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domingo, 3 de julho de 2022

Defesa - Quem são os adversários da OTAN? - Luis Kawaguti

Vozes - Jogos de Guerra

 Cúpula da OTAN em Madri, nesta semana: declaração feita pelos países da aliança deixa claro que o mundo caminha para uma escalada de confrontação - Foto: EFE/EPA/LUKAS COCH

A OTAN (aliança militar ocidental) realizou nesta semana uma reunião de cúpula histórica, que formalizou a nova realidade da política mundial provocada pela guerra na Ucrânia. Nela, a Rússia não é mais vista pelo Ocidente como uma parceira em potencial, mas sim como a maior ameaça à aliança.

A China foi classificada, por sua vez, como um “desafio” à segurança, aos interesses e aos valores da ordem internacional. A Declaração da Cúpula de Madri também relevou que a OTAN permanece preocupada com a ameaça do terrorismo global e com a mudança climática. A cúpula foi uma tentativa do Ocidente de demonstrar força e coesão. Mas ainda não está claro se essa união vai se manter em meio às crises energética e de alimentos, que foram drasticamente agravadas pela guerra na Ucrânia.

Veja Também: Guerra Fria 2.0: qual será o impacto de uma nova expansão da OTAN?

Brasileiro conta os segredos da Legião Estrangeira

O ponto de vista que aparenta predominar entre os países da aliança é o de lideranças como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. Eles defendem um reforço de tropas na frente oriental da OTAN, o aumento dos gastos militares na Europa e o apoio à Ucrânia até a expulsão completa das tropas de seu território. [irrealizável - prevalecendo essa posição a Ucrânia se acaba. Essa postura só interessa aos mercadores de armas.]

A ideia é fazer com que a Rússia não seja mais capaz de invadir militarmente outro país vizinho, segundo afirmou a chanceler britânica Liss Truss à BBC. Londres disse, durante a reunião, que enviará mil combatentes para defender a Estônia. [mil combatentes? cada um deles com uma arma nuclear tática, será mais que suficiente para resolver a questão = será iniciada uma guerra nuclear.]

Os Estados Unidos disseram que mandarão dois esquadrões de caças F35 (que são alguns dos mais avançados do Ocidente) para a Grã-Bretanha, dois navios contratorpedeiros para a Espanha e milhares de tropas para a Romênia.

A ideia é que essa mobilização continue até que, no ano que vem, as tropas na frente oriental da OTAN (próxima da Rússia) passem de 40 mil para 300 mil. Para se ter ideia dessa dimensão, Moscou usou cerca de 200 mil tropas para invadir a Ucrânia em 24 de fevereiro.  As tropas da OTAN na Europa também vão passar a se organizar não mais em grupos de batalha, mas em brigadas e divisões de exército - unidades maiores e mais adequadas para fazer frente a guerras de alta intensidade. Em paralelo, Finlândia e Suécia, países historicamente neutros, devem entrar na aliança.

Estrategicamente, o objetivo é que a Europa passe a gastar mais com armas para que sua defesa dependa menos dos EUA - liberando Washington para se voltar mais para a região do Indo-Pacífico (por causa da expansão chinesa). A recente Declaração da Cúpula de Madri diz que “a Federação Russa é a ameaça mais significativa e direta para a segurança dos aliados e para a paz e estabilidade na área euro-atlântica”.

A Rússia, por sua vez, vem afirmando que foi a OTAN quem adotou uma postura agressiva, com seu movimento de expansão para leste desde o fim da Guerra Fria. O motivo geoestratégico da Rússia para invadir a Ucrânia foi criar uma área neutra entre a aliança militar ocidental e o território russo.

Na cúpula de Madri, não surgiram vozes dissidentes da postura da aliança de armar a Ucrânia e reforçar as capacidades militares dos europeus. Seus maiores defensores, além de EUA e Grã-Bretanha, são os países mais próximos da Rússia, que já sofreram com invasões e dominação durante o período soviético - como a Polônia, a República Tcheca, os países bálticos e a própria Ucrânia.

Quando visitei um centro de recrutamento de civis na Ucrânia, em março deste ano, me impressionei com as colocações dos voluntários. Eles disseram preferir morrer no campo de batalha a ver suas famílias assassinadas ou passando fome nas mãos dos russos. Essas atrocidades cometidas pelos russos estão na história e na cultura desses países.

Mas, em nações mais distantes da fronteira russa, começam a surgir críticas à abordagem de confrontação, que foi oficializada na cúpula de Madri. Seu argumento é que a Ucrânia deveria ceder parte de seu território à Rússia em troca de um cessar-fogo. Em tese, isso evitaria uma matança maior tanto para ucranianos como para russos. Estima-se que a Ucrânia perde cerca de 200 militares por dia na Batalha de Donbas.

