Resumo da reportagem
- O
presidente Lula defendeu a legitimidade democrática da Venezuela, uma
visão questionada por observadores e instituições internacionais.
- Relatórios
apontam que a Venezuela falha em critérios essenciais para democracia,
incluindo eleições justas, respeito aos direitos humanos, Estado de
direito, pluralismo político e participação cidadã.
- Acusações
sérias como manipulação de eleições, violações de direitos humanos e
censura à imprensa reforçam há uma ditadura na Venezuela: é um fato
objetivo, não flexível à relativização.
Na
quinta-feira passada (29), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu
uma resposta relativista a respeito da democracia ao ser questionado
durante entrevista na Rádio Gaúcha.
“Por que o senhor, seu governo e
parte da esquerda brasileira”, perguntou o jornalista Rodrigo Lopes,
“têm tanta dificuldade em considerar a Venezuela uma ditadura?”
Lula
respondeu que “a Venezuela tem mais eleições do que o Brasil” e que “o
conceito de democracia é relativo para você e para mim”. Ele também
sugeriu que a rádio mandasse um emissário para checar a legitimidade das
próximas eleições por lá.
“Presidente, eu fui preso na Venezuela três anos atrás”,
informou Lopes. “O senhor diria hoje que a Venezuela é uma democracia?” Em
resposta, Lula deu uma série de argumentos que sugerem que, para ele, a
resposta é afirmativa. “Tem gente que não quer aceitar o resultado eleitoral.
Nem todo mundo é como o Lula”, disse. Ele insinuou que o jornalista “não
conhece o assunto profundamente” e arrematou que “quem quiser derrotar o
[Nicolás] Maduro, derrote nas próximas eleições”.
Desde a sua fundação grega, o conceito de democracia é
submetido a amplos debates.
Isso não significa que todas as opiniões têm o
mesmo peso.
Um consenso pode ser claramente aferido de fontes como a Carta
Internacional dos Direitos Humanos (da ONU, que inclui a Declaração Universal
dos Direitos Humanos), a Comissão de Veneza, os Critérios de Copenhague (pré-requisitos
de inclusão da União Europeia), a Carta Democrática Interamericana (da OEA) e a
Carta Africana sobre Democracia, Eleições e Governança (da União Africana). Na
lista abaixo, que sintetiza esse consenso, a Venezuela falha em todos os
critérios como democracia.
1. Eleições livres e justasDemocracias devem ter um sistema para os cidadãos escolherem seus líderes por meio de eleições regulares e justas. Em dezembro de 2020,
houve eleições parlamentares na Venezuela. Contudo
, observadores viram claros sinais de ilegitimidade no pleito.A Universidade Católica Andrés Bello (Ucab, melhor
instituição de ensino superior da Venezuela) e o Instituto Internacional para a
Democracia e Assistência Eleitoral (Idea, entidade sediada em Estocolmo com 33
países membros, incluindo o Brasil) concluíram, em relatório conjunto, que a
ditadura de Nicolás Maduro manipulou o pleito pela eleição de um novo Conselho
Nacional Eleitoral sem a aprovação da Assembleia Nacional, a única casa
legislativa do país; intervenção de juízes em partidos, aumento ilegal do
número de parlamentares e ameaça a eleitores que, de alguma forma, dependessem
de auxílio do regime, além de supressão da liberdade de imprensa. Problemas
similares foram observados na votação de 2018 que “reelegeu” Maduro, para a
qual observadores internacionais não foram convidados.
2. Respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais
Regimes democráticos devem respeitar o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, bem como a liberdade de expressão, pensamento, imprensa, religião e reunião. O regime de Maduro viola todos esses direitos e liberdades.
O
Tribunal Penal Internacional (TPI) e o
Programa
Venezuelano de Educação-Ação em Direitos Humanos (Provea) acumulam milhares
de denúncias de tortura, espancamento, estupro, execução e cárcere ilegal. Desde
2013, são no mínimo 1600 torturados e 40 mil vítimas da violência estatal.
