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quinta-feira, 26 de maio de 2022

Por que o rápido ingresso da Ucrânia na UE é uma ilusão, e que perigos ela representa

Filipe Figueiredo

A ilusão de que a Ucrânia poderia rapidamente ser integrante da União Europeia foi bastante vendida nos últimos meses. A simpatia internacional em relação ao país, em solidariedade ao fato de ter sido invadido pela vizinha Rússia, contribuiu para a difusão dessa ilusão, que foi tomada como promessa factível. 
Nas últimas semanas, alguns políticos europeus foram criticados por trazerem uma salutar dose de realidade ao tema. 
Tais críticas são flagrantemente injustas em qualquer debate honesto sobre a participação da Ucrânia na UE.

No dia 10 de maio, o presidente francês, Emmanuel Macron, falando perante o Parlamento europeu, afirmou que “sabemos perfeitamente que o processo para permitir a adesão da Ucrânia levaria vários anos, possivelmente décadas. Essa é a verdade, a menos que decidamos baixar os padrões de adesão. E repensar a unidade da nossa Europa”. Seu discurso era em um contexto de propor uma “comunidade europeia paralela”, apenas política, para reunir os países vizinhos e conectá-los à mais poderosa UE, dando, inclusive, possíveis garantias de segurança.

No dia 19 de maio, foi a vez do chanceler alemão, Olaf Scholz, afirmar que “não existe atalho no caminho de adesão à UE” e que a existência de uma “fila de chegada” é um ”imperativo de equidade para todos os países dos Bálcãs que há muito tempo desejam entrar para o bloco europeu”. Ele fez esses comentários dois dias depois de conversar por telefone com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. A fala de Scholz possivelmente dialoga diretamente com comentários anteriores de Zelensky.

Processo de adesão
A Ucrânia já possuía acordos comerciais e de cooperação com a UE desde 2014, parte justamente dos eventos que levam ao que os nacionalistas ucranianos chamam de Revolução da Dignidade, ou Euromaidan, que derrubou o presidente pró-Rússia Viktor Yanukovych. Já os ucranianos russófilos, e a própria Rússia, vão classificar o ocorrido como um golpe de estado articulado por países ocidentais para enfraquecer a Rússia. Naquele contexto, a Crimeia é anexada pela Rússia e começa o conflito no Donbas, no leste ucraniano.

O governo Zelensky oficializou o processo de solicitação de adesão à UE no dia 28 de fevereiro deste ano, quatro dias após a invasão russa. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, declarou apoiar a adesão da Ucrânia ao bloco e, no dia 1º de março, o Parlamento europeu recomendou que a Ucrânia fosse considerada candidata oficial ao processo de adesão. Ursula von der Leyen, ao visitar a Ucrânia no início de abril, afirmou que apoiava uma “via rápida” de adesão para os ucranianos, diga-se.

O pedido ucraniano já está em sua segunda fase. Considerando a emergência da situação atual, o presidente ucraniano solicitou uma “admissão imediata” sob um "novo procedimento especial", que recebeu apoio de oito estados da UE. Provavelmente é isso que Scholz chamou de “atalho”, para críticas do ministro de Relações Exteriores ucraniano, Dmytro Kuleba. Ele afirmou que “a ambiguidade praticada por alguns países da UE em relação à perspectiva europeia da Ucrânia deve acabar” e que “não precisamos de comentários que demonstrem um tratamento de segunda classe à Ucrânia e firam os sentimentos dos ucranianos”.

A questão é que, como dito, essa onda de apoio e solidariedade aos ucranianos, embora muito bonita e encorajadora num momento trágico, vende uma ilusão. Não é algo factível. Mesmo quando se diz que o “atalho” ucraniano tem apoio de oito estados, quais são eles? Bulgária, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Tchéquia, Letônia, Lituânia e Polônia. Nenhum deles é das grandes economias europeias, os que “pagam a conta” da UE. Ao contrário, quando se olha para os comentários dos líderes de Alemanha e de França, as duas maiores economias da UE.

Problemas da adesão
São três os tipos de problemas para uma entrada da Ucrânia na UE, que tornam esse processo, nas palavras de Macron, algo que depende de décadas, não de semanas ou de anos. Com um detalhe importantíssimo, que é o fato desses problemas existirem mesmo antes da guerra ou antes da crise de 2014. Hoje tudo isso é agravado pelo conflito, pelas objeções russas e pelas questões territoriais, especialmente a anexação da Crimeia pela Federação Russa em 2014.

O primeiro problema é o aspecto geográfico e demográfico. A Ucrânia é o maior país localizado exclusivamente na Europa. Com 600 mil quilômetros quadrados, o país tem o dobro do tamanho da Itália. Com uma população na casa dos 45 milhões de pessoas, seria o quinto país mais populoso da UE. Tudo isso representa um pesadelo logístico para os países desenvolvidos da UE, com mais fronteiras, maior fluxo de pessoas e eventual imigração em massa para os grandes centros.

Como exemplo, a adesão de Romênia e da Bulgária, em 2007, ainda possui etapas por concluir, como a entrada desses dois países no Espaço Schengen de livre-trânsito. E esses dois estados não representam nem de perto os desafios que seria uma adesão ucraniana. Os dois países balcânicos também são ótimos exemplos dos outros problemas para uma entrada da Ucrânia na UE. Inclusive, esses mesmos problemas, no contexto da adesão desses países, foi parte das razões da grave crise da Eurozona, em 2008.

