O Globo
Divisão no STF indica necessidade de emenda constitucional para tornar realista o conceito da irredutibilidade do salário
A sessão de julgamento do Supremo Tribunal Federal da quarta-feira da semana retrasada foi cercada de excepcionalidades. A começar pelo fato de retomar a apreciação de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) instaurada na Corte há 18 anos, por iniciativa de partidos políticos e associações de servidores públicos, contra dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, então recém-aprovada para servir de lastro do controle das contas públicas, afinal conseguido depois de um longo período de crises em que houve recessão, estagnação e uma hiperinflação que chegou perto dos 3.000% em 1993.
Infelizmente, por 7 a 4, o relator do processo, ministro Alexandre de Moraes, foi derrotado no seu voto pela rejeição do pedido de inconstitucionalidade, sendo acompanhado por Dias Toffoli, presidente da Corte, Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, votos insuficientes para rejeitar a ADI, apoiada por Rosa Weber, Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia, esta em parte, porque admitiu a redução de jornada.
O tamanho do equívoco cometido pela maioria do plenário do STF também é demonstrado por números, não só por argumentos jurídicos considerando uma adequada interpretação do que estabelece a Constituição sobre as contas públicas, de forma articulada com a LRF. Se não houvesse uma outra leitura consistente da Carta, não haveria quatro ministros favoráveis à manutenção dos dispositivos contestados da Lei de Responsabilidade.
Como a folha de salários é gasto engessado, ela continua a subir haja ou não crise, com falta de recursos ou não. Há unidades da Federação em que os inativos já custam mais para os contribuintes do que os ativos. Na União, estados e municípios, a despesa com servidores passou de 12,3% do PIB em 2014 para 13,6% em 2018, segundo dados do Tesouro. E continua em ascensão, pressionando por mais recursos em detrimento de áreas estratégicas como saúde e educação. Entre países desenvolvidos, este índice fica entre 5% e 10%. As estatísticas do Fundo Monetário Internacional (FMI) mostram que são raros os países que destinam mais de 13% do PIB ao funcionalismo.
Não apenas argumentos de natureza fiscal e com base em estatísticas sustentam um outro entendimento da arguição da constitucionalidade da LRF. Em seu voto, o relator Alexandre de Moraes registra que o artigo 169 da Constituição, ao qual se relaciona a Lei de Responsabilidade, estabelece regras para a redução das despesas com pessoal, se elas ultrapassarem limites estabelecidos em lei complementar, a LRF. Caso não seja possível reenquadrar esses gastos dentro dos limites legais, servidores estáveis poderão ser demitidos em uma situação extrema. Está escrito.
[o oportuno está escrito, acima destacado, nos anima a perguntar:
- será que não está na hora da opção ser efetuar modificações mais abrangentes no texto constitucional, deixando de lado modificações pontuais, via PEC?
Não se pode desprezar o fato que a atual 'constituição cidadã' usa e abusa da concessão de privilegiar a interpretação do que está escrito, relegando a segundo plano o que está escrito.
Já vivemos em uma democracia que viola direitos assegurados na Constituição Federal a pretexto de impor o respeito aos mesmo direitos.
No mesmo diapasão deixamos de seguir o que está escrito para seguir a interpretação do que está escrito.
O Supremo é guardião e intérprete da Carta Magna - está escrito - só que artigos de redação considerada confusa, são deixados de lado, ainda que ratificados por Lei posterior, editada exatamente para complementar o dispositivo de redação 'confusa'.
Um exemplo: artigo 142, 'caput', seu parágrafo primeiro, da Constituição Federal em vigor, combinado com artigo 15, 'caput', da Lei Complementar nº 97, em plena vigência.]
Convenciona-se dizer que no Brasil primeiro veio o Estado, representado pela Coroa portuguesa, e depois o povo. Substituída a Monarquia pela República, na parte de cima desta construção social, onde estavam marqueses, condes, barões, estabeleceram-se elites diversas, com destaque para uma burocracia pública diversificada. São funcionários de diversas formações profissionais, próximos ao poder. Em Brasília, a proximidade aumentou. Nos extratos superiores deste edifício da burocracia, pagam-se bons salários com generosos penduricalhos, há carreiras que evoluem sem sustos e promoções garantidas. Na planície está a grande maioria da população constituída por assalariados do setor privado, cujos salários e jornadas de trabalho estão sendo cortados devido à crise, pela mesma fórmula incluída na LRF, agora declarada inconstitucional. A lei vale para todos, mas a depender da interpretação.
Editorial - Jornal O Globo