Essas
denúncias são corroboradas por mais de uma missão da ONU ao país e por grandes
organizações de direitos humanos como a Anistia Internacional e a Human
Rights Watch. Tramitam processos no TPI contra o regime ditatorial
venezuelano por crimes contra a humanidade.
No período aproximado de um ano e meio desde a reeleição
ilegítima de Maduro em 2018, a ONU registrou 6.856
execuções partindo diretamente de um órgão de repressão fundado pelo
ditador.
Há pesada censura e a imprensa não é livre.
Em 2013, 121
veículos operavam no país. Em 2021, o número baixou para 22. Esses poucos que
operam são submetidos a assédio constante, acusados de colaborar com forças
estrangeiras.
O judiciário capturado impõe pesadas multas de “difamação” quando
jornais fazem críticas ao regime. Na classificação do Repórteres sem
fronteiras, com 180 países, a Venezuela está na 159ª posição em liberdade de imprensa.
3. Estado de direito e governança democrática
Uma democracia pode até matar, pela via da pena de morte, mas isso deve ser previsto por lei e o amplo direito à defesa deve ser respeitado.
A ideia é resumida com o termo “império da lei” ou “governo da lei”.
As leis devem ser aplicadas de maneira igual, justa e consistente, com um judiciário independente e controle democrático sobre as forças militares e de segurança.
Mais uma vez, a Venezuela falha nisso. Não apenas pelas
violações já ilustradas, mas porque, em certo sentido, quem tem império no
regime é o narcotráfico
. Em vez de controle democrático, há traficantes
importantes nas forças armadas como Vladimir Padrino, Gerardo Rangel e Nestor
Reverol. A denúncia é do Departamento
de Tesouro dos EUA. O apreço pelo tráfico de cocaína, por exemplo,
data do início
da “revolução bolivariana” que implantou o regime ditatorial, o que leva
alguns analistas a caracterizar o país como refém de um “narcoestado”.
4. Pluralismo político e responsabilidade
Na democracia, a diversidade de opiniões políticas deve ser permitida e respeitada, com transparência nas ações do governo e responsabilização dos funcionários por suas ações.
Em 2020, o Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela,
capturado pela ditadura, destituiu autoridades e líderes de partidos políticos
da oposição e indicou outras pessoas para liderá-los, à revelia da vontade dos
membros. Foram alvos os partidos Voluntad Popular, Acción Democratica e Primero
Justicia, os principais da oposição ao PSUV — Partido Socialista Unido de
Venezuela, fundado pelo falecido ditador Hugo Chávez, antecessor de Maduro, em
2007.
Até os dias atuais, isso não mudou. Dias após a alegação de
Lula de que basta alguém concorrer contra Maduro para tirá-lo do poder, a
Controladoria-Geral da Venezuela tornou inelegível por 15 anos a pré-candidata
de oposição María Corina Machado, do partido de centro Vente Venezuela. A
Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos condenou
a decisão e a caracterizou como “contrária ao Estado de direito”.
Portanto, na Venezuela a diversidade política oficialmente reconhecida
é fajuta, manipulada pelo partido que detém o poder para assegurar sua própria
continuidade. A Anistia Internacional estimou que o país soma entre 240 e 310 presos
políticos recentemente.
5. Participação dos cidadãos
Uma democracia não se faz apenas do aparato estatal e as regras que ele segue. Os cidadãos devem ter o direito e os meios de participar do processo político, sem discriminação arbitrária. Como resultado de todas essas violações, o povo venezuelano está batendo em retirada.
Já são mais de sete milhões que fugiram da ditadura.
Como o país tinha 30 milhões de habitantes em 2015, o número dos que partiram desde então se aproxima de um terço.
Os dependentes do Estado são ameaçados caso pensem em votar na oposição, como denunciou a Anistia Internacional.
Como o jogo eleitoral não é limpo, muitos também boicotam as eleições.
A oposição pediu que seus eleitores se abstivessem no pleito de 2020. A abstenção atingiu 54%.