Contudo, as críticas à postura da OTAN não são motivadas apenas por razões humanitárias. As sanções econômicas à Rússia vêm causando uma alta no preço dos derivados de petróleo e o bloqueio do Mar Negro - por onde era escoada a produção de grãos da Ucrânia, impasse que elevou o custo global dos alimentos.  Na prática, a maioria dos países vem experimentando insatisfação da população, provocada pelas seguidas altas de preços nos postos de gasolina e nas lojas e supermercados.

Segundo analistas, isso pode levar ao fortalecimento de políticos ou partidos populistas e de tendência isolacionista no Ocidente. Em teoria, a ascensão deles pode, no futuro, diminuir o apetite da OTAN para confrontar a Rússia. O maior exemplo é a política de “América primeiro”, do governo de Donald Trump. O ex-presidente americano chegou a cogitar retirar os EUA da OTAN em 2018.

Porém, mesmo que um governo isolacionista seja eleito em 2024 nos EUA, é pouco provável que o país se retire da OTAN. Em 2018, Trump levantou essa possibilidade em um cenário de descontentamento com seus aliados europeus que não estavam cumprindo o estabelecido na aliança de investir anualmente 2% de seu PIB (Produto Interno Bruto) em defesa.

A vontade do Ocidente em apoiar a Ucrânia contra a Rússia por ora não parece abalada, mas a situação pode mudar. Com a chegada do inverno no hemisfério norte, pode faltar gás para aquecer as casas. Além disso, as empresas do Ocidente já começam a sentir o efeito de competição de empresas asiáticas - que vêm comprando petróleo e derivados da Rússia a preços mais baixos que os do resto do mercado.

Sabe-se,
por exemplo, que a Rússia já está entre os maiores fornecedores de petróleo da China e da Índia. Esse tipo de negociação de preços é sigilosa, mas já foi confirmado que refinarias indianas estão comprando petróleo russo com ao menos US$ 30 de desconto por barril. Elas refinam o petróleo e revendem seus derivados com preços mais altos para o mercado do Ocidente, burlando o embargo a Moscou.

Países industrializados da Europa, como a Alemanha e a Itália, já estão sentindo os efeitos da concorrência e também buscam alternativas ao gás russo. Porém, mesmo contrariados, continuam apoiando a resolução dos colegas da OTAN. [até quando?]  A principal resposta do governo do americano Joe Biden deve ser uma tentativa inédita de congelar globalmente os preços do petróleo russo. Mas analistas estão céticos sobre a viabilidade do projeto, pois os EUA não controlam a maioria da produção de petróleo mundial.

China
“Nós nos defrontamos com competição sistemática daqueles, incluindo a República Popular da China, que desafiam nossos interesses, segurança e valores, à procura de minar a ordem mundial baseada em leis”, diz o texto da declaração dos chefes de Estado da OTAN.

A China é a única nação citada nominalmente quando a aliança descreve no documento estar sendo confrontada por ameaças cibernéticas, espaciais, híbridas e assimétricas. A declaração conjunta também cita o “uso malicioso de tecnologias disruptivas”. A OTAN não diz exatamente quais são as ameaças específicas relacionadas a Pequim. Mas sabe-se que a China usou espionagem cibernética para roubar tecnologia do Ocidente e agora trava uma guerra comercial com os Estados Unidos.

Como cenário de fundo, Pequim também vem desenvolvendo tecnologia militar disruptiva, como os chamados mísseis hipersônicos - que não podem ser abatidos por defesas antiaéreas - e armas capazes de destruir satélites no espaço. A OTAN não relacionou no documento a questão nuclear e a China, mas a inteligência ocidental identificou em 2021 que os chineses estão construindo ao menos 230 silos de mísseis balísticos intercontinentais (ICBM, na sigla em inglês) no deserto de Gobi e na província de Xinjiang.

Não é novidade que a China tem armas nucleares. Mas a inteligência americana afirmou que o objetivo do país é quadruplicar seu arsenal, atingindo a marca de mil armas nucleares. Se isso acontecer, o equilíbrio bipolar do poder nuclear global, exercido por Estados Unidos e Rússia (que têm 1.550 armas ativas cada), será abalado.  O crescimento do arsenal chinês tem potencial para criar um sistema tripolar e assim anular os efeitos da atual paridade de armamentos e o conceito de MAD (sigla em inglês para destruição mútua assegurada), instrumentos que por cerca de 70 anos vêm impedindo uma guerra nuclear.

