e o
Capitão" (Todavia, 2019), [pelo comportamento de parte da imprensa, fica claro o objetivo desse livro suplantar a Biblia, em vendagem.
Lembramos que por ser um processo público, qualquer parte do livro que receber questionamentos pode ser comparada com os autos e se saber se expressa a verdade ou uma interpretação.] revela engrenagens, até então desconhecidas,
do julgamento no Superior Tribunal Militar que inocentou Bolsonaro por
nove votos a quatro. Passaram-se 31 anos, mas a reconstituição feita
pelo jornalista dos liames entre caserna, toga, imprensa e política é de
assustadora contemporaneidade com o Brasil da #Vazajato.
A começar pelas manipulações do julgamento. O eixo do veredito foi um
suposto empate entre quatro laudos periciais sobre croquis feitos por
Bolsonaro para mostrar à repórter como seriam detonadas as bombas na
adutora. Em caso de dúvida, beneficia-se o réu, diz o preceito jurídico,
mas o livro revela que, na verdade, não houve empate. A dois laudos inconclusivos do Exército, somou-se um outro da Polícia
Federal, taxativo, sobre a autoria dos desenhos. Depois deste terceiro
laudo, foi pedida uma complementação da segunda perícia do Exército, que
concluiu pela autoria de Bolsonaro. Havia, portanto, três laudos, dois
dos quais associavam o capitão aos croquis.
Quem conduziu a tese de que se tratava de quatro laudos foi o réu, que
fez, de próprio punho, sua defesa no Superior Tribunal Militar,
instância à qual o processo fora enviado depois que o Conselho de
Justificação do Exército, por três votos a zero, o condenara. A
autodefesa rememora episódios de heroísmo como aquele em que salvara um
sargento negro de afogamento durante uma instrução militar e deixa claro
que nascia ali uma carreira política. Na instância anterior se fizera representar por dois escritórios de
advocacia. No tribunal, mudou, além da tese, a roupagem da defesa: "Além
de oneroso para minhas condições financeiras, entende desnecessário
comprovar-me juridicamente honrado. Sou, de fato, honrado, por todos os
atos que pratiquei, como soldado e cidadão. Para enunciá-los, ninguém
melhor do que eu próprio".
O germe da política, na verdade, já se mostrara desde o artigo que
precedeu o planejamento das bombas. O capitão antecipou ali o slogan
que, mais de três décadas depois, embalaria sua vitória na disputa pelo
Palácio do Planalto. "Brasil acima de tudo", concluía o texto. Nas 26 páginas de sua defesa, entregue ao STM, o capitão, que depois
ficaria conhecido no Brasil inteiro pela frequência com a qual recita o
versículo bíblico "conheceis a verdade e a verdade vos libertará"
(8:32), admitiu encontros com a repórter antes negados, relativizou a
mudança de versão e se fixou na tese de empate dos laudos: "Mesmo
admitindo que houvesse mentira, como tenta insinuar o libelo acusatório,
o fato de 'faltar a verdade' não incapacita ninguém para o oficialato".
A jornalista que o candidato acabaria por admitir ter-lhe propiciado
notoriedade para a política seria tratada por um dos ministros do
tribunal como "perigosa". Foi o mesmo adjetivo utilizado para enquadrar
alvos de deportação na portaria 666, editada pelo ministro Sérgio Moro
em meio à revelação, pelo jornalista americano Glenn Greenwald, de
mensagens entre o então juiz da Lava-Jato e o procurador Deltan
Dellagnol. [atribuir à Portaria o número 666, foi extremamente adequado, para designar o instrumento legal que permite expulsar do território nacional os indesejáveis, por ser o número da besta do Apocalipse e serve para eliminar o mal.]
Dos 15 ministros do tribunal que julgou Bolsonaro, 13 compareceram, oito
militares e cinco civis. Entre aqueles que participaram do julgamento,
oito haviam sido nomeados durante a ditadura. Ante o voto de um dos
civis indicados por Sarney, José Luiz Clerot, o almirante de esquadra
Roberto Cavalcanti completaria a frase anunciada na defesa de Bolsonaro e
que três décadas depois lhe inspiraria a campanha presidencial: "Deus
salve o Brasil". [o placar de 9 a 4 elimina qualquer insinuação de que os militares formaram ao lado do acusado Bolsonaro, que teve o voto de um dos ministros civis.]
Em seu voto, Clerot, que servira como oficial de gabinete do presidente
deposto João Goulart, desmascarou a tese dos quatro laudos, defendeu a
imprensa e denunciou a indisciplina militar do capitão: "Nunca, nem
antes de 1964, se não me falha a memória, um capitão teve a coragem de
afrontar um chefe militar como se afrontou".
Antes de planejar explodir uma adutora na segunda maior cidade do país, o
capitão havia acumulado em sua carreira no Exército afrontas à
hierarquia militar nem sempre punidas. Maklouf cita passagem do livro do
filho mais velho do presidente da República, o senador Flávio Bolsonaro
("Mito ou Verdade", Altadena, 2017), em que o então cadete teria
enfrentado um major que queria impedi-lo de fazer o curso de
paraquedismo. [contestar por escrito, em termos respeitosos, argumentação de um oficial superior não representa quebra de hierarquia, especialmente quanto se trata do afirmado em um laudo ou documento equivalente;
Para lembrete, virou tradição no Brasil atestado de óbito que não aponta a causa da morte - primeiramente por não ter havido exame do cadáver e em segundo atribuir uma morte a maus tratos (sem descrevê-los) é transformar o laudo em uma peça de ficção.
