A reconstrução nacional terá de passar também pela reforma dos Três Poderes da República
Não há
dúvida de que o Brasil vive a mais grave crise do período republicano. O
país aguarda a conclusão do processo de impeachment para iniciar o
longo e penoso processo de reconstrução nacional. O PT esgarçou os
tecidos social e político a um ponto nunca visto. Transformou o Estado
em correia de transmissão dos interesses partidários. E desmoralizou as
instituições do estado democrático de direito.
O projeto
criminoso de poder deixou rastros, por toda parte, de destruição dos
valores republicanos. Transformou a corrupção em algo rotineiro, banal. A
psicopatia petista invadiu, como nunca, o mundo da política nacional.
Mesmo com as revelações das investigações dos atos criminosos que
lesaram o Estado e os cidadãos, o partido e suas lideranças continuaram a
negar a existência do que — sem exagero — pode ser considerado o maior
desvio de recursos públicos da história da humanidade.
Não há
qualquer instância do Estado sem a presença petista. Por toda parte, o
PT foi instalando seus militantes e agregados. Transformou o governo em
mero aparelho partidário — e isso sem que tenha chegado ao poder pela
via revolucionária. Esta é uma das suas originalidades. Usou de todas as
garantias da democracia para solapá-la. Desprezou a Constituição e todo
o arcabouço legal. Considerou-os mero cretinismo jurídico. Jogou — e
até agora, ganhou — com a complacência da Justiça. Nada justifica, por
exemplo, que a Lei 9096/96, que trata do registro dos partidos
políticos, até hoje não tenha sido aplicada nos casos envolvendo o PT e
os desvios de recursos públicos. Como é possível ter dois tesoureiros
sentenciados — e outro processado — sem que o partido tenha o registro
cassado, como dispõe o artigo 27 da citada lei? [é possível da mesma forma que o SUPREMO MINISTRO Teori Zavascki conseguiu fazer a mágica de, mais uma vez, retirar o Lula das mãos do juiz Sérgio Moro trazendo processos que deverias ficar sob a jurisdição daquele magistrado para a Justiça Federal do DF.
As escutas telefônicas tinham como alvo Lula, se Dilma a Afastada, decidiu ligar para o Lula problema dela. O fato da Afastada ligar para um criminoso não o absolve dos seus crimes.]
A reconstrução
nacional terá de passar também pela reforma dos Três Poderes da
República. O petismo levou ao máximo a crise de representação política,
da administração pública e do funcionamento da Justiça. Não é tarefa
fácil. Pode levar várias gerações. Mas é inexorável. E urgente. A
indignação popular é dirigida ao conjunto dos poderes da República. Nada
funciona de forma eficaz. Por toda parte, o cidadão encontra corrupção e
injustiça. É como se o país fosse uma república de salteadores. E quem
cumpre as leis faz papel de idiota.
Enfrentar este estado de
coisas não é uma tarefa de um poder. É evidente que o novo governo que
vai surgir da aprovação do processo de impeachment tem de fazer a sua
parte, aquela que cabe ao Executivo. Mas os outros dois poderes também
estão podres. Ninguém confia nas representações parlamentares. Mas
também ninguém confia na Justiça. Se o Parlamento é patético, o que
podemos dizer do STF que considerou “grave ameaça à ordem pública” o
boneco representando o ministro Ricardo Lewandowski?
Há uma
fratura entre os cidadãos e a Praça dos Três Poderes, em Brasília. Toda
aquela estrutura cara e carcomida por ações antirrepublicanas de há
muito não representa os sentimentos populares. A crise é muito maior do
que se imagina — e se fala. Se a grave situação econômica pode ser
enfrentada e vencida pelo novo governo a partir do ano que vem, se a
aprovação de uma legislação mais severa pode coibir os atos de
corrupção, se alguma reforma eleitoral pode melhorar a qualidade da
representação popular, a tarefa mais complexa será a do enfrentamento de
uma nova realidade social produzida nas metrópoles, por um Brasil
desconhecido, pouco conhecido e que não faz parte das interpretações
consagradas, como aquelas dos anos 1930, como “Raízes do Brasil”, de
Sérgio Buarque de Holanda, que ainda retratava um país rural. De um
Brasil que necessita ser desvendado, de dilemas complexos e que precisam
ser compreendidos para serem enfrentados. E que não passa pela
fraseologia barata de fundir citações de letristas de canções populares
com velhos explicadores da “civilização brasileira.”
Vivemos um
momento novo. O terrível é que as instituições estão velhas. E não há
intérpretes que consigam desenhar cenários do que somos e para onde
poderemos ir — as universidades perderam a capacidade de exercer o papel
de consciência crítica; hoje, não passam de instituições corporativas,
sem papel relevante. A edificação da democracia, com a promulgação
da Constituição de 1988, ignorou as profundas contradições sociais que
foram gestadas com a urbanização selvagem que se intensificou nos anos
1980. Foi elevado um edifício moderno tendo como base uma antiga
estrutura que se manteve intocada.
E, pior: com o desconhecimento do
solo social. E deu no que deu, numa crise sem fim. Derrotar o
projeto criminoso de poder foi uma grande vitória. Ele agravou as
mazelas brasileiras. Ou melhor, foi consequência do rápido apodrecimento
das instituições. O desafio será enfrentar a herança maldita do
leninismo tropical que, além de tudo, desmoralizou a democracia. E isto é
grave, especialmente em um país com a nossa triste tradição
autoritária.
Por isso, processar, julgar e condenar — pois os crimes são
evidentes — o chefe do petrolão terá um enorme (e benéfico) papel
pedagógico, uma demonstração inequívoca que o crime não compensa e que a
lei é igual para todos. O impeachment de Dilma Rousseff — que é
muito importante — precisa ser complementado por ações que levem a uma
reestruturação do Estado, das suas instituições e, principalmente, de
suas práticas. Não podemos continuar a ser um país que parece que está
de cabeça para baixo, onde as imagens vivem se confundindo, onde
passamos, em instantes, do claro ao escuro, da verdade ao engano, do
sublime ao patético.
Fonte: Marco Antonio Villa, historiador - O Globo