Assim, a escalada chinesa poderia deflagrar, por um período de alguns anos, uma nova corrida armamentista nuclear - até o sistema se reequilibrar em um novo sistema bipolar. Além disso, antes do início da guerra na Ucrânia, China e Rússia anunciaram uma parceria estratégica irrestrita.Analistas se dividem sobre a consistência e a possível duração dessa aproximação. A única certeza é que o Ocidente fará o que estiver ao seu alcance para tentar afastar as duas potências, como ocorreu na década de 1960 durante a Guerra Fria.

Mudança climática
A mudança climática é definida pela OTAN como o “desafio do nosso tempo”. A aliança diz que o assunto terá um impacto profundo na segurança dos países aliados. O assunto também não é especificado na declaração, mas parece apontar para o esforço do Ocidente para diminuir o uso de combustíveis fósseis - não só para preservar o meio ambiente, mas para diminuir a influência da Rússia no cenário energético global.

Mas uma parte da declaração preocupou alguns analistas brasileiros: “Nós vamos integrar considerações sobre mudança climática em todas as funções principais da OTAN”, afirma a Declaração de Madri. O temor desses analistas é que a OTAN use esse argumento para intervir na região amazônica no futuro. A possibilidade não pode ser descartada, embora seja pouco provável. Os recursos e a atenção da aliança militar ocidental estão voltados para a Europa, a região do Indo-Pacífico e para o Oriente Médio.

O argumento do clima pode ser usado para tentar criar barreiras comerciais para produtos agrícolas brasileiros, mas isso também é pouco provável em um contexto de possível crise mundial de alimentos. Porém, uma alegada invasão da Amazônia pode ser usada em campanhas cibernéticas de desinformação para gerar polarização na América Latina e eventual sentimento de repulsa às ações globais da OTAN. [se tentarem invadir a Amazônia e for impossível evitar, receberão uma Amazônia a qual não poderão ter acesso por séculos.] 

Esse tipo de campanha já está em curso na Europa, mas envolvendo o tema dos refugiados. Segundo relatório recente da Microsoft, a Rússia tem lançado campanhas de desinformação para tentar explorar eventuais divisões entre os governos ocidentais ou incentivar distúrbios sociais. Hackers russos teriam criado, por exemplo, grupos e perfis falsos no aplicativo de mensagens Telegram, para difundir mensagens reais e falsas. Seu objetivo é incentivar o ódio contra refugiados ucranianos em nações europeias - ressaltando aumento de despesas dos governos locais e aumento do desemprego. Ação dessa natureza já teria sido descoberta na Polônia.

Como fica o Brasil?
A OTAN aponta como seus adversários a Rússia, a China, o terrorismo e as mudanças climáticas, entre outros desafios. Nos bastidores, a guerra econômica, a vulnerabilidade das democracias liberais a campanhas de desinformação e a polarização política ameaçam os objetivos atuais da aliança. No início da guerra da Ucrânia, analistas levantaram a possibilidade de que Moscou poderia fazer um ataque restrito a um dos países da OTAN, para pôr à prova o artigo quinto da aliança - que diz que um ataque a um membro é um ataque a todo o grupo.

Uma eventual falta de reação do Ocidente, com o objetivo de não deflagrar a Terceira Guerra Mundial, poderia fazer a OTAN ruir. Mas o governo de Vladimir Putin também não arriscou estratégia tão ousada e parece agora apostar em uma nova crise do petróleo para enfraquecer a aliança.  Nesse contexto, o Brasil vem sendo cortejado por meio do bloco econômico dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e depende da importação de fertilizantes produzidos na Rússia. A chancelaria brasileira vê o Brics como uma boa oportunidade econômica, mas se sente desconfortável com a atual tentativa chinesa de ampliar o grupo, para transformá-lo em bloco de oposição política ao Ocidente.

Por outro lado, durante o governo Trump, o Brasil foi aceito como “aliado extra-OTAN”. Isso abriu oportunidades de comprar armamentos ocidentais com restrições, mas que são importantes para o Brasil. Trump costurava com o governo de Jair Bolsonaro uma aproximação ainda maior com a OTAN, mas a ideia não avançou devido à derrota eleitoral do americano.

O governo brasileiro quer agora permanecer em uma posição de equilíbrio, tentando não pender para nenhum dos dois lados. Mas a Declaração da Cúpula de Madri mostra que isso vai ser cada vez mais difícil em um mundo que tende para uma escalada de confrontação.

