A ilusão de que a Ucrânia poderia rapidamente ser integrante
da União Europeia foi bastante vendida nos últimos meses. A simpatia
internacional em relação ao país, em solidariedade ao fato de ter sido invadido
pela vizinha Rússia, contribuiu para a difusão dessa ilusão, que foi tomada
como promessa factível.
Nas últimas semanas, alguns políticos europeus foram
criticados por trazerem uma salutar dose de realidade ao tema.
Tais críticas
são flagrantemente injustas em qualquer debate honesto sobre a participação da
Ucrânia na UE.
No dia 10 de maio, o presidente francês, Emmanuel Macron,
falando perante o Parlamento europeu, afirmou que “sabemos perfeitamente que o
processo para permitir a adesão da Ucrânia levaria vários anos, possivelmente
décadas. Essa é a verdade, a menos que decidamos baixar os padrões de adesão. E
repensar a unidade da nossa Europa”. Seu discurso era em um contexto de propor
uma “comunidade europeia paralela”, apenas política, para reunir os países
vizinhos e conectá-los à mais poderosa UE, dando, inclusive, possíveis
garantias de segurança.
No dia 19 de maio, foi a vez do chanceler alemão, Olaf
Scholz, afirmar que “não existe atalho no caminho de adesão à UE” e que a
existência de uma “fila de chegada” é um ”imperativo de equidade para todos os
países dos Bálcãs que há muito tempo desejam entrar para o bloco europeu”. Ele
fez esses comentários dois dias depois de conversar por telefone com o
presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. A fala de Scholz possivelmente
dialoga diretamente com comentários anteriores de Zelensky.
Processo de adesãoA Ucrânia já possuía acordos comerciais e de cooperação com a UE desde 2014, parte justamente dos eventos que levam ao que os nacionalistas ucranianos chamam de
Revolução da Dignidade, ou
Euromaidan, que derrubou o
presidente pró-Rússia Viktor Yanukovych. Já os
ucranianos russófilos, e a própria Rússia, vão classificar o ocorrido como um
golpe de estado articulado por países ocidentais para enfraquecer a Rússia. Naquele contexto,
a Crimeia é anexada pela Rússia e começa o conflito no Donbas, no leste ucraniano.
O governo Zelensky oficializou o processo de solicitação de
adesão à UE no dia 28 de fevereiro deste ano, quatro dias após a invasão russa.
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, declarou apoiar a
adesão da Ucrânia ao bloco e, no dia 1º de março, o Parlamento europeu
recomendou que a Ucrânia fosse considerada candidata oficial ao processo de adesão.
Ursula von der Leyen, ao visitar a Ucrânia no início de abril, afirmou que
apoiava uma “via rápida” de adesão para os ucranianos, diga-se.
O pedido ucraniano já está em sua segunda fase. Considerando
a emergência da situação atual, o presidente ucraniano solicitou uma “admissão
imediata” sob um "novo procedimento especial", que recebeu apoio de
oito estados da UE. Provavelmente é isso que Scholz chamou de “atalho”, para
críticas do ministro de Relações Exteriores ucraniano, Dmytro Kuleba. Ele
afirmou que “a ambiguidade praticada por alguns países da UE em relação à
perspectiva europeia da Ucrânia deve acabar” e que “não precisamos de
comentários que demonstrem um tratamento de segunda classe à Ucrânia e firam os
sentimentos dos ucranianos”.
A questão é que, como dito, essa onda de apoio e
solidariedade aos ucranianos, embora muito bonita e encorajadora num momento
trágico, vende uma ilusão. Não é algo factível. Mesmo quando se diz que o “atalho”
ucraniano tem apoio de oito estados, quais são eles? Bulgária, Eslováquia,
Eslovênia, Estônia, Tchéquia, Letônia, Lituânia e Polônia. Nenhum deles é das
grandes economias europeias, os que “pagam a conta” da UE. Ao contrário, quando
se olha para os comentários dos líderes de Alemanha e de França, as duas
maiores economias da UE.
