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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

A liturgia da Presidência - Nas entrelinhas

“O comportamento presidencial é regulamentado pela Lei 1.079 de 1950, que classifica como crime de responsabilidade agir de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro” 


O presidente Jair Bolsonaro ultrapassou todos os limites do decoro ao agredir de forma misógina a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo, com insinuações sexuais, ao questionar suas apurações sobre o disparo em massa de mensagens na campanha eleitoral. Bolsonaro vem fazendo sucessivos ataques à imprensa e aos jornalistas quando sai do Palácio da Alvorada, sempre que alguém lhe faz uma pergunta incômoda.
“Olha, a jornalista da Folha, tem mais um vídeo dela aí. Eu não vou falar aqui porque tem senhora do meu lado. Ela falando eu sou a ‘tatata’ do PT. Tá certo? E o depoimento do Hans River, foi no final de 2018 para o Ministério Público, ele diz do assédio da jornalista em cima dele. Ela queria um furo. Ela queria dar um furo (pausa, pessoas riem) a qualquer preço contra mim. Lá em 2018, ele já dizia que eles chegavam perguntando ‘o Bolsonaro pagou para você divulgar informações por Whatsapp?”, disse o presidente da República.

Hans River do Nascimento, ex-funcionário da empresa de marketing digital Yacows, segundo reportagem de autoria de Patrícia, teria participado de esquema de disparo de mensagens por meio da rede social durante as eleições. Em depoimento à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do Congresso Nacional, que apura a disseminação de conteúdo falso na internet, Hans River disse que Patrícia “se insinuou” para ele para tentar obter informações sobre disparos de mensagens, o que a jornalista desmente veementemente.

No início da tarde, ao deixar o Palácio da Alvorada após uma reunião com ministros, Bolsonaro voltou a tocar no assunto: “Alguém da ‘Folha de S.Paulo’ aí? Eu agredi sexualmente uma repórter hoje? Parabéns à mídia, aí. Não quero conversa. Parabéns à mídia. Eu agredi, cometi uma violência sexual contra uma repórter hoje?” As declarações de Bolsonaro geraram protestos generalizados e repercutiram no Congresso. A postura de Bolsonaro causa incômodos, inclusive no Palácio do Planalto, pois seu comportamento foge completamente à liturgia do cargo que ocupa.

Quebra de decoro
O cerimonial da Presidência é rigoroso. A coordenação e supervisão das solenidades realizadas no Palácio do Planalto são da Secretaria de Coordenação e Acompanhamento de Assuntos Militares, vinculada ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, ou seja, subordinada ao general Augusto Heleno. Antes, era tarefa de diplomatas cedidos pelo Itamaraty e treinados para isso. Os eventos mais formais realizados na Presidência são o hasteamento e arriação da bandeira, a entrega de cartas credenciais a embaixadores, a passagem de guarda e a recepção a chefes de Estado. Nas solenidades de caráter administrativo, o cerimonial obedece normas de um decreto de 1972, ainda em vigor, aprovado durante o governo Garrastazu Médici, com 94 artigos. Tudo é previsto rigorosamente, até mesmo nos funerais.


O decoro presidencial, porém, é regulamentado pela Lei 1.079 de 1950, que classifica como “crime de responsabilidade” agir de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. É um crime contra a probidade da administração e serve como fundamento para o impeachment presidencial. 
[crime de responsabilidade - deixamos de lado a questão de uma possível ofensa à honra ou à dignidade,já que os 'acusadores' e 'juízes' do presidente Bolsonaro pretendem acertá-li por uma possível quebra de decoro.
- o gesto da famosa 'banana', considerado por muitos chulo (em alguns jornais se percebe que aquele gesto é mais chulo do que uma sessão de 'golden shower' em área pública no carnaval de rua - talfou pouco para a manifestação do presidente Bolsonaro,  em 2019, criticando aquela prática fosse considerada quebra de decoro cometida pelo presidente.

Vá lá,  que pelo conceito de chulo nos anos 50, fosse um gesto pornográfico, ofensivo. Afinal, um deputado foi acusado de 'quebra de decoro' por aparecer em público de ceroulas.
Pietro Maria Bardi, presidente do MAPS por 45 anos, foi processado por indignado com algumas pichações no muses, escreveu 'm ....' .
Nos tempos atuais, dar uma banana para alguém é um gesto inocente - vivemos em um Brasil em que aulas sobre sexo para crianças é algo aceitável, até estimulado. Beijo não convencional,  em revistas HQ, destinadas ao público infanto-juvenil,  é coisa comum. 
Vamos deixar a banana de lado e falar sobre as insinuações sexuais contra a jornalista. 

Ao que consta o autor da afirmação, Hans River  - provavelmente mentirosa, de qualquer forma inadequada, porém, com alguma credibilidade por ter sido proferida por um depoente que estava sob juramento, compromisso  de dizer a verdade, toda a verdade, nada mais que a verdade - portanto, ciente de que sua afirmação, se comprovada a falsidade, além de configurar crime de calúnia é também falso testemunho.