  Luis Kawaguti, colunista - Gazeta do Povo - Jogos de Guerra 

 

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Inflação atinge recorde e põe em xeque estratégia do BC local

 Para conter a escalada de preços, a possibilidade de um aumento maior na taxa de juros é levantada 

Calma pessoal - é a inflação da Europa 

Inflação na Europa atinge recorde e põe em xeque estratégia do BC europeu

O principal impulsionador da inflação na zona do euro é a guerra na Ucrânia, sem sinais de arrefecimento.

O principal impulsionador da inflação na zona do euro é a guerra na Ucrânia, sem sinais de arrefecimento.  Freepik/Domínio Público

As expectativas de desaceleração na alta de preços na Europa foram quebradas. A agência de estatísticas, Eurostat, aponta para um aumento recorde na inflação de maio, atingindo 8,1% na média anual dos 19 países da zona do euro. Os custos de energia e alimentos, impulsionados sobretudo pela guerra na Ucrânia, fizeram a inflação atingir a maior porcentagem desde 1999, quando a moeda única europeia surgiu.

O Banco Central Europeu esperava um nível inflacionário de 7,7% em maio, após os preços atingirem alta de 7,4% em abril, outro recorde. Com resultados negativos (e sucessivos), está em xeque a capacidade do BC europeu em conter a escalada de preços com aumentos graduais de 0,25 ponto na taxa de juros. Os bancos centrais da Áustria, Holanda e Letônia já defenderam aumento de 0,50 ponto, um movimento inédito na zona euro.

Para Camila Abdelmalack, economista-chefe da Veedha, os investidores monitoram a possibilidade de subida em 0,5 ponto na taxa de juros, embora o BC da Europa não tenha apresentado indícios de tal movimento. “É um cenário desafiador e há uma incerteza em relação a capacidade do Banco Central da Europa em seguir com uma elevação em um ritmo tão gradual, porque de uma lado da balança tem a questão da atividade econômica já arranhada pelo conflito no leste europeu, e de outro lado, tem as consequências da pressão inflacionária e o risco de agir tardiamente para combater a inflação”, argumenta.

O principal impulsionador da inflação na zona do euro – guerra na Ucrânia – não apresenta previsão para arrefecimento. Nesta terça, 31, o preço do petróleo subiu para 123 dólares, após o anúncio oficial da União Europeia sobre o plano de bloquear mais de dois terços das importações russas de petróleo. Em última análise, esses indicadores pressionam ainda mais a inflação. “O grande problema é que essa alta de preços vem sendo observada há vários meses e ainda não há sinais de que vá se reverter. Como resposta a isso, deverá haver uma elevação das taxas de juros nas principais economias da Europa, o que terá reflexo negativo sobre o crescimento da economia este ano, podendo inclusive dar início a uma recessão antes mesmo do fim do ano”, analisa o Henrique Castro, Professor da Escola de Economia da FGV-SP.

Inflação por país

Divulgado nesta terça, 31, o relatório da Eurostat – o serviço de estatística da União Europeia – estima um aumento de 37,5% para 39,2%, ao considerar o setor de energia isoladamente em maio, na taxa anual. Em segundo lugar, o setor de alimentos, álcool e tabaco foi de 6,3% em abril para 7,5% em maio.

No entanto, quando o núcleo da inflação é excluído (energia e alimentos), a estimativa de alta do preços gerais é de 3,8%, distante da meta do BC europeu (ao redor dos 2%). Na análise individual, seis países já passam de 10% no nível inflacionários, considerando o acúmulo anual. Estão na lista: Grécia, Letônia, Lituânia, Eslováquia, Holanda e, por último, Estônia (que passa dos 20%).

Economia - VEJA


quinta-feira, 26 de maio de 2022

Por que o rápido ingresso da Ucrânia na UE é uma ilusão, e que perigos ela representa

Filipe Figueiredo

A ilusão de que a Ucrânia poderia rapidamente ser integrante da União Europeia foi bastante vendida nos últimos meses. A simpatia internacional em relação ao país, em solidariedade ao fato de ter sido invadido pela vizinha Rússia, contribuiu para a difusão dessa ilusão, que foi tomada como promessa factível. 
Nas últimas semanas, alguns políticos europeus foram criticados por trazerem uma salutar dose de realidade ao tema. 
Tais críticas são flagrantemente injustas em qualquer debate honesto sobre a participação da Ucrânia na UE.

