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sábado, 9 de fevereiro de 2019

"A tragédia Brasil"



Os antigos diziam que quando Deus criou o mundo juntou num pedaço da América do Sul um país com uma costa gigantesca e belas praias, ouro nas montanhas e sol nos dias de verão. Sem terremotos, vulcões, tsunamis nem outros acidentes naturais. Então, o anjo Gabriel chamou Sua atenção para a injustiça de tal privilégio. Consta que o Criador explicou: “vais ver o povinho que porei lá”. É uma piada preconceituosa e inominável diante de tudo o que tem acontecido ultimamente nestes tristes trópicos, neste país do carnaval e do futebol, a superar em tragédia o teatro grego antigo, culminando com a coincidência de mesclar paixão coletiva e dor pessoal.


A esperança de um futuro melhor para as promessas no sub 17 do Flamengo e uma vida melhor para seus entes queridos é substituída pela dor e pelo luto. Foto: Fábio Motta/Estadão
O incêndio do Centro de Treinamento (CT) do Flamengo com 10 mortos e 3 salvados do fogo parece mais um castigo divino, mas não é. É conjunção de canalhice com descaso, desídia e desumanidade, que já se haviam manifestado no incêndio do Museu Nacional e no estado lastimável que impede visitas ao Museu da Independência, no Ipiranga.

Essa mistura transforma nosso passado num monturo onde enterramos nossas oportunidades de aprender com erros e acertos que já cometemos. Os rejeitos minerais da Vale em Mariana, que mataram o Rio Doce, num descomunal assassinato ambiental, não serviram de alerta e três anos depois a lama seca de Brumadinho apodrece o Paraopeba e se prepara, de forma lenta, mas incansável, para emporcalhar Três Marias e trucidar o Rio São Francisco, o Velho Chico, “rio da unidade nacional”.

O Estado brasileiro, controlado por burocratas e políticos corruptos, se acumplicia a empresários gananciosos que exploram nossas riquezas e massacram nossos pobres à jusante de represas, expondo-os por cupidez às ondas de dejetos que sufocam humanos, bovinos e peixes. O Criador poupou-nos de vagalhões e lavas, mas os beneficiários do uso e furto dos bens públicos os substituem pela mortandade por susto, bala ou vício. Essa Medusa, que nunca encontra Ulisses de volta a Ítaca, reproduz em sua saga milhões de cabeças vorazes que despedaçam a ventura dos humildes.

Os meninos do Flamengo são talentosos e quase todos pobres, mais do que arrimos, o que resta de fé para seus parentes e amigos. Quando sucumbem à indiferença de dirigentes de má-fé, que usam a paixão do povo como combustível para sua fortuna, fundida num bezerro de ouro insaciável, levam para a morada final as esperanças de seus entes queridos. O pior de tudo é que os dirigentes de Vale, Museu Nacional, Museu da Independência e Flamengo, e prefeitos que escorcham os munícipes com vultosos impostos (casos do Rio inundado e desprovido de programas públicos eficientes contra inundações e desta Piratininga de viadutos rachados caindo aos pedaços), são beneficiários da pior de todas as ofensas, a impunidade. Os mandachuvas do popular rubro-negro da Gávea, os mesquinhos da mineração que não gastam com segurança nem pagam multas e os gestores públicos e privados que se escondem das penas que deviam pagar em capas de pleonasmos nunca purgarão os seus crimes com vil metal ou perda de liberdade.

A tragédia Brasil tem a agravante de não contar com o deus ex-machina do teatro grego, aquela solução final implausível em que os justos são recompensados e os culpados, punidos. E às vítimas só resta reclamar, em vez de apoiar, aplaudir, glorificar, eleger e até endeusar os vilões que as massacram.



José Nêumanne, Jornalista, poeta e escritor - O Estado de São Paulo




sexta-feira, 8 de julho de 2016

Tudo termina em vinho

As transações mais sinistras começam em regabofes que reúnem amiguinhos dos três Poderes 

Por: José Nêumanne

Antes de ser ministro de Lula e de ter estraçalhado a própria biografia combatendo direitos autorais e a privacidade absoluta dos colegas artistas ricos e famosos, o baiano Gilberto Gil foi exilado pela ditadura militar e de Londres, roendo de saudade, compôs e gravou a obra-prima Aquele Abraço. O samba nostálgico virou uma espécie de hino informal dos exilados dentro ou fora do Brasil. Após me ouvir cantarolando-o, a diretora da Rádio Estadão, Paula Miranda, mandou tocá-lo em minha despedida da hora de 7 às 8 que passo no estúdio na companhia luxuosa de Alexandra Romano e Haisen Abaki fazendo uma revisão da tumultuada Pátria amada salve, salve. Valeu até como epígrafe: o Rio de Janeiro continua lindo, mas, sobretudo, continua sendo…

Provas não faltam. O prefeito falastrão Eduardo Paes, disposto a fazer o País e, sobretudo, Maricá, na Grande Rio esquecer as besteiras que andou falando e, pior que tudo, fazendo – como a ciclovia Tim Maia, que desabou, dissolvida em espumas de ressaca, também continua causando. Depois de ter chamado de “terrível” a gestão da polícia pelo Estado a um mês da Olimpíada, ele resolveu ser camarada dos turistas e avisou que a cidade que ele governa não é nenhuma Nova York, Chicago ou Londres. Esquece-se de que Nova York foi sinistra antes da “tolerância zero”; Chicago era de lascar à época da Lei Seca; e a Londres de Dickens nunca foi um modelo de conforto e tranquilidade.