O presidente Bolsonaro limitou-se a comentar uma notícia corrente e fazer um jogo de palavras.
Quanto à pergunta  'eu agredi sexualmente uma jornalista hoje?', foi uma pergunta genérica, nada indicando se referir à jornalista Patricia Mello.No máximo, pode aproveitado o contexto e sustentar que a destinatária era uma jornalista da Folha. Não tem o menor sentido uma acusação de 'quebra de decoro', ou algo do tipo e não terá repercussão no exterior.]
Por isso mesmo, Bolsonaro precisa tomar mais cuidado com o que fala, pois crimes de responsabilidade são julgados politicamente, pelo Congresso, geralmente quando um presidente vai mal das pernas e a situação do país fica caótica. O beabá do impeachment começa pela indagação sobre o exercício do poder presidencial e os limites institucionais a ele existentes. Quando esses limites são ultrapassados a ponto de ameaçar a integridade das instituições, a quebra de decoro ganha relevo como crime de responsabilidade.


Cada vez mais, Bolsonaro age como um populista no poder. Isso começa a ter reflexos negativos para a economia, queima o filme do Brasil na cena mundial e gera desconforto para as elites. A maioria da população não apoia atitudes grosseiras e desrespeitosas do presidente da República. Obviamente, setores mais radicalizados e identificados com a truculência e a violência aplaudem Bolsonaro. As grosserias de Bolsonaro só contribuem para dividir o país, minar nossa coesão nacional e deseducar a população, depois do esforço de dezenas de gerações para construir uma nação.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - Correio Braziliense

 

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Até quando o Poder Judiciário no Brasil terá mais poder de legislar que o Poder Legislativo?

Uma decisão inusual

Juiz no Brasil atual é um legislador que interpreta a Constituição a seu bel prazer. A decisão do Tribunal Federal de Recursos da Segunda Região de permitir que Moreira Franco seja nomeado ministro, mas sem o foro privilegiado inerente ao cargo, é mais uma interpretação imaginosa da Constituição que estamos nos acostumando a ver nos últimos tempos.   Outra interpretação criativa da norma constitucional foi cogitada na montagem do governo Temer, quando se queria reduzir o número de ministérios, mas sem abandonar os amigos à própria sorte. Pensou-se em nomear vários assessores sem status de ministro, mas mantendo o foro privilegiado.

 Até mesmo o Banco Central e a Advocacia-Geral da União (AGU) entrariam nesse rol para reduzir o número formal de ministérios, embora a função de todos ficasse inalterada. Não houve solução jurídica que viabilizasse essa mágica, mas pelo menos para o Cerimonial da Presidência, tanto a AGU, cujo primeiro nomeado foi o advogado Fabio Medina Osório, quanto o Banco Central, com Ilan Goldfajn, não eram citados como ministros, embora tivessem todas as regalias dos cargos.


Aliás, essa mudança de hierarquia dos cargos ministeriais provocou uma confusão danada no primeiro governo Lula. Tradicionalmente o ministério da Justiça é o primeiro a ser citado pelo cerimonial, por antiguidade, mas no período em que José Dirceu foi chefe do Gabinete Civil da presidência da República, ele baixou uma ordem interna para que seu ministério passasse a ser o primeiro na hierarquia ministerial.

 
 Como se vê, essa manipulação de cargos hierárquicos não é privilégio de partidos, mas depende dos interesses de ocasião. Moreira Franco ficou sem status de ministro no início do governo, embora fosse mais poderoso do que a maioria dos demais ministros, para ajudar a criar o marketing de redução de ministérios.  Agora, com a proximidade da divulgação das delações premiadas dos executivos da Odebrecht, e também porque o governo já se sentia forte o suficiente para dar passos mais largos, recriou-se a poderosa Secretaria-Geral da presidência da República, que já foi ocupada por Gilberto Carvalho nos tempos de Lula e Dilma.


É verdade que Moreira não tem nenhuma denúncia oficial contra ele, apenas o vazamento de uma das delações premiadas de que ainda não se conhece o teor completo. Nesse ponto, sua situação é diferente da de Lula quando foi designado ministro por Dilma, pois naquela ocasião o ex-presidente já era investigado e fora até mesmo levado coercitivamente para depor na Polícia Federal.  A blindagem era explícita.  Mas a sensação de que a transformação de Moreira Franco em ministro oficial só foi feita para blindá-lo contra uma provável denúncia é inevitável, daí a decisão criativa do TRF da Segunda Divisão. [além par o poder de legislar do Poder Legislativo, o competente para legislar, o Poder Judiciário ainda pode interpretar a Constituição, poder que pode ser exercido por juízes de diversas instâncias.]


 Durante os últimos dias, juízes deram liminares contra e a favor do governo, até que a solução salomônica impôs-se. Agora está nas mãos do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello a decisão definitiva sobre o caso. A criatividade da decisão do TRF repisa um hábito que vem se firmando entre nós, a de juízes de diversas instâncias interpretarem a Constituição.  Depois que o impeachment da ex-presidente Dilma foi aprovado com uma interpretação que dividiu uma frase de regra constitucional, permitindo que ela perdesse o cargo mas não os direitos políticos, que pela letra da lei eram punições indissociáveis, tudo passou a ser possível.


A decisão do TRF foi tomada pela aceitação da suspeita de que a nomeação para o ministério serviu apenas para blindar Moreira Franco. Como a argumentação do Palácio do Planalto foi de que Moreira já exercia as mesmas funções, decidiu-se que o presidente da República tem o direito de nomear quem queira para seu ministério, mas nesse cargo específico a pessoa nomeada não terá foro privilegiado.  É uma interpretação inusual. A AGU pode recorrer da interpretação ao Supremo Tribunal Federal, se houver ousadia para tanto. E isso se o ministro Celso de Mello não concordar com a interpretação criativa.


Fonte: Merval Pereira - O Globo