No dia 10 de maio, o presidente francês, Emmanuel Macron, falando perante o Parlamento europeu, afirmou que “sabemos perfeitamente que o processo para permitir a adesão da Ucrânia levaria vários anos, possivelmente décadas. Essa é a verdade, a menos que decidamos baixar os padrões de adesão. E repensar a unidade da nossa Europa”. Seu discurso era em um contexto de propor uma “comunidade europeia paralela”, apenas política, para reunir os países vizinhos e conectá-los à mais poderosa UE, dando, inclusive, possíveis garantias de segurança.

No dia 19 de maio, foi a vez do chanceler alemão, Olaf Scholz, afirmar que “não existe atalho no caminho de adesão à UE” e que a existência de uma “fila de chegada” é um ”imperativo de equidade para todos os países dos Bálcãs que há muito tempo desejam entrar para o bloco europeu”. Ele fez esses comentários dois dias depois de conversar por telefone com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. A fala de Scholz possivelmente dialoga diretamente com comentários anteriores de Zelensky.

Processo de adesão
A Ucrânia já possuía acordos comerciais e de cooperação com a UE desde 2014, parte justamente dos eventos que levam ao que os nacionalistas ucranianos chamam de Revolução da Dignidade, ou Euromaidan, que derrubou o presidente pró-Rússia Viktor Yanukovych. Já os ucranianos russófilos, e a própria Rússia, vão classificar o ocorrido como um golpe de estado articulado por países ocidentais para enfraquecer a Rússia. Naquele contexto, a Crimeia é anexada pela Rússia e começa o conflito no Donbas, no leste ucraniano.

O governo Zelensky oficializou o processo de solicitação de adesão à UE no dia 28 de fevereiro deste ano, quatro dias após a invasão russa. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, declarou apoiar a adesão da Ucrânia ao bloco e, no dia 1º de março, o Parlamento europeu recomendou que a Ucrânia fosse considerada candidata oficial ao processo de adesão. Ursula von der Leyen, ao visitar a Ucrânia no início de abril, afirmou que apoiava uma “via rápida” de adesão para os ucranianos, diga-se.

O pedido ucraniano já está em sua segunda fase. Considerando a emergência da situação atual, o presidente ucraniano solicitou uma “admissão imediata” sob um "novo procedimento especial", que recebeu apoio de oito estados da UE. Provavelmente é isso que Scholz chamou de “atalho”, para críticas do ministro de Relações Exteriores ucraniano, Dmytro Kuleba. Ele afirmou que “a ambiguidade praticada por alguns países da UE em relação à perspectiva europeia da Ucrânia deve acabar” e que “não precisamos de comentários que demonstrem um tratamento de segunda classe à Ucrânia e firam os sentimentos dos ucranianos”.

A questão é que, como dito, essa onda de apoio e solidariedade aos ucranianos, embora muito bonita e encorajadora num momento trágico, vende uma ilusão. Não é algo factível. Mesmo quando se diz que o “atalho” ucraniano tem apoio de oito estados, quais são eles? Bulgária, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Tchéquia, Letônia, Lituânia e Polônia. Nenhum deles é das grandes economias europeias, os que “pagam a conta” da UE. Ao contrário, quando se olha para os comentários dos líderes de Alemanha e de França, as duas maiores economias da UE.

Problemas da adesão
São três os tipos de problemas para uma entrada da Ucrânia na UE, que tornam esse processo, nas palavras de Macron, algo que depende de décadas, não de semanas ou de anos. Com um detalhe importantíssimo, que é o fato desses problemas existirem mesmo antes da guerra ou antes da crise de 2014. Hoje tudo isso é agravado pelo conflito, pelas objeções russas e pelas questões territoriais, especialmente a anexação da Crimeia pela Federação Russa em 2014.

O primeiro problema é o aspecto geográfico e demográfico. A Ucrânia é o maior país localizado exclusivamente na Europa. Com 600 mil quilômetros quadrados, o país tem o dobro do tamanho da Itália. Com uma população na casa dos 45 milhões de pessoas, seria o quinto país mais populoso da UE. Tudo isso representa um pesadelo logístico para os países desenvolvidos da UE, com mais fronteiras, maior fluxo de pessoas e eventual imigração em massa para os grandes centros.

Como exemplo, a adesão de Romênia e da Bulgária, em 2007, ainda possui etapas por concluir, como a entrada desses dois países no Espaço Schengen de livre-trânsito. E esses dois estados não representam nem de perto os desafios que seria uma adesão ucraniana. Os dois países balcânicos também são ótimos exemplos dos outros problemas para uma entrada da Ucrânia na UE. Inclusive, esses mesmos problemas, no contexto da adesão desses países, foi parte das razões da grave crise da Eurozona, em 2008.