 Suas imagens atuais foram construídas com sangue, suor e lágrimas, como diria um célebre habitante de lá, o lord almirante Winston Churchill. OK, tudo bem. Talvez fosse o caso de o Comitê Olímpico ter sido avisado quando, seduzido pelo charme de Lulinha de Lindu e Serginho de Cabral, ter preterido Madrid, Tóquio, que também podiam ser citadas na frase de Paes, e Chicago, que ele lembrou. Mas não adianta chorar sobre o leite derramado, dizia vovó Quinou: há que pegar o touro à unha longe da plaza madrilenha das Ventas.

Paes não foi o primeiro a avisar aos turistas que a Cidade não é mais tão maravilhosa quanto na marchinha de carnaval famosa de André Filho, mas ainda é cheia de encantos mil e também faz festas espetaculares como o réveillon de Copacabana e o desfile de escolas de samba da Marquês de Sapucaí. Os policiais, que não recebem do governo estadual, fizeram plantão na frente do Galeão (aeroporto Tom Jobim) para dar a temerários turistas “boas vindas ao inferno”. Um carro da Força Nacional, convocado a colaborar com as autoridades policiais locais no patrulhamento da Olimpíada, teve um retrovisor espatifado por uma bala perdida num lugar que frequentei muito: a avenida Brasil perto da Linha Amarela. Nota oficial providencial avisou que a recepção espantosa à ajuda prometida não ocorreu na vigência de seus serviços. Imagine se tivesse sido, diria mestre Ariano Suassuna. Seria a crônica do desastre anunciado. Nunca vi uma bala perdida, algo inusitado naquele distante 1969, mas o agente transmitiu para o País seu terror.

E esta não foi a única homenagem que a cidade dedicada a São Sebastião, soldado flechado e seu padroeiro, prestou ao Conselheiro Acácio, de Eça de Queiroz, nestes últimos dias. Como aquele predecessor do óbvio ululante do carioca nascido em Recife Nelson Rodrigues, Paes constatou o óbvio que ulula. E o paulista Alexandre Morais, ministro da Justiça de Temer, também. Sua Excelência reconheceu o que nenhum carioca o fez, nem os de adoção. Que há risco de terrorismo no Rio. Pode ser até que ele se tenha inspirado na conversa que teve com o chefe Temer no barbeiro, em que o esperou sem que o dono do salão soubesse o que podia fazer diante de seu coco raspado. 

Bom, pelo menos ele deve ter lido nos jornais que o Estado Islâmico (EI) está espalhando o terror pelo mundo porque é acossado nos territórios que tinha conquistado na Turquia e no Irã. A Olimpíada é um destino óbvio de seus terroristas-bombas. E, a não ser que os bandidos locais ajudem a combater os importados, não vai ser fácil as autoridades imporem a ordem pública numa cidade em que traficantes pés de chinelo, como o Fat Family, são resgatados a bala, com morte de inocente, em hospital público apontado como modelo na propaganda oficial da Olimpíada mais privatizada do mundo (pelo menos segundo Paes). Mas não é o caso de chamar desgraça, pois no Rio este talvez seja o único produto que se pode encontrar nos hospitais, escolas e outras repartições.

Seja Alá misericordioso para que o Estado Islâmico não queira repetir as agruras do Bin Laden imaginário do humorístico da TV, submetido às agruras dos morros do Rio! Afinal, Dilma Rousseff, sempre disposta a negociar com os terroristas da Jihad, cuidando de eliminar golpistas a seu redor, não tem mais autoridade para negociar com eles, como pretendia, numa ação sem graça mais absurda do que a piada na TV.

No meio desses tiroteios todos, o Rio ainda é capaz de apresentar sinais de que a mudança da capital para Brasília não evita que ela continue fornecendo personagens que sintetizam a velha malandragem nacional, nem sempre boa. É o caso de Fernando Cavendish, o empreiteiro grã-fino e finório que se dá bem há muito tempo, apesar de também se ter tornado notório, uma rima, mas nunca uma solução.

Com ele trouxe à baila o desembargador federal Antônio Ivan Athié, do Tribunal Federal da 2ª Região (TRF2), protagonista de um processo levado ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2004, acusado de ter participado de um esquema de fraudes no sistema judicial que resultaram em danos ao patrimônio público. Ele resolveu mandar Fernando Cavendish e Carlinhos Cachoeira pra casa com tornozeleiras, mas eles só ficaram na prisão porque não há tornozeleiras à disposição no Rio. Depois de tê-lo feito, declarou-se “suspeito” em ações do empreiteiro. Manda soltar e, depois, declara-se “suspeito”. Não é cara de nosso Brasil varonil?

De uma coisa, contudo, nem ele nem o Rio podem ser acusados: sua cidade não é mais a capital federal, que Juscelino Kubitschek transferiu para o Planalto Central do País, que Caetano, parceiro de Gil, canta na canção que começa e encerra a novela Velho Chico, de Benedito Ruy Barbosa, às 21 horas, na Globo.

Em Brasília, ao contrário do que pensa quem não é muito bem informado, nem tudo termina em pizza. A maioria das transações mais sinistras começa em regabofes que reúnem amiguinhos dos três Poderes regados à melhor produção vinícola de Bordéus e arredores. Pois nossa pátria da máfia pública, que ainda controla os cordéis republicanos na cidade construída onde São João Bosco mandou, não recorre a tradições napolitanas para comemorar seus feitos de furto. Mas às melhores safras vinícolas do Velho Continente, da Califórnia e da Oceania.

E, antes que me esqueça, aquele abraço.

Fonte: Coluna do Augusto Nunes