Além de apostar em conteúdos que geram
indignação, eles costumam mirar em personalidades com fama na rede
Além da superfície de imagens fofas e curtidas, a internet cultiva o
ódio. Rede narcísica, estimula um novo personagem:
o troll. É aquele
usuário que provoca e enfurece outras pessoas, com comentários injustos,
ignorantes e, muitas vezes, criminosos.
O objetivo do troll é provocar a
ira dos outros internautas — e, se possível, ganhar algum dinheiro de
modo fácil. Os trolls se alimentam da atenção que atraem e se valem de
qualquer coisa para tal. Talvez, por isso, esta reportagem possa não ser
uma boa ideia, exceto pelo fato de que precisamos falar sobre esse novo
Kevin.
É um monstrinho digital à moda do personagem da escritora
americana Lionel Shriver. O Kevin, de Shriver, é aquela criança mimada
que aprende que a violência é um método aceitável e simples para obter o
que quer. O Kevin digital o emula nas redes sociais e, principalmente,
em fóruns privados de discussão.
A internet nasceu como pátria do livre fluxo de informações. Se você não
sabe como enrolar o cabo do fone de ouvido para que caiba na caixinha
original, alguém na internet explica. Se quer descobrir qual a razão
para tomar cloreto de magnésio, surgirá quem prometa equilíbrio e vigor a
cada colherada. Se você disser, no entanto, que está sofrendo com a
depressão, haverá quem tentará incitá-lo a se matar. Os psicólogos
definem tal comportamento como efeito de desinibição on-line, no qual
fatores como anonimato, invisibilidade, solidão e falta de autoridade
eliminam os costumes que a sociedade construiu milenarmente. Por meio de
telefones celulares inteligentes, tal desinibição está se infiltrando
no dia a dia de todos.
No mundo digital, troll era inicialmente o
método de pesca em que ladrões on-line usam iscas —
uma foto fofa ou
promessa de riqueza — para encontrar vítimas. A palavra se origina de um
mito escandinavo que vive nas profundezas. Passou a simbolizar também
os monstros que se escondem na escuridão da rede e ameaçam as pessoas.
Os trolladores da internet têm um tipo de manifesto, em que afirmam que
agem para o “lulz”, a zoeira, numa tradução livre. O que os trolls fazem
na busca do “lulz” vai de brincadeiras inteligentes
— como os memes da
tomada de três pinos — a assédio e ameaças violentas. Abusam do doxxing —
a publicação de dados pessoais, tais como números de carteira de
identidade, CPF, telefones e contas bancárias — e de trotes como pedir
uma dezena de pizzas no endereço de uma vítima ou ligar para a polícia
denunciando supostas plantações caseiras de maconha.
Os trolls
estão transformando as mídias sociais e painéis de comentários em um
gigante recreio de adolescentes malcriados, repetindo epítetos raciais e
misóginos, definiu uma reportagem recente da
revista Time. Uma pesquisa
que a publicação cita mostrou que 7 em cada 10 jovens sofreram algum
tipo de assédio por meio da internet. Um terço das mulheres já se disse
perseguida on-line. Um estudo de 2014 publicado no periódico de
psicologia Personality and Individual Differences constatou que
5% dos
usuários da internet que se identificaram como trolladores obtiveram
pontuação extremamente alta em traços obscuros de personalidade:
narcisismo, psicopatia, maquiavelismo e, principalmente, sadismo. E não
pense que isso não ocorre em sua vizinhança.
Ao atender o telefone, o analista de sistemas
Ricardo Wagner Arouxa, de 28 anos, achou que seu pai havia morrido. A
caminho do trabalho, no bairro carioca da Tijuca, recebeu a ligação
desesperada de sua mãe. Naquele dia, 27 de dezembro de 2017, seu pai se
recuperava de um cateterismo realizado após sofrer o terceiro infarto.
Pensou no pior ao perceber a mãe aos prantos. Ela demorou a recuperar-se
para explicar o motivo da aflição: a Polícia Civil havia invadido a
casa da família em Pilares para o cumprimento de um mandado de busca e
apreensão. Estavam prestes a arrombar a porta da residência quando ela
voltava do hospital, ainda sem o marido, que fora mantido internado.