Um deles é a discrepância econômica. A Ucrânia possui um PIB per capita na casa dos 14 mil dólares, enquanto a média da UE é de 35 mil dólares per capita, mais que o dobro. 
Mesmo a Bulgária, o menor índice do bloco, possui um PIB per capita de 24 mil dólares. Ou seja, trata-se de um país muito mais pobre, com uma população também mais pobre, o que criaria uma grave discrepância interna. Para isso existe o mecanismo de equilíbrio, que transfere recursos para os países mais pobres da UE, como a Hungria.

O Índice de Desenvolvimento Humano ucraniano é de 0,779, um pouco acima do Brasil e um pouco abaixo do Irã. A média da UE é de 0,897, uma distância enorme. O piso novamente é o búlgaro, de 0,816, ainda consideravelmente acima do IDH ucraniano. Inserir um país tão grande e com tamanha discrepância socioeconômica representaria um desafio enorme para as finanças europeias, ao mesmo tempo em que a mera população ucraniana daria um peso considerável ao país no Parlamento europeu, gerando um desequilíbrio entre o poder econômico e a representação política.

Países menores
Finalmente, o terceiro problema é que, independente dos sentimentos em relação ao país vítima de uma invasão, a Ucrânia não cumpre a maioria dos critérios europeus sobre governança, corrupção, democracia, transparência da máquina pública e combate ao crime organizado. Novamente, mesmo países membros como Bulgária e Romênia, bem menores, representam desafios nessas áreas. E todos esses problemas independem da guerra, antecedendo a invasão e sendo parte do debate sobre a participação ucraniana na UE desde o início do século.

Quando Scholz aponta a necessidade de “respeitar a fila” de países balcânicos candidatos, ele também é motivado pelo fato de que se tratam de países muito menores, que representarão uma adaptação muito mais fácil em seu processo de adesão. Também países cujos eventuais custos de adaptação serão muito menores. O provável próximo integrante da UE é o pequeno Montenegro, que tornou-se membro da OTAN em 2017. Montenegro possui um IDH maior que o búlgaro e uma população de apenas 600 mil pessoas, em uma área que é pouco mais da metade de Sergipe, o menor estado brasileiro.

O problema dessa venda de ilusões é que, no final das contas, a UE conseguirá apenas pessoas desiludidas. Milhões de ucranianos se sentirão enganados, a própria coesão interna ficará ameaçada, entre os “pró-Ucrânia” e os realistas, e a imagem da UE vai sofrer internacionalmente

Solidariedade é importante, mas não pode parecer apenas da boca pra fora. Provavelmente os atores que colherão os frutos disso serão EUA e China, possíveis parceiros econômicos numa necessária reconstrução do país. E que não prometeram o que não poderão cumprir logo.

Felipe Figueiredo, colunista - Gazeta do Povo -  VOZES


domingo, 8 de março de 2020

Trump e Bolsonaro - Eliane Cantanhêde

O Estado de S. Paulo

Acordo com EUA amplia acesso do Brasil ao mercado de defesa mundial


O Brasil poderá dar importante salto no complexo universo de defesa amanhã, em Miami, quando fecha um acordo com os Estados Unidos para pesquisa, desenvolvimento, testes e avaliação de produtos nessa área. Esse acordo materializa a aliança extra-OTAN, amplia o acesso do Brasil ao riquíssimo mercado internacional de defesa e, indiretamente, melhora a posição brasileira na disputa por uma vaga à OCDE.

O Brasil é o 14.º país no seleto grupo que já fez esse mesmo acordo com os EUA, sob a sigla RDT&E. Nenhum deles é da América Latina, nem mesmo do Hemisfério Sul: França, Inglaterra, Itália, Holanda, Alemanha, Índia, Suécia, Estônia, Finlândia, Noruega e Coreia do Sul. O objetivo é harmonizar produtos de defesa com base nos EUA e na OTAN.

Depois de jogar todas as fichas na aproximação com os EUA, sem receber o equivalente em troca, finalmente o presidente Jair Bolsonaro - que jantou ontem com Donald Trump em Palm Beach - pode dizer que está fazendo um gol. Para Defesa e Itamaraty, um golaço. Para os céticos, uma dúvida: o governo tem obsessão por defesa, mas e a desigualdade social?

Não confundir indústria de defesa com indústria de armas e munições, que reúne só 1,7% das empresas do setor no Brasil. Todo o resto é, em resumo, nas áreas de satélites, comunicações, segurança cibernética, plataformas terrestres e navais, controle aéreo e por aí afora. De todas, só três são estatais, Emgepron, Imbel e Amazul. Do ponto de vista estratégico, essas áreas não dizem respeito só às Forças Armadas, mas trazem benefícios para a tecnologia, a indústria em geral e a sociedade civil, como ocorreu com a internet e o GPS, entre tantos outros.