Um deles é a discrepância econômica. A Ucrânia possui um PIB per capita na casa dos 14 mil dólares, enquanto a média da UE é de 35 mil dólares per capita, mais que o dobro. 
Mesmo a Bulgária, o menor índice do bloco, possui um PIB per capita de 24 mil dólares. Ou seja, trata-se de um país muito mais pobre, com uma população também mais pobre, o que criaria uma grave discrepância interna. Para isso existe o mecanismo de equilíbrio, que transfere recursos para os países mais pobres da UE, como a Hungria.

O Índice de Desenvolvimento Humano ucraniano é de 0,779, um pouco acima do Brasil e um pouco abaixo do Irã. A média da UE é de 0,897, uma distância enorme. O piso novamente é o búlgaro, de 0,816, ainda consideravelmente acima do IDH ucraniano. Inserir um país tão grande e com tamanha discrepância socioeconômica representaria um desafio enorme para as finanças europeias, ao mesmo tempo em que a mera população ucraniana daria um peso considerável ao país no Parlamento europeu, gerando um desequilíbrio entre o poder econômico e a representação política.

Países menores
Finalmente, o terceiro problema é que, independente dos sentimentos em relação ao país vítima de uma invasão, a Ucrânia não cumpre a maioria dos critérios europeus sobre governança, corrupção, democracia, transparência da máquina pública e combate ao crime organizado. Novamente, mesmo países membros como Bulgária e Romênia, bem menores, representam desafios nessas áreas. E todos esses problemas independem da guerra, antecedendo a invasão e sendo parte do debate sobre a participação ucraniana na UE desde o início do século.

Quando Scholz aponta a necessidade de “respeitar a fila” de países balcânicos candidatos, ele também é motivado pelo fato de que se tratam de países muito menores, que representarão uma adaptação muito mais fácil em seu processo de adesão. Também países cujos eventuais custos de adaptação serão muito menores. O provável próximo integrante da UE é o pequeno Montenegro, que tornou-se membro da OTAN em 2017. Montenegro possui um IDH maior que o búlgaro e uma população de apenas 600 mil pessoas, em uma área que é pouco mais da metade de Sergipe, o menor estado brasileiro.

O problema dessa venda de ilusões é que, no final das contas, a UE conseguirá apenas pessoas desiludidas. Milhões de ucranianos se sentirão enganados, a própria coesão interna ficará ameaçada, entre os “pró-Ucrânia” e os realistas, e a imagem da UE vai sofrer internacionalmente

Solidariedade é importante, mas não pode parecer apenas da boca pra fora. Provavelmente os atores que colherão os frutos disso serão EUA e China, possíveis parceiros econômicos numa necessária reconstrução do país. E que não prometeram o que não poderão cumprir logo.

Felipe Figueiredo, colunista - Gazeta do Povo -  VOZES


quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Protecionismo cresce e ameaça recuperação global

Políticas de fechamento de fronteiras aos fluxos de pessoas, capital e comércio crescem em todo o mundo, alimentadas por um irracionalismo preocupante

[protecionismo = um mal necessário; imigrantes = prejuízos e problemas para o país que os recebe.]

A atual onda política marcada por nacionalismos populistas e xenófobos tem sua expressão econômica no crescente protecionismo e resistência à celebração de acordos comerciais multilaterais, como a Parceria Transpacífica. Além de travar o comércio internacional, esse processo vem retardando de forma perigosa a recuperação da economia da crise global de 2008. 

Relatório de Monitoramento do Comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC), divulgado em julho, na reunião de cúpula da entidade, revelou que, entre meados de outubro de 2015 e meados de maio deste ano, foram apresentadas em média 22 medidas restritivas por mês pelos países-membros, a mais elevada desde 2011. É um aumento significativo, considerando-se o período anterior, quando a média, já alta, foi de 15 medidas por mês. O relatório conclui afirmando, com acerto, que a “melhor garantia contra o protecionismo é um robusto sistema multilateral de comércio”.

No mesmo período, os países-membros da OMC aprovaram 19 medidas por mês para facilitar o comércio, um pequeno aumento em relação ao período anterior. O número de ações protecionistas avançou 11% no período avaliado. O diretor-geral da OMC, Roberto Azevêdo, disse que “o relatório mostra um preocupante crescimento de medidas restritivas ao comércio postas em vigor mensalmente”. Ele lembrou que, das 2.800 medidas protecionistas adotadas desde outubro de 2008, apenas 25% foram removidas, acrescentando que “na atual conjuntura, um aumento das restrições ao comércio é a última coisa de que a economia global precisa. Esse aumento poderia ter um efeito nocivo adicional de esfriamento dos fluxos comerciais, com impacto desastroso para o crescimento econômico e a geração de empregos”. 

Neste ano, o volume global de comércio não cresceu no primeiro trimestre e caiu 0,8%, no segundo, segundo analistas ouvidos pelo “New York Times”. Os EUA não foram exceção: o volume total de importações e exportações caiu mais de US$ 200 bilhões no ano passado. E nos primeiros nove meses de 2016 recuou outros US$ 470 bilhões. Foi a primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial que o intercâmbio comercial entre os países caiu num período de expansão econômica. 

As políticas contrárias aos fluxos globais de pessoas, capital e mercadorias são um retrocesso óbvio. E, no entanto, tem defensores. O Brexit — a saída do Reino Unido da UE — é talvez o exemplo mais dramático dessa mentalidade retrógrada. Seu impacto no país, no bloco europeu e na economia mundial ainda não foi totalmente quantificado. Nos EUA, por outro lado, o protecionismo comercial é, estranhamente, um ponto comum entre Donald Trump e Hillary Clinton, com o argumento falacioso da defesa do mercado de trabalho local. Trata-se, em resumo, de um irracionalismo que se alimenta da desconfiança generalizada no sistema político e oferece como resposta o risco de um obscurantismo perigoso.

Fonte: O Globo - Editorial