Quando Arouxa conseguiu chegar em casa, a polícia já havia recolhido
seus computadores, celulares e discos rígidos — até hoje não devolvidos.
Além
de apostar em conteúdos que gerem indignação, como ataques racistas, os
grupos de ódio costumam mirar em personalidades com fama na internet,
como a advogada Janaína Paschoal
A
razão da operação policial seria uma ameaça de bomba, supostamente
feita por Arouxa. Os alvos seriam a Ordem dos Advogados do Brasil do Rio
de Janeiro e o advogado Rodrigo Mondengo.
Ambos haviam processado
Arouxa. A pendenga, que tramita em segredo de Justiça, só não tomou
proporções maiores porque o analista de sistemas colabora há um ano com
as investigações sobre imputações falsas de crime, em inquérito da
Delegacia de Repressão de Crimes de Informática da Polícia Civil do Rio.
De
anônimo,
Arouxa quase se tornou réu da acusação de terrorismo. Na
realidade, ele sofria por ter se tornado um dos alvos da maior quadrilha
de crimes de ódio da internet brasileira, que hoje se articula por meio
de fórum de discussão que tenta se manter anônimo.
Chamado Dogolachan, o
fórum foi criado por Marcelo Valle Silveira Mello —
a primeira pessoa
condenada por racismo na internet no Brasil — e Emerson Eduardo
Rodrigues. A Polícia Federal considera Mello e Rodrigues os grandes
articuladores da maior rede de ódio que atua há ao menos uma década no
Brasil, usando ferramentas digitais. Eles chegaram a ser presos na
Operação Intolerância, em 2012, mas se livraram porque havia, naquela
altura, vácuo na legislação brasileira para crimes cometidos na
internet. Antes do
Marco Civil da Internet (2014) e da
Lei Antiterrorismo
(2016), os ataques reiterados articulados pelo grupo só podiam ser
enquadrados em crimes contra a honra ou injúria racial, por exemplo.
Integrantes
do Dogolachan registraram o portal Rio de Nojeira, que publicava textos
de cunho racista, machista e homofóbico, no nome de Ricardo Wagner
Arouxa, utilizando seus dados pessoais. Quem chegava ao registro da
página, feito propositalmente de forma pública, tinha acesso a
informações privadas do carioca, como seu telefone e endereço. Arouxa
também era o nome usado por um dos supostos redatores do Rio de Nojeira,
deixando sempre rastros de ódio na tentativa de incriminar outros
desafetos do grupo.
O primeiro post de notoriedade do Rio de
Nojeira fazia ataques racistas a alunos da Unicarioca, faculdade
localizada no Rio Comprido, região central do Rio, onde Ricardo
estudava.
“Quando foi que a Unicarioca deixou de pertencer à elite
branca e passou a ser infestada por favelados, mulatos, negros
cotistas?”, questionavam os autores. Segundo especialistas e
investigadores ouvidos pela reportagem, o Rio de Nojeira faz parte de
uma longa linhagem de páginas usadas pelo grupo criminoso para propagar
discurso de ódio.
O primeiro site do grupo a ganhar os holofotes
foi o Blog do Silvio Koerich,
que se apropriou do nome de um empresário
catarinense. Até março de 2012, a página havia sido alvo de 69.729
denúncias à Polícia Federal.
O site compartilhava textos e fotos com
conteúdo discriminatório e fazia apologia de crimes como violência
sexual e pedofilia. Um dos artigos de maior repercussão buscava
“ensinar
a prática de estupros corretivos” em
lésbicas. Outros blogs do gênero,
como o Homem de Bem, tiveram trajetória parecida até serem tirados do
ar. O modus operandi dos integrantes da quadrilha é criar sites e fazer
postagens propositalmente absurdas, provocando repercussão, aquela
história de
“lulz”. Além de apostarem em conteúdo que gere indignação,
como apologia da pedofilia ou ataques racistas, também elegem como alvo
personalidades com fama na internet —
da blogueira feminista Lola Aronovich, à esquerda,
até a advogada
Janaína Paschoal, ícone do antipetismo, à direita. A ousadia é
demonstrada em pequenos detalhes: Marcelo Mello trabalhava em uma
prestadora de serviços para a Justiça Federal e diversas vezes usou a
rede Wi-Fi do Conselho da Justiça Federal para realizar os ataques.