Do ponto de vista econômico, o governo considera que “o céu é o limite”, pela grande sofisticação, altos preços e mercado internacional do setor. Com o selo RDT&E, os produtos brasileiros terão outro patamar. Há, ainda, a questão da tecnologia e do treinamento de pessoal no Brasil, onde a defesa já responde por 250 mil empregos diretos e igual número de indiretos, com uma renda três vezes maior que a média nacional e um efeito multiplicador poderoso: cada real aplicado tem potencial de gerar 9,8 reais na economia.

O acordo, que será assinado pelo chefe do Estado-Maior Conjunto do Brasil e pelo comandante do Comando Sul dos EUA, não envolve recursos. Isso é uma outra história, ou um outro acordo, ainda não em discussão, mas já no radar do Brasil: o RDT&F, sendo o F de “funding”, ou financiamento. Além do acordo de defesa, Bolsonaro já assinou o decreto do “Global Entry”, para ampliar a dispensa de vistos para grandes empresários, e estão em pauta em Miami comércio, troca de tecnologia, investimentos e infraestrutura. Até por isso, é estranho que Paulo Guedes não vá. De repente, pressa para as reformas?

Não se pode diminuir a simbologia de Trump abrir as portas para um jantar, sábado à noite, para o brasileiro, mas o encontro teve caráter informal, não de reunião de trabalho para percorrer a extensa agenda comum. Até porque, cá pra nós, nenhum dos dois gosta dessas chatices.
Também não custa lembrar: quem é melhor comerciante, Trump ou Bolsonaro? Aliás, se um tema era certo no jantar, era o 5G. Trump não quer nem ouvir falar em 5G da China, só não se sabe como colocaria para Bolsonaro: em forma de advertência, ameaça ou premiação pela decisão. Mas a pressão é forte. A ver.

Eliane Cantanhêde, jornalista - O Estado de S. Paulo




Para Bolsonaro, o troféu da viagem será a foto com Trump, mas Trump não é eterno, os EUA não são os únicos parceiros e a nossa verdadeira guerra é a tragédia social. Não adianta ser aliado extra-Otan dos EUA e entrar na OCDE só com o discurso de que, um dia, quem sabe, isso reverterá para toda a sociedade. Quem tem fome tem pressa.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Realidade ignorada

Documento passa ao largo de aspectos fundamentais do papel das universidades federais públicas 

O Banco Mundial publicou um relatório criticando o ensino superior público e gratuito. O documento contém erros que merecem reparo. Afirma que as políticas públicas têm favorecido os mais ricos, mas não refere à acentuada injustiça tributária no país. Limitado a indicadores financeiros, o documento ignora dados da realidade social brasileira e o papel das universidades públicas no desenvolvimento econômico e social. Estão incorretos dados sobre o perfil dos discentes das universidades federais e sobre os investimentos públicos realizados nas instituições.

O Banco ignora processos seletivos massivos, como o Enem, a criação de mais de 300 campi no vasto interior do país, e a lei de cotas, que contribuem para que apenas 10% dos alunos matriculados em universidades federais venham de famílias com renda bruta familiar de dez ou mais salários mínimos; 51% pertencem a famílias com renda bruta abaixo de três salários mínimos.

Os mais ricos deveriam pagar pela educação pública, mas não apenas os que têm filhos nas universidades públicas. Uma política distributiva séria tributaria todos os ricos (com ou sem filhos nas universidades públicas) taxando fortunas, heranças e propriedades, a fim de possibilitar a parcelas maiores da população o acesso à educação pública de qualidade.

O investimento em educação no Brasil é dos mais baixos entre todos os países da OCDE. O Brasil só investe mais que o México. Fica atrás de Chile, Coreia do Sul, Estônia, Hungria e Polônia. Considerada apenas a educação superior, o investimento do Brasil por aluno (US$/PPP 13.540,00) está abaixo da média da OCDE (US$/PPP 15.772,00), isso em um cálculo que inclui gastos com os aposentados das universidades (gasto previdenciário), o que corresponde a cerca de 25% de todo o valor contabilizado.  Afirmar que o investimento por aluno em universidades públicas é maior do que o financiamento por aluno em instituições privadas é uma obviedade. As primeiras são responsáveis por quase toda a pesquisa científica e tecnológica realizada no país.

