Os antigos diziam que quando Deus criou o mundo
juntou num pedaço da América do Sul um país com uma costa gigantesca e belas
praias, ouro nas montanhas e sol nos dias de verão. Sem terremotos, vulcões,
tsunamis nem outros acidentes naturais. Então, o anjo Gabriel chamou Sua
atenção para a injustiça de tal privilégio. Consta que o Criador explicou:
“vais ver o povinho que porei lá”. É uma piada preconceituosa e inominável
diante de tudo o que tem acontecido ultimamente nestes tristes trópicos, neste
país do carnaval e do futebol, a superar em tragédia o teatro grego antigo, culminando
com a coincidência de mesclar paixão coletiva e dor pessoal.
A esperança de um futuro melhor para as promessas no sub 17 do Flamengo
e uma vida melhor para seus entes queridos é substituída pela dor e pelo luto.
Foto: Fábio Motta/Estadão
O incêndio do Centro de Treinamento (CT) do
Flamengo com 10 mortos e 3 salvados do fogo parece mais um castigo divino, mas
não é. É conjunção de canalhice com descaso, desídia e desumanidade, que já se
haviam manifestado no incêndio do Museu Nacional e no estado lastimável que
impede visitas ao Museu da Independência, no Ipiranga.
Essa mistura transforma nosso passado num monturo
onde enterramos nossas oportunidades de aprender com erros e acertos que já
cometemos. Os rejeitos minerais da Vale em Mariana,
que mataram o Rio Doce, num descomunal assassinato ambiental, não serviram de
alerta e três anos depois a lama seca de Brumadinho apodrece o Paraopeba e se
prepara, de forma lenta, mas incansável, para emporcalhar Três Marias e
trucidar o Rio São Francisco, o Velho Chico, “rio da unidade nacional”.
O Estado brasileiro, controlado por burocratas e
políticos corruptos, se acumplicia a empresários gananciosos que exploram
nossas riquezas e massacram nossos pobres à jusante de represas, expondo-os por
cupidez às ondas de dejetos que sufocam humanos, bovinos e peixes. O Criador
poupou-nos de vagalhões e lavas, mas os beneficiários do uso e furto dos bens
públicos os substituem pela mortandade por susto, bala ou vício. Essa Medusa,
que nunca encontra Ulisses de volta a Ítaca, reproduz em sua saga milhões de
cabeças vorazes que despedaçam a ventura dos humildes.
Os meninos do Flamengo são
talentosos e quase todos pobres, mais do que arrimos, o que resta de fé para
seus parentes e amigos. Quando sucumbem à indiferença de dirigentes de má-fé,
que usam a paixão do povo como combustível para sua fortuna, fundida num
bezerro de ouro insaciável, levam para a morada final as esperanças de seus
entes queridos. O pior de tudo é que os dirigentes de Vale, Museu Nacional, Museu da Independência e Flamengo, e prefeitos
que escorcham os munícipes com vultosos impostos (casos do Rio inundado e
desprovido de programas públicos eficientes contra inundações e desta
Piratininga de viadutos rachados caindo aos pedaços), são beneficiários da pior
de todas as ofensas, a impunidade. Os mandachuvas do popular rubro-negro da
Gávea, os mesquinhos da mineração que não gastam com segurança nem pagam multas
e os gestores públicos e privados que se escondem das penas que deviam pagar em
capas de pleonasmos nunca purgarão os seus crimes com vil metal ou perda de
liberdade.
A tragédia Brasil tem a agravante de não contar com
o deus ex-machina do teatro grego, aquela solução final implausível em que os
justos são recompensados e os culpados, punidos. E às vítimas só resta
reclamar, em vez de apoiar, aplaudir, glorificar, eleger e até endeusar os
vilões que as massacram.
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