Um coronel dentista sugeriu sua reprovação por causa de uma cárie. O
cadete teria feito uma obturação de emergência para nova avaliação
médica e, na hora da escolha, o major responsável disse que ele ficara
de fora por ter sido reprovado no exame odontológico. Ante uma acareação
com o coronel dentista que confirmou a reprovação, e diante do major e
do coronel responsável pelo Corpo de Cadetes, Bolsonaro, segundo seu
filho, teria dito: "O senhor está mentindo coronel". [a frase é atribuída ao filho do capitão e foi dita em um livro - assim não é uma prova cabal do que seria um indisciplina, não por contestar afirmação de um superior em um laudo pericial e sim pelos termos ofensivos empregados.
Estranhissimo é que um oficial intermediário - capitão - seja considerado cadete.
Devemos ter presente que o livro lançado pelo senador, ocorreu às vésperas de sua campanha eleitoral, ocasião adequado para exageros. - comuns a qualquer político.]
A afronta pública a um superior hierárquico não apenas não foi punida
como não o impediu de ser incorporado ao curso de paraquedismo da Aman. O
cadete tampouco foi punido quando, internado em função de um acidente
de paraquedas, foi colocado, segundo Flávio, numa ala de aidéticos, o
que afugentava as visitas. Um major amigo que foi visitá-lo atendeu suas
súplicas e o teria tirado dali nas costas. A evasão do hospital,
transgressão ao Regulamento Disciplinar do Exército, gravíssima, segundo
Maklouf, tampouco foi punida. Bolsonaro voltaria ao hospital para ser
operado. A decisão de incorporar os relatos, mais que autorizados, à biografia,
lançada no início da campanha de Flávio ao Senado, mostra de que maneira
a família valora a representação de injustiçados, ainda que em afronta
às instituições, como parte de seu ethos político. Ao contrário do que
acontece com a maioria de seus eleitores, o Bolsonaro da biografia
oficial não apenas não é punido como ainda é recompensado por suas
transgressões.
Além da indisciplina, seus superiores hierárquicos também fizeram vista
grossa a bicos que o capitão fez ao longo de sua permanência para
complementar o soldo militar. As idas repetidas ao comércio de Ciudad
del Este, na época em que serviu em Nioaque (MT), ficaram restritas a
relatório do SNI, mas foi sua incursão, em férias, pelo garimpo, na
Bahia, que chegou mais perto de ser repreendida. Seu superior hierárquico anotou na sua ficha "excessiva ambição em
realizar-se financeira e economicamente". A anotação, único tom
dissonante em sua ficha de serviços até a detenção pelo artigo em
"Veja", acabaria por contribuir para os 3 x 0 desfavoráveis ao capitão
no Conselho de Justificação, mas foi desconsiderada pelo STM.
O presidente da República hoje dá sinais de que pretende descumprir a
tradição, adotada a partir de 2003, de pinçar um dos nomes da lista
tríplice do Ministério Público para a Procuradoria-Geral da República. A
disposição é alimentada pelo processo que envolve as mesadas no
gabinete de Flávio Bolsonaro, acusado de herdar a ambição financeira do
pai. A desconfiança, porém, vem de longe. [se tratando de Bolsonaro, até o ato de exercer uma atribuição constitucional que lhe é conferida pela Constituição Federal, se torna um ato errado. Paciência. Acusem o capitão, mas, com fatos.]
Na peça de acusação, o representante do Ministério Público Militar não
chegou a entrar na querela que envolvia a perícia dos laudos. Milton
Menezes da Costa Filho foi implacável, porém, ao advogar pela perda do
posto e da patente do capitão: "Como se apresentar um oficial perante
seus subordinados, arrastando um passado com um episódio tornado
público, tão comprometedor?" A sustentação oral do procurador, que não
era obrigatória no regimento da época, foi negada pelos ministros do
STM. A de Bolsonaro lhe seria franqueada, mas o capitão, que inicialmente
alegara insuficiência de recursos para sua contratação, a delegaria à
advogada Elizabeth Souto. O capitão que, três décadas depois, na
condição de presidente da República, gozaria do filho órfão de um
militante morto pela ditadura, foi representado num julgamento que o
catapultou para a política por uma advogada que defendia presos
políticos.
Depois de percorrer toda a documentação do julgamento, Maklouf conclui
que seu resultado decorreu de jogo combinado para inocentá-lo desde que
ele apressasse sua saída do Exército, o que acabaria ocorrendo seis
meses depois, quando elegeu-se vereador no Rio. A tese poderia ter sido
reforçada se alguns personagens-chave da história não tivessem se
recusado a falar com o autor - dos Bolsonaro aos três oficiais que, no
Conselho de Justificação, votaram por sua punição. O ápice da carreira de Bolsonaro, no entanto, acabaria por se tornar o
principal pilar da tese de que um cadete insubordinado não vira
comandante em chefe sem a complacência de seus superiores.