A
zoeira, no entanto, não era a única aspiração dos líderes da quadrilha.
Eles queriam mesmo é ganhar dinheiro. Em 2012, quando a Polícia Federal
prendeu Emerson Rodrigues e Marcelo Mello na Operação Intolerância, uma
das constatações foi que, já naquela época, a quadrilha se preparava
para implantar um sofisticado mecanismo de captação de recursos por meio
dos sites que mantinham. Quando leitores indignados acessassem os sites
para se deliciar ou denunciar os absurdos publicados, seus computadores
seriam utilizados involuntariamente para a mineração de criptomoedas,
como o bitcoin. A mineração é um complexo processamento de verificação
de dados que exige cada vez mais computadores e energia elétrica para
gerar algum valor transformável em dinheiro. Também há indícios de que
os criminosos captavam recursos por meio de publicidade.
“Eles tentavam
fazer com que o site bombasse para ter lucro”, afirmou o delegado da PF
Flúvio Cardinelle, responsável pela operação e uma das maiores
autoridades em crimes virtuais do país. Após deixarem a prisão, esse
mecanismo foi implantado.
Já em liberdade, com o primeiro site
fora do ar, Emerson Rodrigues e Marcelo Mello passaram a criar juntos
outros portais pela internet brasileira, entre eles o fórum Dogolachan.
Foi nesse último que os dois entraram em contato com Alemão, o perfil
falso que passou a coordenar os ataques contra Ricardo Arouxa, por causa
de um desentendimento em uma comunidade da finada rede social Orkut
chamada Cartola FC.
Fóruns
de discussão radicais são usados para atrair audiência para páginas e
blogs que usam máquinas e energia na mineração de criptomoedas e dão
lucro para chefes
Depois de se desentenderem em mensagens
pela internet, Alemão prometeu
“acabar com a vida” de Ricardo Arouxa. Em
31 de março de 2017, colocou um anúncio on-line para uma vaga de
serviços gerais remetendo ao endereço de Pilares. Seis pessoas
apareceram à porta de Arouxa, parte delas sem sequer dinheiro para
voltar para casa.
Era só o início do que seria uma escalada de
ataques.
Arouxa foi contatado por uma criança que tentava lhe enviar
mensagens de cunho sexual. Ele desconfiou e rastreou o perfil da mãe do
autor. Descobriu que Alemão, novamente se passando por ele, começou a
tentar aliciar crianças de uma escola de boxe comunitária da Maré.
Oferecia videogames em troca de fotos de conteúdo sexual, que deveriam
ser enviadas para o telefone de Arouxa. Para isso, passou o verdadeiro
número do celular do analista de sistemas e seu endereço, onde os
brindes deveriam ser recolhidos, tentando incriminá-lo.
Em
setembro do ano passado,
uma postagem da advogada Janaína Paschoal no
Twitter afirmava que Arouxa havia ameaçado de morte a ela e a seus
filhos. A articuladora do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff
ficou amedrontada com as mensagens enviadas em nome do analista de
sistemas. Um telefonema entre os dois colocou fim à confusão e revelou
tratar-se de obra de trolladores.
Numa cafeteria da Tijuca,
Ricardo Arouxa disse a
ÉPOCA não ter medo de Alemão ou dos diversos
membros da comunidade do Dogolachan, mas não escondeu sua ansiedade.
Diariamente se divide entre o trabalho e o constante monitoramento das
atividades do grupo, tentando “
antever o próximo passo”. Não consegue
ficar mais de duas horas sem fazer esse tipo de checagem. Disse que
nunca procurou psicólogos para lidar com o estresse. Contou ter
conseguido estabilizar sua vida, mantendo amizades e o namoro apesar dos
ataques de ódio. Seu empregador também está ciente da situação. O tom,
porém, é de resignação.
“Sei que esse é um câncer em minha vida de que
nunca vou me livrar.”
MATÉRIA COMPLETA, em Época