O Banco Mundial ignora aspectos fundamentais da atuação das universidades federais. Públicas e gratuitas acolhem alunos de todas as origens sociais, raças e etnias. Mantêm uma rede de hospitais públicos de alta complexidade, clínicas, laboratórios e serviços diversos de atendimento gratuito à comunidade, sendo, muitas vezes, as únicas opções de acesso ao atendimento de saúde.

O que surpreende é que as universidades federais consigam resultados acadêmicos, científicos e sociais tão expressivos, apesar de políticas de financiamento instáveis e de ataques recorrentes dos grandes grupos econômicos. A questão é: em qual país as recomendações do Banco Mundial levaram ao desenvolvimento e à soberania? 


Emmanuel Tourinho é presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes)

domingo, 18 de dezembro de 2016

O quadro trágico da educação

Brasil não consegue formar capital humano para passar a níveis mais sofisticados de produção


A educação brasileira voltou a sair-se mal no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, em inglês), um levantamento que vem sendo promovido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) desde 2000, com o objetivo de medir e comparar o quanto e como os países participantes prepararam seus jovens para ingressar no mercado do trabalho e ter uma vida adulta produtiva. Na prova que foi aplicada em 70 países, no ano passado, o País ficou na 63.ª posição em ciências, na 59.ª colocação em leitura e no 66.º lugar em matemática. Na prova de 2012, havia ficado na 55.ª posição em ciências, em 55.ª em leitura e em 58.ª em matemática.

Realizada a cada três anos, a prova apresenta um perfil básico de conhecimentos e habilidades e oferece indicadores de monitoramento dos sistemas de ensino ao longo dos anos. Em cada edição, o Pisa enfatiza uma das três disciplinas. Em 2015, o foco foi em ciências. No Brasil, a prova é de responsabilidade do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais e foi aplicada a 33 mil alunos, na faixa etária de 15 anos, matriculados no final do ensino fundamental e início do ensino médio.

Nas três disciplinas avaliadas, o país cujos estudantes tiveram o melhor desempenho foi Cingapura. Nas colocações seguintes, destacaram-se os estudantes do Japão, Hong Kong, Taipé chinesa, Finlândia, Canadá e Estônia. Esses estudantes conseguiram ir além das informações apreendidas em sala de aula, usando o conhecimento com criatividade para lidar com problemas cotidianos. O nível considerado básico pela OCDE é o relativo à “aprendizagem e participação na vida social, econômica e cívica das sociedades modernas num mundo globalizado”.

A maioria dos estudantes brasileiros ficou abaixo desse nível nas três disciplinas. Os resultados da prova mostraram que eles têm dificuldades de interpretar, compreender e analisar o que leem. Em matemática, disciplina em que o Brasil teve a pontuação mais baixa nas últimas cinco edições do Pisa, eles não sabem solucionar problemas com um mínimo de complexidade. E, em ciências, carecem de informações mínimas que lhes permitam resolver as questões mais simples do dia a dia. Ou seja, não sabem explicar fenômenos cientificamente nem planejar e avaliar experiências científicas. Na prática isso revela que, por causa da má qualidade do ensino fundamental e médio brasileiro, as novas gerações não estão aprendendo conhecimentos fundamentais para que possam exercer sua cidadania e realizar seus projetos de vida e o Brasil não está conseguindo formar o capital humano de que precisa para passar a níveis mais sofisticados de produção.

O que vem levando os países asiáticos a liderar o ranking das últimas edições do Pisa é a consistência de suas políticas educacionais. As prioridades são definidas sem enviesamentos ideológicos, as metas são definidas com base em critérios técnicos e não políticos, o desempenho docente e discente é cobrado, os melhores professores são indicados para as salas de aula mais desafiadoras e os diretores mais competentes são enviados para as escolas mais problemáticas. É o oposto do que tem acontecido no Brasil, onde a política educacional dos 13 anos e meio de lulopetismo adotou prioridades equivocadas conjugadas com modismos pedagógicos, interesses eleiçoeiros e concessões corporativas a sindicatos de professores e entidades estudantis, o que travou a modernização do nosso sistema de ensino.

O resultado inexorável é que, enquanto os estudantes asiáticos se destacam nos rankings comparativos e as economias da região aumentam sua capacidade de inovação tecnológica, disputando com os Estados Unidos e a Alemanha a liderança mundial no campo científico, os estudantes brasileiros são estimulados a ocupar escolas e a brincar de democracia direta, agitando bandeiras tão vistosas quanto inconsequentes. Os números da edição de 2015 do Pisa mostram o preço dessa irresponsabilidade.


Fonte: Editorial - O Estado de S. Paulo