Problemas da adesãoSão três os tipos de problemas para uma entrada da Ucrânia na UE, que tornam esse processo, nas palavras de Macron, algo que depende de décadas, não de semanas ou de anos. Com um detalhe importantíssimo,
que é o fato desses problemas existirem mesmo antes da guerra ou antes da crise de 2014. Hoje tudo isso é agravado pelo conflito, pelas objeções russas e pelas questões territoriais, especialmente a anexação da Crimeia pela Federação Russa em 2014.
O primeiro problema é o aspecto geográfico e demográfico. A
Ucrânia é o maior país localizado exclusivamente na Europa. Com 600 mil
quilômetros quadrados, o país tem o dobro do tamanho da Itália. Com uma
população na casa dos 45 milhões de pessoas, seria o quinto país mais populoso
da UE. Tudo isso representa um pesadelo logístico para os países desenvolvidos
da UE, com mais fronteiras, maior fluxo de pessoas e eventual imigração em
massa para os grandes centros.
Como exemplo, a adesão de Romênia e da Bulgária, em 2007,
ainda possui etapas por concluir, como a entrada desses dois países no Espaço
Schengen de livre-trânsito. E esses dois estados não representam nem de perto
os desafios que seria uma adesão ucraniana. Os dois países balcânicos também
são ótimos exemplos dos outros problemas para uma entrada da Ucrânia na UE.
Inclusive, esses mesmos problemas, no contexto da adesão desses países, foi
parte das razões da grave crise da Eurozona, em 2008.
Um deles é a discrepância econômica. A Ucrânia possui um PIB
per capita na casa dos 14 mil dólares, enquanto a média da UE é de 35 mil
dólares per capita, mais que o dobro.
Mesmo a Bulgária, o menor índice do
bloco, possui um PIB per capita de 24 mil dólares. Ou seja, trata-se de um país
muito mais pobre, com uma população também mais pobre, o que criaria uma grave
discrepância interna. Para isso existe o mecanismo de equilíbrio, que transfere
recursos para os países mais pobres da UE, como a Hungria.
O Índice de Desenvolvimento Humano ucraniano é de 0,779, um
pouco acima do Brasil e um pouco abaixo do Irã. A média da UE é de 0,897, uma
distância enorme. O piso novamente é o búlgaro, de 0,816, ainda
consideravelmente acima do IDH ucraniano. Inserir um país tão grande e com
tamanha discrepância socioeconômica representaria um desafio enorme para as
finanças europeias, ao mesmo tempo em que a mera população ucraniana daria um
peso considerável ao país no Parlamento europeu, gerando um desequilíbrio entre
o poder econômico e a representação política.
Países menoresFinalmente,
o terceiro problema é que, independente dos sentimentos em relação ao país vítima de uma invasão,
a Ucrânia não cumpre a maioria dos critérios europeus sobre governança, corrupção, democracia, transparência da máquina pública e combate ao crime organizado. Novamente, mesmo países membros como Bulgária e Romênia, bem menores, representam desafios nessas áreas. E todos esses problemas independem da guerra, antecedendo a invasão e sendo parte do debate sobre a participação ucraniana na UE desde o início do século.
Quando Scholz aponta a necessidade de “respeitar a fila” de
países balcânicos candidatos, ele também é motivado pelo fato de que se tratam
de países muito menores, que representarão uma adaptação muito mais fácil em
seu processo de adesão. Também países cujos eventuais custos de adaptação serão
muito menores. O provável próximo integrante da UE é o pequeno Montenegro, que
tornou-se membro da OTAN em 2017. Montenegro possui um IDH maior que o búlgaro
e uma população de apenas 600 mil pessoas, em uma área que é pouco mais da
metade de Sergipe, o menor estado brasileiro.
O
problema dessa venda de ilusões é que, no final das contas, a UE
conseguirá apenas pessoas desiludidas. Milhões de ucranianos se sentirão
enganados, a própria coesão interna ficará ameaçada, entre os
“pró-Ucrânia” e os realistas, e a imagem da UE vai sofrer
internacionalmente.
Solidariedade é importante, mas não pode parecer
apenas da boca pra fora. Provavelmente os atores que colherão os frutos
disso serão EUA e China, possíveis parceiros econômicos numa necessária
reconstrução do país. E que não prometeram o que não poderão cumprir
logo.
Felipe Figueiredo, colunista - Gazeta do Povo - VOZES